Como criticar alguém, fazer um jantar vegano e não prejudicar judeus

B é um subconjunto de A, mas A não está contido em B

Startup da Real
@startupdareal
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8 min readJul 27, 2018

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A internet é um lugar difícil.

É extremamente comum alguém pegar uma pequena fagulha de ideia e usar para causar um grande incêndio.

Mas para criticar de verdade, é preciso método.

O startupdareal foi criado com uma ideia simples: apontar incoerências do discurso empreendedor. O problema é que a internet ainda não aprendeu a interpretar informações sem polarizar conceitos.

Tem sido uma batalha difícil quebrar essa ideia de polarização e explicar que não estamos num jogo de tudo ou nada. Que não é porque eu odeio o que fulano diz, que preciso odiar tudo que vem desse fulano.

Estou escrevendo este texto porque essa semana aconteceu o mesmo problema diversas vezes, na grande maioria das vezes em comentários via DM.

Tem acontecido de gente enviando prints de empreendedores, mas com comentários agressivos, e que vão muito além do foco que eu considero que merecedor de críticas.

Não é porque eu acho que a forma que uma pessoa vende empreendedorismo está errada, e ataco este ponto, que eu preciso avançar e atacar sua vida pessoal ou abusar dos xingamentos.

Uma crítica deve ter foco. Você deve inclusive ser capaz de admirar as pessoas que você critica — nem sempre é possível — por outros atributos que não sejam o alvo do questionamento.

A gente não aprendeu teoria de conjuntos

Eu tive um ensino médio muito ruim.

Estudei em colégios públicos e, por mais que tenha aprendido programação muito cedo e trabalhado como analista grande parte da minha vida, nunca soube matemática direito.

Mas lá perto dos 30 anos descobri que física era uma paixão e que gostaria de estudar formalmente. O problema é que para isso eu precisaria revisar tudo que já tinha visto sobre matemática, desde o ponto mais básico do ensino infantil.

Teoria de conjuntos é uma das primeiras ideias que a gente aprende na matemática fundamental, mas como tudo parece muito simples, é comum ignorar o que o conceito significa e como pode ter aplicações importantes na vida prática e no raciocínio lógico.

Para mim foi de extrema importância revisitar este conteúdo.

Nassim Nicholas Taleb no livro Skin in the game, descreve o que ele chama da lei das minorias, onde faz um uso bem didático da simples ideia de conjuntos para descrever uma dinâmica social.

Segundo Taleb, praticamente todas as bebidas vendidas nos Estados Unidos são da categoria Kosher, obedecendo as leis judaicas em sua produção:

Segundo a Wikipedia:

Algumas características podem fazer com que os alimentos não obedeçam a essa regra, como a mistura de carne e leite, produtos de Israel que não foram pagos de forma justa, a utilização de utensílios de cozinha que foram anteriormente utilizados em produtos não Kosher. A carne bovina judaica passa por um processo de retirada do sangue onde as peças (quartos dianteiros) são imergidas em água gelada, retiradas para serem salgadas com sal grosso e, após isso, são imergidas novamente em água gelada para retirar totalmente o excesso de sal.

Quando alguém se da conta disso, é impossível não pensar em como algo que é importante apenas para uma pequena parcela da população, menos que 3%, toma conta do mercado aponto de ditar a tendência de produção para mais de 90% das bebidas como uma enorme gama de outros produtos.

No livro, Taleb segue explicando a lei das minorias, mas ao ler o conteúdo só conseguia pensar em matemática.

A resposta do dilema Kosher, para mim, está nos conjuntos: alguém Kosher jamais vai consumir não-Kosher, no entanto, alguém não-Kosher pode consumir Kosher e não-Kosher.

Quando é necessário desenvolver uma solução que alcance um número maior de pessoas, pensar na teoria de conjuntos pode dar uma boa ideia de como alcançar um resultado bem próximo do ideal. Neste caso, que englobe o máximo de pessoas.

Alimentos não-Kosher não fazem parte do conjunto alimentar dos Kosher, mas já no contrário, alimentos Kosher são apenas um subconjunto dos que comem de tudo.

A mesma solução poderia ser utilizada quando estamos dando um jantar e temos um convidado vegano.

É mais inteligente cozinhar uma refeição apenas vegana, já que todos podem comer, do que cozinhar algo não-vegano excluindo alguém. Não fosse as brigas ideológicas que envolvem a questão, a solução estava pronta e bem simples.

Pensar em conjuntos sempre que encontrar um impasse lógico pode ajudar bastante, mas talvez sejamos apresentados cedo demais ao conceito, não conseguindo aplicar essa ideia quando nos tornamos adultos.

Críticas são dependentes de domínio

Imagine Mário Santos, um professor de Educação Física.

Santos sabe que para um músculo crescer, ele precisa sofrer pequenas microfraturas. Aprendeu na faculdade que são as cicatrizações dessas microlesões que aumentam a massa muscular e fortalecem seus alunos.

Dando aula em academias, Santos enxerga na prática como aplicar estressores é um fator decisivo no desenvolvimento muscular. Os músculos melhoram com o estresse.

Mas a informação de Santos é dependente do seu domínio profissional — aqui entenda domínio como sua área de conhecimento.

Quando Juliana, filha do nosso professor de Educação Física, quer brincar no parquinho de areia, é repreendida pelo pai. Para ele, a criança pode adoecer em contato com os micróbios do ambiente.

Nosso professor de Educação Física consegue compreender que estressores deixam seus alunos mais fortes, mas não consegue entender que, ao deixar a filha brincar no ambiente sujo, seus sistema imunológico sofre um efeito similar, tornando-a mais resistente.

O conhecimento de Mario Santos sobre hormese, princípio biológico que descreve essa relação entre estressores e fortalecimento é dependente de domínio.

Ao sair do domínio que está familiarizado, Mário deixa de compreender o princípio.

Por mais que — quando falamos em conhecimento — dependência de domínio seja ruim, quando estamos falando de críticas devemos ser bastante específicos sobre qual campo estamos atacando.

Caso contrário, os propósitos se perdem e injustiças passam a ser cometidas.

Basta observar as principais falácias lógicas para ver que todas elas tentam garantir um único objetivo: manter a argumentação vinculada ao domínio.

Uma falácia ad-hominem, por exemplo, demonstra que você deve ter como alvo do seu argumento a contraposição ao argumento do opositor. Atacar a pessoa ao invés do argumento, fere a lógica. Aqui, para nós, foge do domínio.

O mesmo pode ser visto em inúmeras outras falácias lógicas que tentam desviar o foco do argumento para fora do domínio.

Quando estudamos lógica aristotélica lá em filosofia, fica difícil não considerar conjuntos e domínios.

Não é disso que estou falando

Em discussões na internet é muito comum ter que devolver a discussão para o domínio original.

Quase diariamente eu preciso lembrar alguém de que estamos saltando para fora do conjunto onde a discussão está contida, e por normalmente estar fazendo críticas, é muito fácil abraçar tudo o que aparece e causar algumas injustiças no caminho.

Quando critiquei Elon Musk sobre o submarino, por exemplo, surgiram dezenas de pessoas para dizer que a Tesla não é tão relevante quanto dizem, ou que o trabalho da Space X é superestimado.

Faz sentido questionar que ele quis criar uma imagem altruísta, enquanto seus funcionários passam duras dificuldades. O que não faz sentido, é associar a causa com o trabalho e resultados da Space X.

Foi necessário parar inúmeras conversas para simplesmente voltar ao ponto principal: esse é um outro assunto, estou falando apenas sobre a interação dele com o resgate das crianças tailandesas.

O mesmo acontece quando me perguntam sobre a Bel Pesce, tentando me fazer cair no mar de críticas exageradas.

Eu posso admirar a trajetória acadêmica e profissional da Bel e, ao mesmo tempo, criticá-la pelos discursos envolvendo empreendedorismo, sobre a ideia da hamburgueria e, principalmente, sobre o escândalo dos diplomas.

São domínios de discussão completamente diferentes.

Eu não concordo com a maioria dos discursos sobre empreendedorismo dedeterminado Fulano, mas quase diariamente preciso me levantar a seu favor quando alguém me envia alguma DM, tentando criar uma confusão muito além do foco que acredito ser passível de crítica.

Outro exemplo aconteceu exatamente enquanto escrevo este texto.

Com o anúncio de que o astronauta Marcos Pontes, pode sair como vice de Bolsonaro à Presidência da República, questionaram minha opinião sobre o assunto.

Respondi apenas que me deixava triste, por ver alguém que considero muito inteligente e com uma trajetória interessante se juntando com alguém que considero perigoso pelo seu discurso político.

Foi aí que começaram a surgir críticas ao desempenho profissional do astronauta em suas missões pela NASA ou sua falta de comparecimento no cenário científico nacional.

Entendo que essas críticas possam ser verdadeiras, mas eu também entendo que elas fogem do alvo em questão, o posicionamento político.

Em um dos podcasts que participei, tive que reforçar que acho o fato do Fulano ter se tornado um bilionário um fato digno de mérito. Qualquer pessoa que alcança esse ponto, por mais privilégio e sorte que tenha, merece crédito pela conquista.

Mas eu não preciso desacreditar sua trajetória para atacar seu discurso.

O mesmo é válido no caso da Bel Pesce. Quem me dera ter estudado onde ela estudou e feito os estágios que ela teve oportunidade de fazer. Mesmo com todos os seus privilégios, insisto, são feitos que merecem crédito.

A gente pode até discutir, e é válido, como seria muito mais difícil ou até impossível para outras pessoas em classes menos favorecidas, mas o crédito de passar pelos processos ainda existe.

Nós podemos sim criticá-la por ter mentido sobre o número de graduações e alguns projetos que afirmou ter participado, mas isso não apaga alguns de seus méritos. Não é só mérito, mas existe algum mérito contido.

E ninguém precisa gostar de todo mundo, mas também não precisa odiar gratuitamente.

Quando você vai numa lanchonete e não gosta da comida, sua crítica é ao hamburguer, e não à relação extraconjugal do chapeiro com moça da farmácia.

Da mesma forma, quando estamos criticando a posição profissional de alguém, devemos tomar cuidado para não apagar seus méritos históricos ou atacar outros pontos — as vezes passíveis de crítica — mas que não estão relacionados ao argumento central.

Para tecer críticas é preciso aplicar um olhar muito prático e bem pouco apaixonado.

Caso contrário, a gente começa a tomar a parte pelo todo.

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