‘Tretas Legais’ é o grito desesperado da vida mediocre, é ‘Louie’ com guitarras
A nova tétrica tríplice musical de Jesus Norris traz, já de cara, um sinal de que não é um simples compêndio minúsculo de gravações apressadas de um guri de apartamento com sua guitarra afinada de maneira pouco ortodoxa. O nome do álbum/EP é referência ao disco de estreia da lendária Comunidade Nin-Jitsu, Broncas Legais, que combinou riffs de guitarras e risos de risadas com batidas eletrônicas. Tretas Legais faz isso e muito mais em só três músicas.
Falemos das canções em ordem, então vamos começar por Sistema Carcerario: Essa exploração do mundano com ritmo acelerado chama atenção, primeiro, pelo refrão: “eu não estou preso e eu não vou ser preso”. Em primeiro lugar, essas declarações terem base nas experiências reais e imediatas do autor adicionam uma camada incrível de compreensão da sua imagem pública e também firmam-na como a de uma pessoa corajosa, que enfrenta injustiças. É quase impossível não gritar “Attica!” ao considerar a situação.
Mas vamos para além do significado mais concreto desse refrão e vamos pensar como o humor em forma de música normalmente coloca como protagonista de suas narrações alguém ridículo cujas convicções estão aquém do compositor e do público. Estaria o eu lírico realmente livre? Não estamos todos presos em celas impostas por nós mesmos (superego) e pela sociedade? É da prisão da realidade que o autor fala? É com um certo niilismo que a próxima estrofe diz “e se isso acontecer, não será o maior dos meus problemas”, mas revela aí o conhecimento de que as barras mais duras de serrar não são as de ferro e sim as da natureza humana.
Comer melão, fazer aula de natação e outros exemplos da fútil liberdade daqueles que se dizem inocentes dão conta de zombar da vida cotidiana, assim como deixam que tenhamos mais empatia pelo narrador quando ele reclama de aparecer em resultados demais em suas buscas virtuais, as egosearches. Mas, quase que escondida, uma referência ao cotidiano classe média diz muito sobre como temos que ler essa obra: Jesus Norris faz referência a ver reprises de Seinfeld na TV. Série essa que muitas vezes é definida como “sobre o nada”, mas na verdade é uma exploração profunda sobre a condição humana num convívio próximo, mas emocionalmente distante e frio. Norris está nos alertando: pode parecer que não estou dizendo nada, mas estou falando sobre tudo que vivemos… E continuaremos vivendo se não mudarmos, por isso o uso do termo reprise.
Gatocracia é uma música tão relevante pelo momento político e também por vir no mesmo ano que Meow The Jewels, mostrando uma clara evolução da música felina. Um salto que não se via/ouvia desde Cats tomar a Broadway de Nova Iorque. A vontade de ser governado por um benevolente, mas incompreensível felino é uma crítica em forma de ode (uma paródia pura) da religiosidade em seu mais concentrado estado: Um amável e fofo ser que me governa e provavelmente não vai me machucar… muito. “Ser governado seria tão mais bonitinho, ser fuzilado enquanto afago o seu pelo macio” resume muito bem esse dedo do meio à autoridade ao retratar o complacente narrador.
Os agudos complementam perfeitamente os vocais e há um solo de guitarra em que eles se transforma na expressão sonora de um animador nascer do sol duma manhã com videogame novo te esperando na sala. Os sintetizadores emulam um gato ao emitir um som que parece mistura de ronronar com miado, uma coisa muito apropriada.
Tornando mais cáustica e evidente sua sátira do modus operandi do homem médio tedioso, a faixa Caucasiano encerra essa trilogia sobre a tristeza que é ser normal. Cada item da lista de posses e atividades do protagonista da canção é um convite a você tirá-las da sua vida se as tiver e mais ainda: livrar-se da postura que o mesmo tem de definir-se por essas trivialidades.
A fala “eu transei com deus e ele era ruim de cama” evidencia exatamente a derrota daquele que conquistou as bobagens que a TV dominical lhe endoutrinou como destino final. A igreja dos tempos modernos com templos em toda sala de estar lhe disse que um emprego chato, carro flex e TV a cabo bastariam para ser seu paraíso na terra. Agora que ele conquistou tudo isso, vê que o prazer divino é mixo, insatisfatório. A transa com deus é metáfora para a vida regrada vivida pelo protagonista. É fácil imaginar que a jornada do personagem é contada de maneira cronológica contrária: a decepção de Caucasiano é o berço da complacência de Gatocracia que vira um misto de rebeldia com um auto “foda-se” em Sistema Carcerário.
Uma jornada tocante que termina (ou começa) com a melancólica harmonia da terceira faixa que é, na minha opinião, a melhor.