Como deixei de ser um reaça

As mudanças na minha visão de mundo

Startup da Real
@startupdareal
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11 min readAug 16, 2021

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Texto publicado na newsletter dia 06 de Novembro de 2020 e adaptado para postagem.É um texto bem pessoal e não foi originalmente escrito para ser postado publicamente, é apenas um relato pessoal.

Sempre que comento que há alguns anos eu era bem conservador e reacionário, as pessoas me pedem para falar sobre como aconteceu essa mudança tão radical.

Falar sobre isso não é fácil. Não foi um processo estruturado e muita coisa se cruza no meio da história da minha vida.

Mas de uma forma bem resumida, acho que a sequência de acontecimentos foi como descrevo aqui.

Eu venho de uma época onde as discussões políticas eram bem menos frequentes.

Quem nasceu nos anos 80 e teve parte de sua infância e adolescência nos anos 90 sofreu um processo de formação política um pouco diferente.

Ainda mais por legalmente ser filho de militar — fui criado pelo meu avô — política nunca foi de fato um assunto discutido na minha casa.

Eu também estudei em escolas públicas muito ruins.

Nunca tive filosofia, sociologia ou essas outras matérias que hoje são comuns no currículo do ensino médio. Eu já pagava imposto de renda a primeira vez que ouvi falar sobre Karl Marx.

Minha adolescência foi num bairro pobre e com uma forte presença evangélica. O caminho mais comum para os mais jovens era participar de uma igreja e desenvolver sua sua conduta moral a partir dali.

Fazer parte de uma igreja era uma forte expressão de valores morais. Até mesmo quem não era evangélico aprendia a expressar parte dos valores da igreja como forma de ser visto positivamente pela sociedade.

Grande parte dos meus amigos que traficavam drogas, andavam armados e cometiam os mais variados delitos não deixavam passar o culto de domingo à noite.

E sim, quando você cresce na periferia seus amigos fazem essas coisas. Até não faziam quando você era criança e os conheceu, mas um dia, por algum motivo, você descobre que estão fazendo.

Um dia você está em casa e seu irmão chega comentando que a polícia fuzilou a casa do Leozinho — nome fictício.

Só mais um dia.

Olhando em retrospecto, é natural desenvolver uma visão mais conservadora num ambiente assim.

Chegando perto da vida adulta e conquistando meu primeiro emprego formal, a tendência natural foi querer me afastar dos amigos da periferia. Eu tinha um bom emprego e, diferente deles que passavam o dia na esquina, eu podia ser alguém.

Estudei e agora tinha uma carreira.

A história que eu contava na minha cabeça é que, se eles tivessem passado todo tempo que passei no computador, aprendendo coisas novas, eles também teriam as mesmas oportunidades que eu tive.

Principalmente nessa fase da vida, é muito difícil entender as desigualdades gigantescas que cercam realidades muito próximas. Tudo o que se apresenta no mundo parece seguir uma lei natural, que as coisas são como elas são.

Essa ordem natural serve como uma fácil justificativa para uma visão superficial do mundo.

Depois disso fui morar fora, tive outras experiências profissionais e me vi numa situação onde a vida acontecia naturalmente. De tempos em tempos meu salário aumentava, eu conhecia pessoas novas que me ajudavam e as coisas iam caminhando.

Não é como se eu fosse rico ou ganhasse um enorme salário, mas parecia que era só continuar naquele caminho que tudo terminaria bem.

Durante quase toda minha vida eu trabalhei em empresas que prestavam consultoria para órgãos públicos.

Nessa distorção entre privado e público, foi muito fácil achar que o serviço público era ineficaz e repleto de preguiçosos.

Afinal, eu tinha a cobrança de ficar até 10 horas da noite para resolver todos os problemas, enquanto os concursados começavam a ir embora perto das 5:30 da tarde.

Minha visão era de que eles sempre faziam o mínimo, enquanto eu, a iniciativa privada, remava para o barco andar.

E como o mundo era o que era, pra mim estava óbvio que eu deveria fazer tudo o que fosse necessário para agradar meu empregador. Se eu não fizesse, outra pessoa seria colocada no meu lugar para fazer.

Frase que todo conservador repete algumas vezes ao dia: “se não quiser trabalhar, tem quem queira.”

Foi muito natural começar a odiar greves. Sempre que um órgão que era meu cliente entrava em greve, isso atrasava meu trabalho e dificultava bastante minha rotina. Tudo o que era um direito me soava como uma forma de abusar da liberdade e atrapalhar a vida dos outros.

Afinal, se não está satisfeito, basta procurar um outro emprego e parar de atrapalhar a vida de quem quer trabalhar. Soa bobo falar isso hoje em dia, mas dentro de toda a construção social que eu estava inserido, esse era o pensamento mais óbvio que tinha.

Tudo é culpa sua e tudo só depende de você.

Lembro de ter ficado indignado quando tive salário descontado porque cheguei 15 minutos atrasado pela manhã no trabalho, mesmo depois de virar a noite anterior num cliente.

Mas isso ainda é fácil de justificar quando você acha que seu papel é dar tudo de si, ao mesmo tempo que também precisa obedecer as regras impostas pela empresa.

A culpa de chegar atrasado era só minha.

Sem uma visão politizada, tudo o que existe de possibilidade é se doar ao máximo para conquistar uma posição melhor na vida. Somando isso com alguns privilégios e eventos de sorte, é fácil escrever a narrativa de que você conquistou tudo o que tem mesmo que na prática nem seja muitoporque se esforçou.

É muito fácil, principalmente porque ninguém quer internalizar a narrativa de que é um fodido, criar um recorte para contar sua própria história de superação.

A cabeça conservadora — dentro desses moldes que fui criado — está o tempo todo tentando justificar sua posição no mundo, ao mesmo tempo que tenta se afastar de ser associado ao que é visto pela sociedade como algo negativo.

Como você vai sustentar a hipótese de que dizer que bandido bom é bandido morto, é errado? Ou que trabalhar dando o máximo de si em horas extras é ruim?

É a proteção de valores que te fazem moralmente superior aos outros.

Existem algumas pautas que são muito difíceis de abordar, porque a própria ponderação sobre o assunto faz a pessoa que está presa nesse cenário soar conivente com o problema.

As respostas são sempre muito simplificadas, e normalmente atribuem algumas características específicas à sociedade e aos seres humanos.

A primeira ideia é que tudo só depende do indivíduo. Quer emagrecer? Só parar de comer essas besteiras. Não está satisfeito com o trabalho? Procura outro.

Engravidou? Que pena, era só não ter transado. Não consegue estudar? Só sentar a bunda e ler. Quer praticar uma atividade física? Só calçar o tênis e ir para rua correr.

Pela minha história de vida, defender essas afirmações simplórias e que vão contra tudo o que explica a psicologia moderna e a história da humanidade fazia muito sentido.

Quando você não vive as fricções sociais, quando não sofre das mesmas dificuldades que os outros, é natural acreditar que passou dificuldades e apenas se esforçou para superá-las.

Morando em Brasília no meio das manifestações de Julho de 2013, me juntei aos milhões de outros brasileiros que buscavam algum tipo de melhora. Mas ao mesmo tempo, senti uma real necessidade de entender o que estava acontecendo.

Quando fui estudar empreendedorismo fora do país, logo depois das manifestações de junho, uma série de pontos se juntaram.

A primeira vez que ouvi falar de Mises foi durante uma aula nesse curso de empreendedorismo. Um italiano com uma história de vida impressionante mencionou um livro pequeno e que explicava tudo o que a gente precisava para entender economia e política.

Como fazia parte do meu interesse naquele momento, fui atrás de mais informações e comecei a me entender Libertário.

Fazia muito sentido o mercado se regulando, o valor da livre concorrência e óbvio, a incompetência do meio público. É fácil bater em quase toda política de esquerda utilizando esses argumentos, principalmente quando se nega a realidade.

Mas como tudo isso mudou

Explicar num texto como mudanças tão drásticas aconteceram numa visão de mundo é muito difícil.

Textos, para serem bons e instigantes, precisam definir uma ordem de narrativa e construir uma visão mais cronológica dos acontecimentos.

Mas na vida real nem tudo funciona assim, ideias totalmente cruzadas podem habitar o mesmo pensamento por anos, até que se entenda as contradições e passem a fazer sentido.

É por isso que essa parte do texto pode não fazer muito sentido em sua ordem de coerência entre as ideias, mas é porque a realidade muitas vezes não é tão coerente assim.

Foi indo atrás do que era essa ideia de livre mercado e liberdades individuais que eu comecei a questionar algumas coisas. Na busca por me tornar um mais libertário, quase anarco-capitalista, foi que a esbarrei na forte dissonância entre a teoria e o mundo real.

Enquanto eu lia a ideia de que o livre mercado premia os melhores e mais esforçados, eu me lembrava de todas as vezes que sentei em mesas com donos de empresa de tecnologia, ouvindo sobre acordos de não contratar funcionários de outras empresas do mesmo ramo para abaixar o teto salarial e não “se tornar refém de talentos”.

Se ninguém está disposto a pagar mais pelo funcionário, ele não tem como barganhar para aumentar sua remuneração. Fica fácil dizer para ele “se não está satisfeito, procura outro emprego” quando está combinado com outras empresas que esse emprego não vai existir.

E na tentativa de convencer a mim mesmo de que isso só acontecia no Brasil porque algum tipo de favorecimento público protege essas empresas, me deparei com notícias das maiores empresas de tecnologia do planeta, num dos lugares onde o mercado é o mais livre possível, fazendo exatamente a mesma coisa.

Google, Apple e outras grandes empresas do vale do silício foram pegas num grande esquema de cartel para fixar os valores salariais.

As empresas se organizam contra os trabalhadores para proteger seus próprios interesses. Pode não parecer, mas para mim juntar essas peças fez muita diferença.

Como alguém pode acreditar que deixar as empresas sem nenhum tipo de regulamentação, vai trazer benefícios para todo mundo?

Foi ai também que mudei minha visão sobre sindicatos.

Eu tinha muita raiva de ter que pagar um imposto para um grupo que eu nem sabia o que faziam. Todo mês de agosto eu tinha que fazer um documento e levar pessoalmente no sindicato, para evitar que descontassem o valor equivalente a um dia de trabalho.

Mas depois de juntar esses pontos eu entendi que o trabalhador sozinho não tem nenhuma força perto da quantidade de poder e dinheiro que as grandes empresas têm.

O potencial de mobilização politica das empresas é esmagador perto de um trabalhador assalariado que pode ser demitido com a simples ligação de um diretor de outra empresa.

E isso não remove que existem sindicatos bons e sindicatos ruins. Nada disso. Mas ter uma representação ampla da categoria profissional é importante para lutar por melhorias e impedir a formação desses tipos de esquemas.

É por isso que grandes empresários abominam sindicatos e, nos EUA, as grandes empresas bloqueiam a todo custo as tentativas de formação sindical.

Trabalhadores sindicalizados podem lutar com um pouco mais de igualdade.

Isso serviu também para mudar minha visão sobre eficiência publica e privada.

Ficou claro que muito do que é visto como privilégio no serviço público são apenas os direitos trabalhistas sendo seguidos como deveriam ser.

Sair 18 horas ao final do dia não é nada mais do que o direito de quem já contribuiu com o combinado. E ficar até 3 horas da manhã resolvendo problemas sem nenhuma forma de recompensa extra não faz de ninguém um herói.

Hoje em dia acho mais fácil encontrar corrupção e ineficiência na esfera privada do que no meio público. A única diferença é que no meio público todos estão apontando o dedo, já que na esfera privada esses dados são maquiados para marketear um sucesso muitas vezes inexistente.

Na esfera pública os dados estão aí para todos verem.

O NuBank, que fechou o ano com prejuízo de 313 milhões em 2019, é visto como um grande exemplo de sucesso. Mas os correios, com sua gigantesca estrutura logística e respeitando todos os direitos dos profissionais, registrou lucro de 102 milhões no mesmo período, mas é visto como uma empresa que precisa ser salva pela iniciativa privada.

Pior ainda é que eu nem entendia que empresas públicas existem para atender à população e não para dar lucro.

Quando você começa a olhar para os detalhes, entende que a narrativa para estimular privatizações cria essa distorção que nos faz achar que a iniciativa privada é mais eficiente, mas na realidade as práticas corruptas e resultados negativos acabam sendo ocultados para poupar a imagem do negócio.

Na mesma época em que passei a olhar mais para a política, discussões como racismo e feminismo se tornaram mais comuns e mais frequentes. Tudo o que eu tinha lido sobre a ideia libertária ia na direção da liberdade individual.

Mas no lado prático, o que existia era uma grande defesa da liberdade de ter preconceitos, mais do que da ideia do indivíduo poder desfrutar de sua liberdade plena.

Era muito mais importante para os libertários defenderem o direito de falarem absurdos sobre mulheres, do que a defesa das mulheres viverem livre de preconceitos e estigmas sociais.

E isso se aplica para todo espectro de minorias.

Dos gays aos pretos, trans e mulheres, para esse grupo o importante era defender o direito de poder ofender, mais do que reconhecer a necessidade de mais liberdade para estes grupos, simplesmente porque o contexto histórico prejudicou todos eles durante séculos.

Você começa a notar que liberdade não é exatamente o que estão defendendo. Pelo menos não a de todo mundo.

Eu provavelmente fui um dos que tinha uma visão mais à direita e que ficou perdido no caminho da polarização. Não acompanhei a radicalização que se seguia na direita e não me identifiquei com as pautas que vinham sendo defendidas.

É um pouco por isso que defendo tanto que as pessoas leiam Sapiens. Mesmo trazendo pontos que podemos discordar, o livro fornece uma bagagem histórica impecável para mostrar que existe um enorme dano histórico e que a vida moderna ainda carrega seus efeitos.

Mas para a direita agarrada ao sonho da meritocracia, reconhecer que existe racismo, sexismo e outras formas de preconceito implica em aceitar que nem tudo depende do indivíduo.

É impossível exigir resultados iguais de alguém que carrega as chagas da história em seus ombros.

Depois que entendi estes pontos, foi se tornando cada vez mais difícil sustentar ideias conservadoras. A bizarrice do “liberal na economia, conservador nos costumes” não faz o menor sentido para mim.

Como é possível ter liberdade econômica quando existe um grupo hegemônico querendo te prejudicar por causa da sua cor? Como você pode ter qualquer liberdade econômica, quando não consegue usufruir de direitos civis mais básicos por causa da pessoa que você se casou?

É bizarro pensar que existe um grupo que realmente imagina que o Estado é incompetente para lidar com questões econômicas, mas deve moderar como as pessoas se relacionam entre si.

No fim, este texto acabou nem ficando como imaginei, talvez faça outro mais interessante no futuro. Mas como realmente não foi um processo claro e proposital, as informações e mudanças de visão acabam surgindo de diferentes direções.

Mas na prática, o fato é que deixei de ser um reacionário conservador, porque passei a entender as incoerências e distorções que esse pensamento carrega.

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