Filósofos com KY e o poder da piada

Hell Ravani
Sr. Bumbum
Published in
4 min readOct 13, 2016

Não está fácil ser brasileiro esse ano. O cenário político está sambando e definhando na nossa cara. Sem falar na crise econômica. Sem falar no divórcio de William Bonner e Fátima Bernardes. Nesse mar de chorume o que nos resta, afinal? Rir. Sempre nos resta rir.

Rir é uma das formas mais simples de se comunicar, não importa o idioma, nós todos sabemos reconhecer uma boa risada e é quase impossível não rir junto. A partir do momento que alguém te faz rir, cria-se uma conexão de empatia com aquela pessoa e você é levado a gostar mais dela.

“Humor is a rubber sword — it allows you to make a point without drawing blood.” -Mary Hirsch

A risada é uma deliciosa anomalia no nosso cotidiano, geralmente rimos de algo que nos surpreende, ou que reverte nossa expectativa de lógica linear, então, por natureza, a comédia é subversiva, por isso mesmo, não é a toa que as piadas mais marcantes são aquelas que nos fazem olhar um assunto de um jeito diferente.

Ao longo da história, o humor foi uma ferramenta de manipulação amplamente utilizada, já na Grécia Antiga poetas cômicos usavam sátiras pra mudar a intenção de voto dos eleitores, ao ponto de Sócrates reconhecer: “Deve-se usar o riso como se usa o sal, com parcimônia”.

O comediante tem o poder de mostrar ao publico uma nova perspectiva, algo que pode influenciar opiniões ou até mesmo decisões políticas, como se ao contar uma piada, ele fosse capaz de segurar um espelho invisível pra plateia, forçando-os a se enxergar de outro lugar. Creio que o riso é um lubrificante social que deixa tudo mais suave e que os comediantes são uma espécie de filósofos com KY.

Nos anos 60 a Televisão americana era recheada de comediantes engravatados, com piadas limpas, sem tabus, sem palavrões, algo que contrastava com a tensão da Guerra do Vietnam que a população vivia.
Era necessário induzir o pensamento coletivo de que estava tudo bem, afinal, rir de coisas bobas tira a mente da realidade dura e abafa maiores questionamentos, então, a cena da comédia era baseada em amenidades, não deixando espaço criativo pra comediantes ácidos.
Foi quando grandes filósofos do KY como George Carlin surgiram com uma proposta diferente, inicialmente vista como contra-comédia, a cena alternativa era um respiro pra juventude paz-amor-drogas que queria o fim da Guerra e não se sentia representada pelas piadas tradicionais.
Ao mesmo tempo que era também um alívio pros comediantes terem um lugar pra criticar opressão, machismo, racismo. Em poucas décadas, a contra-comédia remodelou a faceta do humor americano, impulsionando o crescimento do stand up no mundo todo.

Aqui no nosso querido e bipolar Brasil, temos uma cena de comédia decrépita, que se assemelha aos EUA de quase 60 anos atrás. É comum ver na TV ou no circuito popular piadas reproduzindo esterótipos incoerentes, como o da loira burra, negro ladrão, ou do pobre preguiçoso.
Sem crítica, sem visão de mundo, sem nenhum KY, no geral nossa comédia é obsoleta e só cutuca as camadas oprimidas com ofensas gratuitas, o que promove nenhum debate ou mudança concreta.

charge do humorista Millôr Fernandes

Como uma das poucas comediantes mulheres no meio underground, tenho muita dificuldade em achar uma posição confortável pra existir nisso. Por um lado vejo que nos falta uma safra maior de humoristas competentes que tenham a mesma coragem de se arriscar como um Carlin, mas por outro, a dinâmica social brasileira já mata o bom comediante muito antes dele nascer.

Somente em 2010 o STF liberou o uso de humor durante as campanhas eleitorais, sem falar nos processos jurídicos contra comediantes, como por exemplo o caso do Danilo Gentili, que até exemplifica bem meu desconforto.

Gentili fez uma piada horrorosa comparando de maneira esdrúxula uma doadora de leite com uma vaca, sendo que a moça é a maior doadora do mundo e a boa vontade dela salvou a vida de várias crianças.
Não consigo ficar do lado dele, essa é uma piada machista, o Danilo é um comediante nocivo que representa várias coisas erradas na cena, sendo que achar certo um comediante ser processado por uma piada é achar certo qualquer profissional ser punido só por exercer sua profissão, e também, é ir contra minha própria liberdade de expressão enquanto comediante, por mais que nossos focos de criação sejam bem distintos.

Num país com farta oferta de piada, onde um fantoche de papagaio tem um programa de culinária matinal e basta abrir o jornal pra cair na gargalhada com notícias REAIS, é estranho sobrar tanto lugar pra piada velha e pouco pra autocrítica, mas no fundo acho que o cenário é um reflexo do nosso jeitinho brasileiro hipócrita. Acho que essas manobras da lei pra tentar regular a comédia são, em alguma profundidade, um atestado de que a sociedade brasileira teme seus comediantes, assim como temos medo de ser o próximo alvo da chacota, poque é isso: nosso Estado ainda funciona muito na lei do bullying.

Precisamos aprender mais o valor da comédia alternativa, entender o poder de mudança que uma piada tem, aprender a rir mais de nós mesmo e menos dos outros. Pra mudar o mundo não precisa ir longe, talvez se a gente passar mais KY na existência vai começar a viver melhor.

--

--