A classe média é um jogo de autoestima

A identificação com a elite move pessoas contra os próprios interesses

Startup da Real
@startupdareal
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11 min readJul 8, 2020

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Em 2017 um anuncio viralizou nos principais sites da internet. Uma festa que aconteceria nas Bahamas prometia ser o maior festival de todos os tempos.

O vídeo-chamada trazia todas as modelos internacionais mais populares do Instagram. O roteiro prometia os principais artistas do momento e instalações luxuosas numa praia paradisíaca.

Mas não era qualquer praia.

O evento aconteceria numa das ilhas mais exclusivas do mundo, um local que havia sido propriedade de ninguém menos que Pablo Escobar, e estava fechada desde sua morte.

Toda chamada espetacular prometendo um ambiente de luxo e exclusividade foi construída para deixar claro, o evento é apenas para uma elite muito restrita.

O tempo passou e esse festival, que se chamava Fyre, virou uma das maiores catástrofes da história dos eventos, deixando centenas de milhões em prejuízos, processos e pessoas muito insatisfeitas.

A história virou documentário no Netflix e a exposição dos bastidores dessa construção megalomaníaca foram expostos. Em meio ao esquema fraudulento para conquistar investidores e muitos outros crimes cometidos, um trecho deixa escapar uma intenção vai muito além do próprio festival.

Aos 12 minutos e 10 segundos do documentário, os dois fundadores do Fyre Festival explicavam para as modelos qual era o objetivo da campanha:

Nós estamos vendendo sonhos inalcançáveis para o perdedor médio.

Para o cara mediano lá no meio do país.

Como não se reconhecer no espelho

Mateus tem 23 anos e está desempregado.

Morador de São Rafael, a história de Mateus é parecida com outros milhões de jovens habitantes de bairros pobres.

Filho de mãe solteira, e apenas ensino médio, a vida exigiu desde muito cedo que trabalhasse para ajudar nas contas de casa. Sem experiência profissional, a maior parte dos trabalhos que consegue — quando consegue — são bicos de serviços gerais, auxiliar em pequenos comércios locais e favores para outros moradores do bairro.

Além da falta de grana, Mateus sofre de vários outros problemas que o desemprego acaba gerando.

Numa sociedade construída em volta do consumo, onde sua identificação está diretamente ligado ao que possui, não poder participar do ciclo de consumo é um reforço diário de inferioridade.

O próprio ato de procurar um trabalho faz parte desse reforço. A barreira para um emprego melhor está também desconforto de não ter roupas adequadas para o ambiente.

Para o jovem pobre — e muitas vezes preto — o mundo é um ativo opressor reforçando que ele está no lugar errado. É o segurança seguindo no supermercado, a moça que segura a bolsa e troca de calçada ou o carro da polícia que desacelera para encará-lo lentamente.

Mas Mateus, mesmo nessas condições, é importante para inúmeros negócios. Alguém precisa fazer o trabalho que pessoas com muito dinheiro não gostam de fazer.

É assim que, num fim de tarde numa quinta-feira, Mateus desceu até a esquina da rua e encontrou uns amigos conversando. Eles falavam de um novo aplicativo. A ideia era simples. Você se cadastra, pega sua bike ou uma moto e recebe uma grana por cada entrega.

Mas não é só isso. A oportunidade não era um emprego, era muito melhor.

“Você vai ser seu próprio chefe, dono do seu próprio negócio. Trabalha quanto quer e ganha mais se trabalhar mais”

É assim que o discurso do trabalho precarizado chegou nas periferias do país inteiro, não só oferecendo um bico novo para tirar uma grana, mas carregado um discurso que mexe com o valor pessoal.

Para o pobre, ouvir todos os dias que é classe trabalhadora, explorado, desrespeitado e constantemente dependente de ações públicas — por mais que seja a verdadeira condição proporcionada pela estrutura social da desigualdade — reforça um doloroso sentimento.

Quando alguém surge com a oportunidade de adicionar uma maquiagem nessa condição, o dinheiro segue importando, mas poder olhar no espelho e dizer que agora é empreendedor e responsável pelo próprio futuro, mexe com o orgulho e a forma que essa relação de trabalho é percebida.

No início dos aplicativos, não era raro ver postagens nas redes sociais de trabalhadores em condições extremas sendo tratados como heróis empreendedores.

Quem já andou de Uber certamente ouviu uma história de como o motorista tinha outra profissão, mas agora faz o próprio horário e ganha pelo quanto trabalha.

O trabalhador passa a se enxergar como empresário, mas no fim está dirigindo um carro alugado, pelo qual é responsável por qualquer incidente, recebe pouco e ainda precisa cobrir qualquer necessidade eventual.

Por trás da máscara de empreendedor existe um trabalho precário, o alto risco das longas horas de trabalho sem descanso e a promessa de que quanto mais esforço, melhor o retorno.

É com o mesmo truque de maquiar a forma que se percebe na sociedade que a parcela pobre da população também virou alvo de cursos de investimento na bolsa de ações e outras facetas da ilusão empreendedora.

A identificação através do consumo

É muito fácil desenvolver identificação pela similaridade de produtos que utilizamos diariamente. Todas as grandes marcas sabem disso e se aproveitam dessa distorção para vender suas novidades.

Quando um fabricante de celulares entrega seu aparelho voluntariamente para alguém muito famoso, a empresa sabe que a venda não vai aumentar pelos critérios técnicos, mas pela vontade do publico se identificar com um ídolo.

Jaqueline não vai olhar os stories da Anitta e pensar que precisa de um Samsung Galaxy S20 porque a qualidade das selfies são muito boas. A suposta necessidade de comprar o aparelho vai surgir simplesmente do desejo de se sentir mais próxima de sua artista preferida.

É por isso que marketing de influência é um dos segmentos de divulgação que mais cresceu nos últimos 10 anos. E é por isso também que, quando Anitta é flagrada usando um iPhone em público, o estrago para o trabalho de influência que faz com a Samsung é gigantesco.

Todo esse processo é reproduzido em esferas maiores ou menores, mas responde por uma boa parcela das intenções de consumo.

O que no início era um movimento voltado para os esportes e sua cobertura midiática, a transferência da aura do ídolo para a personificação de um produto é uma tática que hoje está em todas as esferas.

Em 1986, por exemplo, Run D.M.C foi o primeiro grupo a receber, fora do nicho esportivo, um contrato de patrocínio de uma marca que antes patrocinava apenas atletas.

Ao perceber que seus fãs passaram a usar os mesmos tênis que usavam, os rappers chamaram a Adidas e fizeram uma proposta. Após lotar o Madison Square Garden com 20 mil pessoas para cantar sua nova música chamada My Adidas, a empresa enxergou o potencial artístico de influenciar o consumo e passou a patrociná-los.

Quem acessa o Instagram sabe o poder dos mimos e recebidos. Pequenos e grandes influenciadores recebem os mais diversos produtos para divulgar em suas contas.

Até mesmo micro-influenciadores, com 20 ou 30 mil seguidores, podem responder por um aumento expressivo do consumo de determinado produto, principalmente quando a estratégia é realizada em conjunto com outros nomes do mesmo nicho.

A RedBull é, provavelmente, a marca mais agressiva nessa modalidade de marketing.

Promovendo eventos nos mais variados esportes, organizando times inteiros, inclusive com duas equipes na Formula 1, e patrocinando uma variedade assustadora de atletas em modalidades diferentes, tudo o que a marca quer é que você abra uma latinha e pense que é tão ousado quanto aqueles atletas.

São 780 atletas patrocinados, 27 times oficiais formados pela RedBull e 26 competições esportivas, que vão desde corrida de aviões até saltos ornamentais de penhascos.

Gerar proximidade e identificação através do consumo é uma estratégia antiga, mas que vai além da pura similaridade entre a pessoa e seu artista favorito. Essa identificação do consumo distorce até mesmo a posição da pessoa dentro da própria sociedade.

E é aí que mora o problema.

Uma visão de pertencimento distorcida

Da mesma forma que empresas utilizam do reforço da autoestima para atrair os mais pobres para empregos que, futuramente, vão aprisioná-los em modelos precários e difíceis de fugir. E assim como as marcas entendem que consumidores sentem-se mais parecidos com seus ídolos, o consumo proporciona uma dissonância de percepção na classe média.

Jeff Bezos aparecer vestindo um colete Patagônia no dia 13 de Julho de 2017 foi suficiente para transformar o acessório no colete a prova de balas daqueles que querem parecer ricos.

Por usar uma camisa com um cavalinho bordado e o mesmo coletinho que o dono da Amazon, o empregado comum, de uma empresa qualquer, assume a certeza de que está mais próximo socialmente do bilionário do que de um trabalhador informal que dirige uma moto entregando pizza em Jundiaí.

Mesmo que 5 mil reais por mês garanta inúmeros avanços em termos de qualidade de vida, essa pessoa tem mais chance acabar dirigindo um Uber ou fazendo bico de serviços gerais, do que de estacionar seu Iate ao lado da embarcação do Bill Gates em Mônaco

A distância entre o consumidor de classe média e alguém verdadeiramente rico é tão grande que as pessoas não conseguem enxergar essa diferença em escala. O texto sobre COVID-19 traz uma boa demonstração sobre como somos ruins em observar escalas muito grandes.

Mas só para termos um exemplo, considere o seguinte:

5 mil segundos são 1 hora e 40 minutos

1 milhão de segundos são 11 dias e meio

1 bilhão de segundos são 31 anos e 7 meses

Em termos comparativos, um salário mínimo que hoje está em 1045 reais, seriam 17 minutos e 41 segundos.

Se você precisar esperar 20 minutos e acabar esperando 1 hora e meia, a distância pode ser irritante, mas aceitável. No entanto, se na expectativa de esperar 2 horas, descobrir que vai demorar 37 anos, a situação é drasticamente transformada. São universos incomparáveis.

Mas essa falha em como a classe média se percebe mais próximo dos ricos está também na aversão de se parecer com os pobres.

Faz alguns anos fui visitar uns amigos em São Paulo e descobri que as pessoas se achavam mais ricas por tomar uma cerveja Stella Artois, de R$ 3,79, do que uma Brahma de R$ 3,29.

50 centavos separam a percepção pessoal do consumidor entre rico ou pobre.

Quando uma diferença de centavos é capaz de fazer alguém se sentir mais rico, imagine como roupas ou telefones celulares com preços propositalmente inflados não fortalecem ainda mais este sentimento.

Como cavamos nossa própria cova

Por normalmente possuírem empregos menos físicos e, em muitos casos, que exigem algum tipo de capacitação intelectual, esses mesmos consumidores que buscam distanciamento dos pobres não se consideram parte da classe trabalhadora.

Por todas essas distorções que já discutimos até aqui, um programador que passa dez horas do seu dia escrevendo códigos de computador, acredita que está imune aos problemas trabalhistas que sofre alguém que passa o dia empilhando caixas num centro de distribuição.

Quando alguém fala sobre direitos trabalhistas, o programador sente-se diretamente prejudicado. Primeiro porque na sua percepção pessoal seu trabalho é especial, ganha bem como trabalhador PJ e acredita que nunca precisou desses direitos.

Só quando o empregador não cumpre com alguma das obrigações mínimas, esse profissional vai entender que, por não ter uma relação trabalhista regulamentada, na hora que precisar desses direitos não terá onde recorrer.

A maioria desses trabalhadores só descobrem a falta que direitos trabalhistas fazem no momento em que precisam deles. E mesmo assim, muitos acabam tolerando abusos e irregularidades por um outro motivo, e que nos leva para o segundo ponto.

O segundo ponto é ainda mais trágico. Por não se enxergar como classe trabalhadora e acreditar que eventualmente será um empresário muito bem sucedido ou uma pessoa muito rica, esse trabalhador toler abusos e a perda de direitos muito importantes, porque acreditam que custarão caro quando chegar a vez deles.

Num ótimo exemplo do que Paulo Freire se referia ao dizer que quando educação não é libertadora o sonho do oprimido é se tornar opressor, esse trabalhador sabe que o mesmo tipo de exageros e explorações, sem direitos garantidos, que é submetido, será importante quando ele for construir seu império milionário.

O mesmo vale para praticamente qualquer tentativa que busque trazer um pouco mais de dignidade para pobres e trabalhadores. Mesmo esses direitos sendo amplamente válidos não apenas para quem está em piores condições sociais, essas iniciativas são bruscamente rejeitadas pela classe média.

Assim, programas que buscam eliminar a educação pública, o sistema único de saúde, aposentadoria, auxílios financeiros e qualquer política que, do ponto de vista empresarial, incentive os lucros e o crescimento acelerado, são apoiados por quem acredita ser rico e não enxerga que também será prejudicado.

É nesse jogo de autoestima e percepção que os grandes empresários investem ao tentar catequizar multidões com ideias de empreendedorismo e meritocracia.

Uma sociedade convencida que toda riqueza é fruto do trabalho duro, que renega o impacto da desigualdade no desenvolvimento do individuo e descredibiliza a importância dos direitos para proteger cidadãos de abusos econômicos, só beneficia um grupo muito pequeno.

A estratégia de fazer a classe média se enxergar como rico vem sendo usada com muito sucesso para proteger super ricos de impostos e remover direitos dos mais pobres. Inclusive bancando eleições para políticos que estão lá para proteger os interesses desses grandes empresários.

Mais ainda, a estratégia de alimentar a autoestima dos mais pobres e fazê-los acreditarem que são empreendedores ou investidores, aceitando condições precárias e rejeitando direitos básicos, favorece o surgimento de negócios bilionários que seriam impossíveis numa sociedade que protege o direito dos seus trabalhadores.

No fim, programadores, engenheiros, designers, administradores, analistas e todos que se enquadram em profissões que não se identificam com trabalhadores ou pobres, acabam precisando trabalhar cada vez mais, por salários menores, com menos direitos e mais abusos.

Mas alienados de como essa estrutura também afeta a classe média que se acha rica, continuam acreditando que o problema não é deles ou que é será temporário.

Na expectativa de se tornar o novo super rico, a classe média egoísta vai acabar também uberizada.

É só uma questão de tempo.

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