High Frontier 4: A Complexidade Final

Israel Fonseca
Spiel des Djows
Published in
8 min readMay 31, 2023

HF4 é considerado um dos jogos mais pesados do mundo (4.83 no BGG), perdendo talvez só para os Wargames crackudos que um ser humano comum jamais vai jogar. Um lançamento nada "comercial" para o Brasil, sendo um movimento corajoso por parte da Mosaico.

Esse ano, após um longo tempo de espera, tão grande que cheguei a mudar de país e não pude receber o jogo (risos), acabei conseguindo jogar duas partidas aqui na Holanda, e estou aqui pronto para tecer meus comentários sobre esse curioso jogo.

Player aid para cada nave pré-construída no modo "fácil-introdutório-mas-com-todas-as-regras-fora-as-expansões" xD

O Contexto

Conheço a série já há algum tempo, o tema e complexidade sempre me chamaram atenção, mas sabia que jamais seria lançado no Brasil. Fiquei muito impressionado/assustado quando a Mosaico anunciou o lançamento nacional e ainda mais, traduzido. Dada a complexidade, tinha tudo para dar errado. No final das contas, meu coração foi acalentado quando soube da equipe envolvida:

  • VictorHF: Lenda viva do HF4 nacional. Cujo um busto será erigido em Marte em sua honra por seus esforços com a comunidade HF.
  • RicardoSantos: Mestre tradutor de altíssimo nível e grande nome aqui na Ludopedia. Infelizmente se aposentou aqui do fórum e não faz mais seus excelentes posts sobre trilha sonora.

Aqui nessa página dos idos Novembro de 2019 o anúncio foi feito, e vocês podem até ver meu alvoroço perguntando sobre a versão original, até que eventualmente decidi participar como voluntário das revisões iniciais. Participar das primeiras revisões junto desse Grupo de Elite foi memorável. Valeu Victor pelo easter egg!

Como comentei antes, o jogo acabou atrasando quase 3 anos, e me mudei de país. Dei o jogo de presente para @leodoraju, que sei que curte o tema, mas talvez não tanto a complexidade toda (risos). Fica tranquilo Leo, não to julgando se não conseguir jogar xD. O tempo passou e tive a oportunidade de jogar 2x partidas aqui na Holanda com um pessoal hardcore.

O Bom

  • Temático até o talo. Aqui não tem erro, se um jogo pode ser chamado de temático, esse aqui vai estar como um dos maiores exemplos. Inclusive, essa é a fonte da sua complexidade. Tem regra e exceção a rodo para sustentar isso. Desde não ter combustível e aterrisar com frenagem atmosférica até ondas de radiação destruindo equipamento essencial para a sua viagem. Some isso a aquela gostosa rolagem de dados, que no momento específico, vai tornar toda a experiência inesquecível (por bem ou mal) quando sua aterrisagem falhar miseravelmente. Ah, e erros de cálculo podem gerar missões de resgate. O potêncial de story-telling é elevadíssimo.
  • Para solo gamers e broderagem-não-competitiva. Falo com propriedade sem ter jogado nenhuma partida solo: que jogo solo excelente (risos). Sério, eu me vi QUASE pegando o jogo emprestado, só pra ficar viajando pelo espaço e ver as possibilidades de exploração. Nas 2 partidas que joguei (em 3P), era praxe nos ajudarmos com regras, ou até sugestões do que fazer, então se você tiver o grupo para esse jogo, pode ser uma experiência ai para muitas centenas de horas. É uma sensação maluca, que só jogando para entender. O jogo possui um caminhão de variantes oficiais e não oficiais, com diferentes cenários de jogo. Uma delas, criação do próprio VictorHF.
  • Pelo escopo do jogo, até não é tão difícil quanto poderia aparentar. Se houver amor, até da pra sair jogando meio que aos trancos e barrancos. Dito isso, ainda assim vão ser 40 minutos de explicação pelo menos. Existe uma variante que já vem com algumas naves pré-montadas e é ótimo para as primeiras partidas (todas as minhas partidas foram com essa variante).
  • O esquisito draft/leilão de peças para montar a sua nave é inesperadamente gratificante. Quando você finalmente consegue montar algo útil, como por exemplo, ser altamente eficiente no consumo de combustível, você irá se sentir o Elon Musk tupiniquim. Some isso as descrições técnicas e artes das cartas, que podem parecer feias, mas de alguma forma combinam com a experiência. Já disse que o jogo é bem temático?
  • Setup tranquilo. Apesar do tamanho assustar, é bem fácil montar/desmontar, quase não tem componentes.
  • Tabuleiro lindo. Quando tu vê ele ao vivo, você já sabe que o potencial é alto.
O bicho é imponente.

O Ruim

  • Jogo excelente na mídia errada. Vou detalhar isso mais ainda com a minha crítica ao "cálculo de combustível" no próximo item, mas sinto que ele, assim como o Through the Ages são jogos que estão ligeiramente acima do "limite físico" da experiência boardgamística. A automação que uma plataforma digital traria, removeria boa tarde do "esforço cognitivo desnecessário", vulgo: lembrar das exceções, cálculos excessivos e table-space que o jogo demanda.
  • Design “sujo” em função da imersão temática. Existe uma quantidade bem alta de regras e exceções. Já deixei claro antes, mas é justamente por causa desse mar de coisas que o tema é realmente evocado. No entanto, algumas delas acabam sendo excessivamente “complicadas” sem gerar nenhuma “diversão”, só trabalho, mais ou menos como os jogos do Lacerda (veneno gratuito ativado). Deixa eu dar um exemplo: O cálculo de combustível. Uma mecânica essencial para o jogo é calcular a quantidade de combustível que você precisa em função do lugar que você quer chegar, mas que eu no alto da minha arrogância, acho difícil alguém dizer que ela em si é divertida, é realmente um “trabalho necessário” para a diversão que de fato é tentar chegar nos planetas e cumprir suas missões. O cálculo aqui é razoavelmente complicado: consumo de combustível do seu foguete, tamanho do foguete, distância do sol, multiplicadores ou divisores de consumo… é complicadinho e não é divertido. E é muito fácil você esquecer do cálculo no meio do caminho ou querer mudar um parâmetro e ter que refazer tudo de novo. Parece que a mídia boardgame não é exatamente acertada para esse tipo de jogo (afinal, poucos boardgames podem ser considerados "simuladores"), e vejo que se fosse uma versão digital, essa parte poderia ser completamente automatizada.
O Brasileiro médio ja é analfabeto funcional, eu male-male sei somar e dividir. O player aid tem um trecho sobre Calculate Required Fuel, diz ele que é fácil…
  • O choro continua. Vou tentar dar um exemplo hipotético para que você entenda: Num jogo típico para ir do espaço A ao C, são 2 movimentos, A-B, B-C. No HF4 pense que seria algo como: “se a distância de A até C é 2, multiplique por 7, divida por 3 e some com 5. Se a rota for verde, acresce +1”. Isso é só um exemplo do “sentimento” que vai acontecer na hora de resolver os cálculos de combustível. Claro, com prática pode até ficar fácil, mas eu diria que é bem desconfortável pra grande maioria de gamers. E e por isso que o próximo ponto é tão importante.

O Cinza

  • É um jogo de nicho. E não, não é tipo de Lacerda que também é nicho, é MICRO-NANO-NICHO. Esse jogo SÓ PODE ser apreciado por quem AMA o tema, não basta achar bacana, tem que AMAR. Qualquer coisa menor que isso, não vale o esforço de peso pra vencer a complexidade. O ponto é: a chance de você achar alguém para jogar isso junto é mínima, e se você não curte solo vai ser difícil achar gente para participar.
  • Curva de Aprendizado e baixa interação entre jogadores por causa disso: nas primeiras 5 partidas (e só joguei 2), vai ser muito pouca interação, basicamente jogadores gerando input de aleatoriedade sobre suas decisões do que leiloar e valor de industrialização dos planetas. Dado o peso do jogo, é difícil imaginar alguém ativamente querendo prejudicar alguém. Porém essa possibilidade existe (existem mecânicas específicas sobre roubar localidades alheias), mas só vai entrar em cena com jogadores experientes. As expansões aumentam ainda mais esse aspecto. Porém até você sentir isso, vai levar tempo, e qualquer euro mequetrefe provavelmente vai soar mais interativo num primeiro momento.

O Cru

Essa nova sessão, tenta dar uma visão nua e crua, pseudo-técnica, sobre algumas características que podem ser importantes para você. Tento ser mais frio aqui, dando só "fatos".

  • Fontes de sorte: Mercado de cartas, rolagem de dados para alguns procedimentos com a nave e vários dos eventos do jogo.
  • Mitigação de sorte: É possível para alguma coisas, pagando mais caro para evitar a rolagem e garantir sucesso, para eventos não.
  • Interação: leilão, corrida por localidades no sistema Solar (chegou primeiro leva), valor das indústrias muda conforme jogadores escolhem os mesmos tipos de localidades, alguns eventos permitem que jogadores "roubem" coisas dos amiguinhos, é possível negociar livremente qualquer coisa entre os jogadores.
  • Curva de Aprendizado: 3 jogos em semanas seguidas para começar a "clicar", cerca de 12 horas de investimento nisso. Como disse, quem curte esse jogo, curte já pelo tema, então da para dizer que essas primeiras partidas já serão divertidas. Para 97% das pessoas, provavelmente não será. Para o dono do jogo, que for explicar, coloque ai umas 10 horas que misturam leitura dos manuais (mais de 50 páginas) e vídeos do Heavy Card Board.

Veredito

Se você tem alguma dúvida de que esse jogo pode não te agradar, não precisa ter dúvida, ele NÃO vai te agradar. High Frontier 4 tem um filtro de entrada elevadíssimo, e quem sabe que gostaria, não tem dúvidas. High Frontier não é um jogo que você vai fazer propaganda no grupo pra convencer a galera a jogar. No máximo, você menciona a existência pra quem não conhece, e cada um vai descobrir a verdade por si só (se curte ou não). Caso ocorra, o grupo para jogatina vai nascer organicamente, não acho que seja possível criar o gosto pelo jogo na maioria das pessoas.

Selo Spiel des Djows para "Melhor curso preparatório de estágio para a SpaceX com roupagem de jogo de tabuleiro já produzido."

Isso quer dizer que vai ser um jogaço então? Não necessariamente, para mim é apenas um jogo Nota 7 (Sistema de Avaliação Spiel des Djows), eu sempre vou estar disposto a jogar se me convidarem, mas não farei o contrário. Pô Israel, mas tu não ama o tema e blá-blá-blá? Sim, e é por isso que to no FILTRO que topa jogar, mas o esforço de ensinar/convencer é tão alto que certamente não me daria o trabalho de evangelizar novatos. E mesmo tendo um grupo apto, dado a minha natureza de gostar de explorar novos designs, é um jogo que sei que não combina com o meu perfil gamer na maior parte do tempo.

P.S: Vale salientar também, que só joguei 2x partidas, no modo com naves pré-prontas, usando “todas as regras”, porém sem nenhuma das expansões. Minha gente, é muito conteúdo, tá loco! Então eu só arranhei 50% de tudo que o jogo tem a oferecer. Mas acredito que esse review reflita a realidade do gamer mais que médio (hardcore, mas que não sabe somar 1+1).

--

--