Foto por Mario Tama — Getty Images

Não existe dia 2

Bruno Monteiro
eLab Started
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10 min readNov 9, 2017

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Todos os anos o SEC (órgão regulador do mercado de capitais nos EUA) exige que empresas publicamente listadas, ou seja, com ações na bolsa, divulguem os resultados financeiros da organização a investidores e o público em geral, para que estes possam continuar a fazer suas decisões de maneira informada. E por 20 anos Jeff Bezos, fundador e CEO da Amazon, a gigante varejista — e de serviços na nuvem, e de conteúdo em vídeo digital, e de hardware, etc. — escreve a mesma coisa em sua carta direcionada aos acionistas da companhia, mas que serve de verdadeira lição de vida pra qualquer pretenso empreendedor. De fato, se você pegar a primeira versão da carta, publicada em 1997, e compará-la com a mais recente, vai se perguntar se ele sequer se dá ao trabalho de revisá-la entra ano. E precisa? Ela é irretocável e permanece o documento mais sóbrio e singelo sobre o que é exigido para a criação de uma verdadeira empresa de impacto em toda a literatura. Isso porque Bezos entendeu algo que muitos empreendedores, seduzidos pelo glamour e romantismo associados ao meio startup, ainda falham em compreender quando se aventuram em criar suas próprias empresas, mas que é de essencial importância para tal: uma startup não é uma empresa, é um processo.

Mas o que isso significa?

Senta que lá vem história.

Era uma vez um Vale…

Quando pensamos no mundo moderno e as tecnologias que o possibilitaram — o transistor, o raio laser, o sistema operacional Unix — , é impossível não pensar no Bell Labs, o laboratório de pesquisa da AT&T, empresa criada por Alexander Graham Bell, “pai” das telecomunicações modernas. De certa forma este centro foi a incubadora não apenas das criações que viriam a moldar o século XX, mas também do próprio espírito que guiaria milhares de almas empreendedoras a perseguir suas visões de um mundo feito melhor através da inovação. Diferente do restante da companhia, onde funcionários ocupavam cargos com funções pré-estabelecidas dentro de uma hierarquia funcional rígida, e de cujo trabalho eram esperados resultados práticos, dentro do Bell Labs a atmosfera (especialmente para a época) era algo completamente singular. Não apenas os pesquisadores possuíam plena liberdade para decidir em que assuntos iriam trabalhar e de que maneira empregariam seu tempo e esforço, mas tinham também à sua disposição toda a estrutura e equipamentos da empresa que havia envolto o globo em fios de cobre, a única diretriz oferecida sendo: criem os alicerces do mundo de amanhã.

Um dos pesquisadores suportados pelo mecenato da AT&T foi ninguém menos que Claude Shannon, o matemático/engenheiro elétrico responsável pela criação da disciplina da Teoria da Informação e sobre o qual recaem os louros de ter inaugurado a revolução digital que tanto define nossas vidas hoje. Mas talvez a figura mais infame a sair dos corredores daquela consagrada instituição tenha sido William Shockley — co-criador da tecnologia que ainda hoje turbina computadores de todos os tamanhos e primeiro empreendedor raiz a instalar seus negócios naquela região que viria a ser conhecida como Vale do Silício.

Shockley (um bad boy inveterado) viria a incorporar para as gerações que se seguiriam tanto os aspectos mais virtuosos quanto os mais viciosos da estirpe tecnológica que passaria a ocupar as planícies do Norte da Califórnia. Conhecido pela sua falta de tato com os demais, inclemência, arrogância, obsessão com métricas e resultados práticos mas, também, genialidade e capacidade de reunir as mentes mais talentosas de sua época em torno de um projeto em comum, o introvertido porém cândido Shockley se tornou uma espécie de arquétipo do “gênio solitário” do Vale do Silício. Era de tal maneira imerso em seus próprios pensamentos disruptivos que não possuía tempo para considerações terrenas como o bem-estar dos colaboradores ou as externalidades negativas geradas pelos seus empreendimentos, e a quem a única solução para os problemas causados pela tecnologia é mais tecnologia e a meritocracia radical transcende até mesmo as arbitrariedades impostas pela lei e pelo senso comum. “Mover rápido e quebrar coisas” virou o mantra de vários aspirantes a empreendedor, e a cultura por vezes tóxica que eles — que ganharam a não tão afetuosa alcunha de ‘tech bros’ — disseminaram provou outra e outra e outra vez o quanto o mito dos novos heróis da economia digital se sustentava em colunas de barro.

Mas mesmo em meio a tantos escândalos e cortinas de fumaça existe sim algo de substância em meio a todo sensacionalismo que acomete todas as coisas empreendedorismo desde que os gigantes do Vale do Silício capturaram o imaginário popular, e foi o próprio Shockley (mesmo que inadvertidamente) quem deu o pontapé inicial.

Os Oito Traidores e o início do boom

Não tardou muito até que surgissem dentre os empregados de Shockley uma legião de desafetos insatisfeitos com seu jeito abusivo e centralizador de fazer as coisas. Mas eles não se contentaram em escrever uma carta malcriada ao então chefe; ao invés, decidiram unir forças e fazer as malas da Shockley Semiconductor Laboratory rumo a um novo empreendimento onde teriam mais liberdade, salubridade e controle sobre suas criações. Os oito pioneiros, instigados por Arthur Rock — o primeiro investidor serial da Costa Oeste — , formaram em 1957 a companhia que viria a ser conhecida como Fairchild Semiconductor, e o que se seguiu daí não foi nada menos do que a maior história de sucesso jamais contada.

Os “Oito Traidores”, como Shockley os apelidou, não só deram início a um negócio próspero e que não tardou em eclipsar seu progenitor, mas também resgataram os valores da Bell Labs e fizeram da companhia uma verdadeira potência em desenvolvimento tecnológico, criando o primeiro circuito integrado comercialmente disponível e auferindo receitas da ordem de milhões em poucos anos de existência. Mas o maior feito da Fairchild não fora seu sucesso enquanto empreendimento comercial, e sim o efeito catalisador que teve sobre aquela bucólica região hortifrutícola que era o Vale de Santa Clara, mais tarde renomeado “Vale do Silício” pela mídia. Pois os oito engenheiros não se contentaram em tão somente abrir uma nova empresa que desafiasse a hegemonia de Shockley; logo, a Fairchild crescia de forma tão violenta que os recursos necessários para saciar seu apetite se tornavam cada vez mais escassos e o ainda pouco-desenvolvido ecossistema empresarial da região não conseguia atender às suas demandas. A solução encontrada para este problema não poderia ter vindo de forma mais natural: os próprios funcionários da companhia começaram a montar novos negócios — e eram encorajados a isso pela própria gestão da Fairchild!

Logo, uma grande quantidade de empresas — a quase totalidade spinoff da Fairchild — começaram a ocupar os campi empresariais que brotavam em velocidade assustadora naquele pedaço de deserto. Em menos de 12 anos, os alumni da empresa haviam inaugurado 30 novos negócios e empregavam mais de 12 mil pessoas na região.

Mas o alcance do legado da Fairchild não se limitou à primeira geração de empreendedores. Pelas décadas que se seguiram, os valores imbuídos em sua cultura e seu modelo “Bell-siano” de gestão criaram um novo paradigma de empresa de alto-impacto e estabeleceram o Norte da Califórnia como celeiro de uma quantidade enorme das histórias de sucesso empresarial a surgirem nas décadas seguintes. Enquanto os “Oito Traidores” geraram entre si empresas como a Intel e AMD, talvez ainda mais importante tenha sido o efeito que o fluxo de conhecimentos altamente especializados, as redes de contato que se estabeleceram e o compartilhamento de recursos e práticas — exemplificado, por exemplo, pela criação de escritórios renomados de investimento como Kleiner Perkins e Sequoia Capital por ex-membros do laboratório para financiar novos empreendimentos — tenham tido para a transformação de uma região cujo principal produto econômico era o cultivo de nectarinas para um dos maiores PIB’s globais.

Se não fosse pelo dinheiro (e mentoria) desses pioneiros, não haveriam hoje as Apples, Microsofts, Googles ou Facebooks que são o padrão-ouro de todo jovem empreendedor. Hoje, a ampla maioria — senão todas — as startups do Vale do Silício podem traçar sua história como uma ramificação da Fairchild, frequentemente recebendo a carinhosa alcunha de “Fairchildren”.

A história do sucesso do Vale é uma de abertura, comunitarismo e visão compartilhada. Mas o que isso tem a ver com Jeff Bezos e o segredo para criar uma empresa de impacto?

“Você continua usando essa palavra. Eu não acho que você saiba o que ela significa”

O que Shockley não entendeu a respeito de como tocar uma empresa e do que faz uma startup diferente de outros tipos de negócio Bezos entende como poucos. Você só é uma startup se você cria impacto, e só existem duas categorias pra quem você é capaz de gerar impacto verdadeiro: seus clientes e seus colaboradores. Se sua empresa existe para gerar valor pro acionista você não é, nem nunca será, uma startup. Nada te impede de ser um negócio bastante bem-sucedido — grandes estúdios, bancos e empresas do setor energético estão aí como prova — , mas você estará sempre à mercê de ser suplantado por um desafiante mais barato, ágil e eficiente (que o digam Netflix, NuBank e Tesla). E se você acha que isso é suicídio corporativo e nenhum gestor em sã-consciência faria tal coisa, aparentemente você está apostando contra o mercado: a Amazon possui, atualmente, uma capitalização superior a US$ 500 Bilhões de dólares, tornando-a uma das maiores empresas de capital aberto do mundo. E os investidores continuam sedentos por ações da empresa, mesmo com toda garantia de seu fundador de que quem busca a Amazon atrás de dividendos vai dar eternamente com a cara no chão.

Pelo contrário, o foco de Bezos e da Amazon (na outra ponta do espectro em relação à Fairchild) é apenas um: o cliente. Unicamente. Com toda a energia e recursos disponíveis (ou não). Seu mantra pessoal atesta a esse fato:

”The most important single thing is to focus obsessively on the customer. Our goal is to be earth’s most customer-centric company.” — Jeff Bezos

(“O mais importante é se concentrar obsessivamente no cliente. Nosso objetivo é ser a empresa mais cliente-cêntrica da Terra “.)

E como ele faz isso? Entendendo a distinção mais central a qualquer estrategista de longo-prazo, aquela entre as coisas que permanecem constantes e aquelas que não. A partir daí não tem segredo; você constrói uma fundação sólida nas primeiras, que são poucas e a cada dia que passa encolhem mais, mas são de vital importância para qualquer negócio: que o cliente gosta de consideração, que ele pode ser seu maior aliado ou seu maior inimigo dependendo de como você o tratar, que qualidade diz mais respeito às expectativas do cliente do que aos atributos do produto, etc. A partir do momento em que você tem esses pontos internalizados o bastante você estabelece uma fundação sobre a qual pode erigir qualquer empreendimento, desde que entenda que tudo o mais está sujeito a mudança — e apegar-se à qualquer outro elemento do seu negócio é uma sentença de morte. A palavra-chave é adaptação, um exercício de constante ajuste às demandas de seus clientes e à identificação de suas necessidades, que só pode ser feita ouvindo-o e extraindo aquilo que sequer o próprio é capaz de articular. E é por isso que uma startup não é uma empresa, e sim um processo — qualquer organização pode ser uma startup, desde que tenha essa máxima como princípio norteador. Parece fácil, mas na prática é algo com o qual poucos conseguem se comprometer. Pode se traduzir, por exemplo, na necessidade de canibalizar unidades de negócio da própria organização, um movimento que muitos consideraria insanidade (mas que para Clayton Christensen é apenas um falso dilema).

Veja o caso da Amazon, uma empresa que começou vendendo livros pela internet para, no intervalo de uma geração, se tornar uma “loja de tudo” e possuir verticais que vão desde serviços na nuvem até equipamentos eletrônicos, produções midiáticas e, ironicamente, varejo offline. Eles jamais se definiram como uma empresa de livros, gadgets ou software (sua missão é, literalmente, “[…] ser a empresa mais centrada no cliente da Terra, onde os clientes podem encontrar e descobrir qualquer coisa que possam querer comprar online.”) — e os clientes não poderiam se importar menos com isso. Se isso significa gastar US$ 16 Bilhões em P&D anualmente, ou impiedosamente eliminar apostas que não gerem ressonância com o público, que seja. Porque aquilo que realmente importa, as coisas que não mudam, a Amazon tira de letra, sendo frequentemente citada dentre as companhias melhor avaliadas pelos consumidores.

A Amazon de 2025 (se ainda existir) com certeza será completamente diferente da Amazon de hoje, como deveria ser. Bezos não pensa no futuro porque ele sabe que não existe futuro no ramo de tecnologia, apenas o agora. O “dia 2”, se um dia chegar, será o dia em que a Amazon se acomodar em sua posição dominante e deixar de inovar. É nesse dia que ela, após décadas de liderança em entrega de valor ao cliente, deixará de ser uma startup e se tornará apenas mais uma empresa qualquer.

Competir no mercado atual significa buscar diferenciação a todo custo, e ninguém está seguro por mais estabelecido que for ou maior que seja seu porte. Ainda há inúmeras oportunidades de negócios tradicionais por aí, mas elas se vão com quase tanta facilidade quanto surgem e dificilmente serão um terreno fértil pra criação dos próximos bilionários. Mas existe um outro caminho, o caminho das startups, e suas recompensas potenciais são gigantescas. Mas construir uma exige um preço que poucos ainda estão dispostos a pagar: o abandono das certezas e reconhecimento de que não cabe a você a definição das direções últimas que seu negócio irá seguir, e sim aos clientes e seus padrões de consumo.

Mas apenas você pode fazer essa escolha — por enquanto, pelo menos.

Fontes:

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