Ilustração: Mariana Bergo

Trinitite

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8 min readMay 20, 2016

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Para todos os lados que olhava, via apenas uma imensidão azul, norte, sul, leste, oeste, era impossível saber onde o céu acabava e a terra começava. Ou se para qualquer uma daquelas direções existia água. Tudo era uma grande e desesperadora imensidão de indigo escaldante, ácido e muito provavelmente radioativo.

Checou o contador Geiger no dispositivo de sobrevivência acoplado ao seu braço esquerdo, definitivamente radioativo. Não que esse fosse o maior dos seus problemas, afinal, até onde ele sabia, provavelmente iria morrer de alguma outra forma quase tão agradável quanto envenenamento por radiação. Estava em dúvida se seria sede, fome ou se em breve seu corpo simplesmente iria ceder e cozinhar, pois toda aquela infinitude azulada certamente estava planejando transformá-lo no almoço, o que parecia justo, já que ele, provavelmente, era a única coisa que podia ser cozinhada num raio de muitos quilômetros. E de acordo com a posição do sol, certamente era hora do almoço.

Porém ele era um sobrevivente, ele estava ali não estava? No fim do mundo… não que aquele lugar fosse o fim do mundo, não figurativamente, mas o mundo havia acabado, há alguns anos por sinal, e não importava pra onde ele ia, quando ia ou como ia, todos os lugares eram definitivamente o fim do mundo.

O infinito azul, a eternidade da natureza refletindo os erros da extinta raça humana, onde um dia foi um grande deserto de areia branca e amarelada, era agora um gigantesco oceano de vidro fundido, derretido pelo calor de mil sóis radioativos, o último legado da civilização

Claro, alguns lugares do fim do mundo eram definitivamente melhores que outros, e aquele era, possivelmente, um dos piores deles. O infinito azul, a eternidade da natureza refletindo os erros da extinta raça humana, onde um dia foi um grande deserto de areia branca e amarelada, era agora um gigantesco oceano de vidro fundido, derretido pelo calor de mil sóis radioativos, o último legado da civilização. Tão eterno, imutável e grandioso quanto qualquer grande criação da natureza, e tão alienígena e distante de tudo que um dia a natureza criou, tão artificial e decadente, que se houvessem sobrado outros humanos, ficaria muito óbvio pra qualquer um deles que aquilo não poderia ser uma criação natural, portanto foi carinhosamente apelidado como: o último legado da civilização.

Havia muitos anos que o mundo tinha acabado, e ele sobreviveu, tinha apenas doze anos quando o mundo decidiu dar o seu próprio fim. Como todas crianças, ele tinha sonhos, inocência, família e amigos. Apesar de sempre achar difícil ordenar quais desses foi embora primeiro, uma vez que todos foram embora quase que ao mesmo tempo.

Quando fechava os olhos ainda podia sentir o cheiro das tortas que sua mãe fazia aos domingos, lembrar das brincadeiras e jogos que fazia com seus amigos no colégio, de jogar baseball com seu pai, de como as folhas das árvores eram verdes, de como sua cama era macia, da forma como seu pai podia passar toda confiança do mundo só com um olhar, da alegria das festas de família, dos aniversários, dos cheiros de comidas, pessoas, perfumes, do sabor de tantas comidas que sabia que não ia mais sentir, dos rostos que jamais veria novamente, das vozes que ecoavam em silêncio pela sua cabeça e pela imensidão devastada que agora era a terra.

Mas ele, ele sobreviveu, nunca soube exatamente porque sobreviveu, mas nunca foi bom em desistir, mesmo quando não tinha nada a ganhar, sempre foi até o final, sempre cumpriu o que era esperado dele. Seu instinto de sempre seguir em frente apesar de tudo fez dele um dos últimos sobreviventes, viu todos que amava morrerem em questão de meses após a tragédia, alguns foram mortos pela violência da necessidade de sobrevivência, outros pela radiação, e quase todos pelas bombas.

Arte: Mariana Bergo

O último legado da civilização, como chamavam o deserto espelhado de azul na qual o homem agora se encontrava, foi um dia um grande deserto, não que agora tenha deixado de ser, apenas havia se transformado num novo tipo de deserto, um deserto que só poderia ser criado pela perseverança e dedicação, por homens insistentes que não pararam de bombardear um deserto com todo arsenal de uma nação ao saberem que em algum lugar, escondido no subterrâneo daquelas areias existia uma fortaleza abrigando sobreviventes de outra etnia que se negavam a aceitar o julgamento final.

Oras, nossa espécie sempre foi muito dedicada em seus deveres, podendo levar qualquer atividade às últimas consequências caso necessário, e aquela imensidão azul, a terra do infinito, onde é impossível saber onde a terra termina e o céu tem começo, nada mais foi que a última consequência do julgamento final, um último ato de obstinação de nossa dedicada espécie, dessa vez, muito dedicada a erradicar toda a vida do planeta, e como em tantas outras empreitadas, muito bem sucedida.

Bem, ele não tinha certeza de tudo isso, apesar da civilização humana ter acabado, da espécie poder se dar por extinta, alguns outros poucos sobreviventes podiam ser encontrados, às vezes levavam dias para ver outro rosto, às vezes meses, e recentemente anos. Não sabia ao certo o que achava disso, sentia falta de ver outros seres humanos, mesmo sabendo muito bem como dançar a música que tocava em todos encontros do fim do mundo, as trocas de olhares, a alegria genuína de encontrar outro sobrevivente, a certeza do ataque iminente, fosse ele dali a 30 segundos ou 3 dias.

Sabia que, em última instância, só o que importava para as últimas almas perdidas vagando sem rumo por aquele mundo era sobreviver, e infelizmente sobreviver implica em consumir recursos, água, comida, e no fim do mundo essas coisas não conseguiam ser regeneradas facilmente pela natureza, cada gole d’água era o último, cada refeição a última, cada pessoa que você encontrava, a última.

(…) lendária última colônia da espécie humana, causadora de tanta ira que de alguma forma conseguiu unir o céu e a terra em um único inferno, monocromático, estéril

Encontrou muitas pessoas, nos incontáveis anos que vagou, em todos os encontros apenas ele saiu com vida, quando era criança os encontros duravam vários dias até que a outra pessoa finalmente se desse conta que o fim do mundo não era justo, de que o peso da vida de uma criança não era maior que o peso da vida dela própria, e que apesar de doloroso, o inevitável devia ser feito.

Encontrou várias pessoas desde que o mundo acabou, e era ele, que estava ali, naquele particular pedaço do fim do mundo, numa última tentativa desesperada de dar um significado a sua existência, de encontrar a lendária última colônia da espécie humana, causadora de tanta ira que de alguma forma conseguiu unir o céu e a terra em um único inferno, monocromático, estéril.

O último legado da civilização, o último grande ato de ira, ironicamente, talvez o último lugar da terra onde as pessoas ainda vivessem em alguma forma de sociedade, onde talvez houvesse alguma esperança.

Já faziam semanas que estava ali, no inferno, toda pouca comida e água que havia racionado de suas jornadas tinham acabado a mais de um dia, todo combustível e madeira pra se aquecer durante a noite haviam acabado na noite anterior, e sabia que se não encontrasse a lendária escotilha que dava entrada pra comunidade humana que supostamente existia ali, esse era o fim da linha para ele.

O céu começou a insinuar tons de amarelo, que rapidamente se tornaram um forte laranja, e por um momento todo o mundo queimou em chamas frias, era como se o deserto fizesse questão de recriar o dia do juízo final todos os dias, de encenar aquela peça onde todo o planeta foi consumido por chamas, aquele pedaço do mundo pareceu nunca se esquecer do acontecido, e mesmo que toda a vida humana acabasse, saber que o próprio planeta se lembraria daquele dia para sempre encheu o último homem da terra ao mesmo tempo com alegria e tristeza.

Ficou confuso sobre os seus sentimentos e resolveu rir, não por esse ser o sentimento mais forte, mas porque talvez fosse a última vez que tivesse motivo para isso.

O laranja rapidamente virou um vermelho, rubro como o sangue, e o chão que tremeluzia a luz pareceu um campo de batalha encharcado com o sangue de todos os exércitos do mundo, mas só por um momento, a ironia da encenação não o divertia mais, em poucos minutos o mundo iria acabar sua encenação, e ele estaria sozinho na imensidão do espaço, achava fascinante como o deserto refletia todas as estrelas, nebulosas, constelações e cometas, era como flutuar no espaço, as últimas noites naquele lugar fizeram o homem ter certeza de um de seus sonhos de criança, um dos tantos que morreram junto com o mundo, se a vida tivesse continuado, talvez numa outra realidade, teria sido um astronauta.

Ilustração: Mariana Bergo

Com o fim do último raio de sol, naquela grandiosa representação diária do apocalipse, deitou e olhou pro céu, sorriu uma última vez ao perceber que tinha certeza ao menos de uma coisa, de seu sonho que jamais se tornaria realidade, mas que ele poderia imaginar naquele lugar. Fitou o universo, a imensidão do espaço, usou sua imaginação que o acompanhou por tantos anos e o impediu de enlouquecer mesmo nos momentos mais difíceis, sabia que estava bem acompanhado. Passou horas imaginando as histórias de cada uma daquelas estrelas, de cada um daqueles mundos inexplorados, imaginou se um dia outra civilização não ia encontrar a terra, se iriam estudar a história da raça humana, se compreenderiam a beleza que ficou enterrada em meio a destruição.

Pensou muito em várias possibilidades, lembrou dos escombros de cidades, dos possíveis bancos de dados, e se alguma daquelas coisas poderia realmente passar a essência da raça humana, pensou no que poderia ser considerado a essência da raça humana, aquela característica que estava lá no primeiro dos homens, e que existia nele, talvez o último.

Após horas pensando, concluiu que nada daquilo importava, que em toda sua ignorância e fúria a espécie dele havia criado a forma mais perfeita e sublime de passar sua essência, um show vívido do último dia do mundo, um show que retratava com precisão a dor e a beleza de uma espécie, com cores, movimento, e o silêncio, que compunha com maestria a trilha sonora da obra de arte mais importante já criada pelo homem, ou talvez fosse o registro histórico, não conseguiu se decidir, estava muito cansado, tudo que importava era aquilo, o último legado da civilização.

Sorriu uma última vez, ficou feliz por ter encontrado motivos, mas já estava muito cansado, e por uma última vez, fechou os olhos e dormiu.

Conto feito por Aleph Casaras / Ilustração por Mariana Bergo

Feito pela matéria de Design Fiction ministrada por Allan Mendes

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