Como pensar sobre coronavírus, pandemia e crise econômica

Uma pequena bagagem teórica para enfrentar a pandemia sem desinformação

Startup da Real
@startupdareal
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23 min readApr 22, 2020

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Organizei o texto para ser fácil de consultar quando for necessário rever algum argumento.

Os tópicos principais estão todos enumerados abaixo e mesmo podendo ser lidos individualmente, pode perder um pouco do significado sem a referência de tópicos anteriores.

  1. Qual o real problema da COVID-19
  2. Como funciona o crescimento exponencial
  3. O que faz o coronavírus diferente das outras causas de morte
  4. Numa pandemia não é só o vírus que mata
  5. Como a ciência funciona
  6. A ciência está sempre errada
  7. Mas então, por que confiar na ciência?
  8. Mas por que estudos não se concretizaram?
  9. O que fazer quando faltam evidências?
  10. O princípio da precaução
  11. E a economia, como fica?
  12. Não sei mais no que acreditar
  13. Em quem confiar?
  14. O que você vê não é tudo o que existe

Como um texto extenso e repleto de informações, erros podem surgir e serão ajustados pontualmente.

No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde anunciou que a COVID-19 havia se tornado, oficialmente, uma pandemia. Uma crise epidêmica fora de controle e presente em diversos países.

A principal característica da COVID-19 e que torna o problema grande, não é sua taxa de letalidade, mas sua relativa facilidade de transmissão. Não à toa, em 4 meses, o vírus se espalhou completamente pelo mundo todo.

No momento em que escrevo, existem apenas 15 países no mundo sem nenhum caso de coronavírus confirmado, todos eles muito pequenos.

A tendência é que em pouco tempo estes 15 países deixem de ser exceção. A capacidade de transmissão do vírus é alta o suficiente para sabermos que, ao primeiro caso identificado, existe a certeza de que outros casos também surgirão.

Desde então o que vimos no mundo foi uma rápida escalada de três pontos fundamentais:

  1. O número de infectados e mortos aumentou exponencialmente
  2. Adoção de medidas de contenção para evitar a transmissão
  3. Uma guerra de informação foi iniciada para tentar reduzir a impressão pública sobre os reais riscos do coronavírus.

Estes três tópicos principais reúnem tudo o que existe de mais importante no mundo neste momento. Nada que está acontecendo agora é mais fundamental do que compreender muito bem essa crise e navegar entre essas três questões fundamentais.

Toda confusão na compreensão destes três pontos fundamentais que o mundo está vivendo, é reflexo da falta das mesmas bases teóricas, e para isso é necessário estressar um pouco esses assuntos, que são:

  1. Como lidar com riscos desconhecidos
  2. Como a ciência trabalha
  3. Como saber em quais informações confiar

Podem parecer questões bobas olhando isoladamente, mas em meio ao medo e tensões levantadas pelo caos da pandemia, pode acabar sendo muito difícil navegar por esses assuntos.

Qual o real problema da COVID-19?

Eu sei que alguns dos pontos aqui serão óbvios ou repetitivos, mas é necessário colocar todos na mesma página antes de abordar questões mais específicas.

É pela falta do termo comum que discussões não chegam à lugar algum.

Para discutir um assunto tão sério como este, não podemos correr o risco de confundir questões ou falar de problemas diferentes. Estar na mesma página é essencial para toda parte mais complicada.

Quando os primeiros casos de coronavírus chegaram ao Brasil, a primeira dúvida que surgiu era a taxa de letalidade em relação ao número de casos identificados. No início, estimava-se que a mortalidade poderia variar entre 0,8 e 3%.

Hoje sabemos que essa taxa pode variar muito dependendo de detalhes como faixa-etária e condições de saúde preliminares. Mais ainda, entendemos que o ambiente e a cultura dos próprios países também influenciam na divergência desse percentual.

No momento em que escrevo este texto, a taxa de letalidade no Brasil está em 6,3%, mas existem diversos problemas neste número. Vamos falar sobre isso um pouco mais adiante.

Quando pensamos em doenças e percentual de risco, o natural é abordar a informação do ponto de vista individual.

se dentro dos casos de coronavírus, apenas hipotéticos 1,5% morrerem, qual é a chance de, logo eu, morrer disso?

Ao pensar individualmente a questão parece ser muito menor do que quando olhamos para o país inteiro, ou melhor, para o mundo inteiro.

E para isso precisamos entender algo que a maioria das pessoas não consegue perceber com clareza, mesmo utilizando palavras como exponencial e escalável o tempo todo.

Como funciona o crescimento exponencial

A sabedoria popular costuma usar o termo exponencial para qualquer coisa que merece alguma atenção por crescer bastante, mesmo que esse crescimento não seja realmente exponencial.

Mesmo olhando para a curva no gráfico, acaba sendo muito difícil olhar para a vida real e aplicar a mesma relação de crescimento. Somos muito bons em observar o mundo em operações de soma ou subtração, mas grandes operações de divisões e multiplicações tendem a nos confundir bastante.

Existe um exemplo antigo e que é utilizado para demonstrar como um crescimento exponencial funciona, e pela nossa falta de familiaridade com multiplicações, o exemplo inevitavelmente choca todos que o leem pela primeira vez.

Essa lenda aparece de diversas formas e com diversas modificações, mas para evitar voltas, crio aqui minha própria versão em português.

A história conta que inventor do xadrez teria pedido grãos de arroz ao rei como recompensa por sua mais recente invenção. A regra utilizada para contar quantos grãos de arroz receberia, seria multiplicando através das casas do tabuleiro.

Dessa forma, o rei deveria calcular: 1 grão de arroz para a primeira casa do tabuleiro, 2 grãos de arroz para a segunda casa, 4 grãos para a terceira, 8 para a quarta, e assim sucessivamente, dobrando o valor ao longo de todas as casas do tabuleiro, pelas 64 casas.

Antes de continuar, pense você num número, mas um número bem alto, e que acredita que será o total de grãos de arroz que o inventor receberia.

A lenda ainda conta que o rei teria caído na gargalhada por pagar tão pouco por uma invenção tão brilhante, mas só até descobrir o que este número significava.

O inventor deveria receber do rei 18,446,744,073,709,551,615, ou pouco mais de dezoito quintilhões de grãos de arroz. Só para conseguir visualizar, um saco de 1 kg de arroz tem mais ou menos 55 mil grãos.

Só na casa 54 do tabuleiro, já teríamos mais que toda produção mundial anual de arroz. Este número ainda se multiplica algumas vezes.

Esse é o tipo de estranheza que o crescimento exponencial causa quando não entendemos exatamente do que estamos falando. E quando o assunto é contaminação e epidemias, principalmente como foi observado no início com a COVID-19, este é o comportamento esperado.

Quando algo possui uma capacidade exponencial de transmissão, espera-se que o número de contaminados seja grande, e por isso, o número de mortes também.

Pensando no individual, como sugerido lá em cima, a ameaça parece pequena. No entanto, quando olhamos para a realidade exponencial do vírus, lembramos que 1,5% da população mundial é 114 milhões.

E mesmo que toda a população não seja contaminada, digamos que apenas 50% seja, trazendo um percentual realista, 57 milhões de mortos ainda é muita gente.

Isso, é claro, estimando que a taxa de letalidade seja 1,5%, já que em lugares como a Itália a taxa se aproximou dos 7%.

Olhando todos esses números e percentuais, mesmo num cenário otimista, é possível enxergar que o problema é sério e muita gente vai morrer.

Mas o buraco ainda vai mais em baixo.

O que faz o coronavírus diferente das outras causas de morte

Um dos primeiros argumentos e que ainda se perpetua em muitos lugares, é que existem muitas doenças e causas que matam mais que o coronavírus.

O infeliz comentarista da CNN Brasil, Caio “Copolla” Miranda, chegou a dizer que mais pessoas morrem engasgadas do que de coronavírus.

No mesmo ritmo, o Dr. Phill MacGraw, apareceu na Fox News americana dizendo que o país não para por causa das mortes em acidentes de carro, cigarro ou afogamentos na piscina, e por isso não deveria parar por causa da COVID-19.

Estes argumentos tendem a focar no percentual de mortalidade e não no potencial de mortos. Acidentes de carro ou afogamentos em piscina não são contagiosos e não escalam exponencialmente.

Basta olhar num gráfico para entender porque o coronavírus, mesmo inicialmente matando menos, é bem mais problemático que as outras fatalidades.

O segredo está na propagação exponencial.

Quando um vírus é capaz de se espalhar rapidamente, informações sobre outras doenças ou fatalidades tornam-se um comparativo irrelevante.

Se hoje morreu uma pessoa, amanhã morrerão duas e depois morrerão quatro. Essas sete mortes possuem uma tendência de crescimento muito mais perigosa do que acidentes ou doenças crônicas.

Por isso não é preciso esperar o número de mortes ser assustadoramente alto para tomar providências. Quando os novos casos e mortes são multiplicativos, comparar o número de mortes é irrelevante, o potencial de novas mortes é o que serve de guia para adotar medidas de contenção.

Numa pandemia não é só o vírus que mata

Destacar a taxa de letalidade como forma de reduzir a percepção de perigo também ignora um outro problema, este ainda mais grave em países em desenvolvimento.

Quem se contamina com coronavírus é dividido em algumas características diferentes e essas são importantes para entendermos a extensão do impacto.

Neste caso temos as seguintes divisões principais: contaminados, hospitalizados e mortos.

Com o aumento drástico no número de contaminados, o número de pessoas que precisa ser hospitalizado tende a se elevar. O número de leitos, unidades intensivas e profissionais disponíveis para atender todos os casos, rapidamente se torna insuficiente, levando ao colapso do sistema de saúde.

É por isso que existem casos de pessoas contaminadas mas em isolamento domiciliar e que se indica buscar um hospital apenas com sintomas mais graves, poupando o sistema de saúde da sobrecarga causado pelo alto número de casos.

O que muitas vezes esquecemos é que, não é porque existe o coronavírus que as outras doenças e acidentes deixam de acontecer. Com a sobrecarga e o colapso dos hospitais, fica cada vez mais difícil atender todos os casos, inclusive os mais simples.

O colapso do sistema de saúde significa que o número de mortos geral também cresce de forma acelerada. Mesmo a causa não sendo o vírus, enfermidades que poderiam ser facilmente resolvidas tornam-se mortais pela demora no atendimento ou total indisponibilidade do sistema.

Dessa forma, coisas bobas passam a matar.

Aqui, pouco importa se a taxa de letalidade do coronavírus é 0,8% ou 7%, a quantidade de mortos começa a subir pelos mais variados motivos. Agir antes que os hospitais atinjam este ponto é essencial.

Todos os números olhando de fora parecem baixos, mas o potencial de matar muita gente é incrivelmente alto.

Como a ciência funciona

Existe um problema de como a ciência costuma ser apresentada para o público geral, incluindo entusiastas casuais.

Tratada sempre com muito otimismo e retratada como capaz de resolver todos os problemas, espera-se da ciência sempre uma resposta rápida e exata sobre tudo o que não conseguimos compreender.

O pouco conhecimento do método e das implicações de se produzir conhecimento científico, somados à alta expectativa dos resultados acaba refletindo negativamente em momentos de medo.

A cada nova projeção que não é cumprida ou que os resultados não alcançam as expectativas, conta-se como um ponto negativo para a credibilidade científica.

Dessa forma, os argumentos para descredibilizar o tamanho do problema representado pela pandemia focam nas falhas das projeções científicas, mesmo que elas sejam comuns ou até esperadas.

A ciência está sempre errada

É comum ver em discussões na internet onde aplica-se uma visão científica contra alguma crença popular, alguém usar o argumento: “você pode acreditar no que quiser, a ciência está sempre certa você acreditando nela ou não”.

Frase essa bastante comum inclusive entre divulgadores científicos com alto nível de formação.

É possível compreender o contexto onde este tipo de afirmação é levantada, mas é exatamente essa forma de arrogância que cria o sentimento de revanche quando projeções e estimativas não se concretizam.

O princípio cientifico mais básico de todos é que a ciência está sempre errada. Reconhecendo a própria ignorância, é possível rever o conhecimento e progredir. A crença de que algo está sempre certo induz ao comportamento dogmático e é, sem a menor dúvida, anticientífico.

O físico Richard Feynman tem uma frase que explica bem essa definição. Para ele “a ciência é a crença na ignorância dos especialistas.”

É com essa abordagem que estudos são revisados por outros cientistas, que experimentos antigos são revisados e que conhecimentos estabelecidos acabam evoluindo.

Sabe quando alguém brinca dizendo “ah, cada vez é uma coisa, um dia ovo faz mal, depois ovo faz bem”, é exatamente porque o processo científico deve desafiar o que está estabelecido e buscar novas evidências.

Isso não significa que a opinião do @pedr1nh0_Vida_L0k4 no twitter questionando artigo científico publicado na Science é válida. O processo científico é desafiado dentro do próprio método.

Mas então, por que confiar na ciência?

O método científico é o que nós humanos temos de mais confiável para a produção de novos conhecimentos.

As descobertas científicas, mesmo que passíveis de questionamentos e mudanças com novas descobertas, nos deixam cada vez mais próximo do conhecimento e da compreensão do universo.

É como se o conhecimento fosse um grande mapa. A ciência às vezes encontra uma localização com milímetros de precisão, outras vezes reconhece um ponto de referência na quadra ao lado, um pouco mais distante.

Tudo depende de quantas informações já existem e da tecnologia desenvolvida para tratar esses dados.

No caso da COVID-19 as informações são muito recentes. Temos pouco mais de 4 meses desde a primeira morte identificada na China. E tudo o que se sabe sobre o novo coronavírus precisa ser atualizado quase que diariamente.

Cada país, cada novo caso e cada morte traz uma informação nova que vai ajustando as coordenadas desse mapa. Inclusive, dependendo de como cada um desses países geram esses dados.

O Brasil, por exemplo, faz apenas 296 testes para cada um milhão de habitantes, produzindo dados bem menos consistentes que a Coréia do Sul, que realiza 2,138 testes para cada milhão de habitantes.

A forma como os dados são produzidos, a amostragem testada e a forma como as mortes são notificadas afetam bastante a qualidade das estimativas, produzindo as distorções que acabamos encontrando.

É esperado que as projeções feitas no começo de março sejam diferentes, melhores ou piores do que os resultados que estamos vendo hoje. E isso não tira o valor da ciência, pelo contrário, nos diz como que poderia ser se não fizéssemos nada.

Toda essa batalha seria ainda mais perigosa e complicada no escuro completo.

Mas por que os estudos não se concretizaram?

A maioria dos estudos apontando centenas de milhares de mortos considerava a situação de cada país antes de tomar alguma ação.

Com as medidas adotadas, a maior parte das projeções se distanciaram dos números reais. Como é de se esperar, quando modificamos as variáveis utilizadas para realizar uma projeção, os resultados também mudam.

Este tipo de desvio não deve — e não deveria — depor contra o pensamento científico, pelo contrário, o jogo deveria observar os dados científicos e garantir medidas para que não se concretizem.

Foi assim que chegamos ao isolamento social, ao uso de máscaras, álcool em gel e constante higienização das mãos.

Mas vale reforçar que os dados ainda são muito pobres, a testagem é baixa e quase impossível saber, ao certo, o tamanho do monstro que estamos enfrentando.

Por mais que os números reais sejam melhores que as projeções iniciais, eles também são apenas uma sub-representação da realidade.

O que fazer quando faltam evidências?

Num cenário como a pandemia do novo coronavírus onde tudo aconteceu muito rápido e ainda não existem estudos suficientes para direcionar a abordagem científica, muitas das sugestões caem na afirmação que não existem evidências para sustentar a atitude.

Veja um exemplo:

Faz algumas semanas o professor de engenharia civil da Universidade de Eindhoven na Holanda, Bert Blocken, divulgou dados de um estudo que estava conduzindo, simulando em túnel de vento o possível contágio deixado pelo rastro de partículas de alguém praticando corrida.

A sugestão é que uma pessoa correndo poderia contaminar outra pelo rastro de partículas deixadas no ar.

O estudo, que ainda não foi publicado e nem passou pelo processo científico de revisão — que é extremamente importante — deixa claro suas limitações, mas a comunidade científica não gostou muito da divulgação prematura através das redes sociais.

O epidemiologista de Harvard, William Hanage, disse que a publicação fez “seu sangue ferver”.

A mesma polêmica existiu quanto ao uso de máscaras pela população geral. Antes da indicação para adoção massiva, o debate dizia que não haviam evidências para sustentar que o uso de máscaras era eficaz na contenção da COVID-19.

Hoje a posição científica já mudou de direção, o uso de máscaras pela população é encorajado.

Vale enfatizar que algumas das ações, como no caso das máscaras, também podem demorar a serem incentivadas pelo medo da reação em massa. A alta busca da população pode esgotar o material para profissionais de saúde e pacientes diagnosticados, ampliando ainda mais os riscos de transmissão e colapso do sistema de saúde.

Ações baseadas em evidência são importantes, mas quando estamos correndo contra o relógio para evitar mais contágios, hospitalizações e mortos, esperar evidências para sustentar uma medida de precaução pode custar muito caro.

Essa foi a postura de Lindsey Marr, especialista em doenças virais transmissíveis pelo ar da Virginia Tech.

Para ela, é compreensível que os resultados foram divulgados imediatamente, sem passar pelo processo de revisão de pares. “Dada a situação que estamos, é justo que os pesquisadores tenham compartilhado esses resultados porque eles podem ser imediatamente úteis”

Em meio à pandemia, saber que existe, mesmo que mínima, a possibilidade de contágio por praticar corrida atrás de outra pessoa num parque, pode nos ajudar a redobrar os cuidados, prestar mais atenção na distância e reforçar a importância do uso da máscara de proteção.

O fato aqui é que pouco sabemos sobre tudo o que está acontecendo e, quando não sabemos, é melhor pecar pelo excesso.

Neste exemplo, existe ainda o debate de que continua sendo importante praticar atividades físicas, principalmente devido aos impactos psicológicos do isolamento social, no entanto, o foco da precaução é reforçar os cuidados mesmo quando não existem evidências.

Pelo menos enquanto, é claro, que não tudo seja reformulado quando essas evidências surgirem.

Mas nem tudo é feito de forma arbitrária quando não há evidências ou consenso científico. E sim, por mais que negacionistas da ciência tentem dizer o oposto, consenso científico é importante e existe.

Estudos e evidências científicas frequentemente possuem diferenças e pontos inconclusivos, neste caso, a comunidade científica busca um consenso para entender qual abordagem é a mais próxima da realidade.

Acredito que neste ponto você já entenda que ciência não é preto e branco.

O princípio da precaução

Imagine que Mário Santos está dirigindo para casa e, no caminho, descobre que o rio da cidade transbordou. Ele está na estrada olhando para uma enorme quantidade de água. É impossível saber, naquele ponto, quão fundo é o alagamento e qual a extensão tomada pela água.

Mário te liga para decidir o que fazer.

Você sabe, no entanto, que a pista auxiliar demora 45 minutos a mais para chegar em casa e não foi afetada. Considerando também que deve demorar o dobro do tempo, porque mais pessoas estarão desviando por lá.

Com o motor do carro ligado e pronto para seguir viagem, restam duas opções para Mário:

A primeira é tentar atravessar a água e economizar mais de uma hora de viagem. A segunda é retornar e pegar o caminho mais longo e custoso, mas livre de riscos.

Você não tem evidência de que o alagamento é profundo, mas sabe que no pior dos cenários, Mário pode perder o carro ou até morrer.

Mário está ao telefone esperando sua orientação, você precisa ser rápido porque uma fila pode se formar atrás e impedir o retorno para o caminho mais seguro.

Cada segundo agora é importante.

O princípio da precaução é a forma que governos, cientistas e até investidores encontraram para tomar decisões quando existem impasses como este, onde entende-se que existe uma relação de risco e ônus muito grande, é difícil saber o melhor caminho, mas uma decisão precisa ser tomada.

Este princípio é uma bússola política e moral determinando que, na ausência de consenso científico irrefutável, caso uma ação possa causar dano público irreversível, o ônus da prova é de quem pode vir causar o dano.

Neste caso, para você afirmar que Mário pode atravessar a água, seria necessário apresentar evidências de que o caminho é seguro, mesmo apresentando incertezas.

Caso contrário a decisão padrão será a que traz um dano potencialmente menor, mesmo com o ônus econômico em vista.

Trazendo para a realidade da pandemia, quando não existe esse consenso, o mais adequado é optar pelo caminho mais seguro, mesmo que temporariamente mais oneroso.

É melhor correr de máscara numa distância maior que 1,5 metros, do que se apoiar na falta de evidências e assumir o risco de ser contaminado.

É por isso que fechar comércio e suspender atividades que produzem aglomerações é indiscutivelmente melhor do que não suspender e deixar a curva de mortos subir.

E a economia, como fica?

Mortes são irreversíveis, danos econômicos, por mais que demorem, podem ser recuperados.

E muitos vão dizer que o número de mortes por consequência de uma crise econômica podem ser ainda maior do que as causadas pela COVID-19, mas este argumento não traz fundamentos nem científicos e muito menos lógicos.

Primeiro, aqui relembrando o que já foi abordado, mortes em pandemias possuem caráter exponencial. O que define o número de mortes é a escala de contaminados.

Segundo que o número de mortos deixados pela pandemia não se limita aos contaminados pelo vírus. A sobrecarga do sistema de saúde traz como consequência um potencial devastador de milhões de mortos em todo o mundo, pelas mais diversas causas.

Terceiro, e talvez mais sensível, é que gente morta não consome, não trabalha ou aumenta o bolo da economia.

Aqui existem algumas evidências históricas que podem nos ajudar a entender o problema.

No recente estudo chamado Pandemias causam depressão econômica, intervenções na saúde pública não: Evidências da Gripe de 1918, analisando os impactos da gripe espanhola na economia dos Estados Unidos, Sergio Correia (Board of Governors of the Federal Reserve System), Stephan Luck (Federal Reserve Bank of New York) e Emil Verner (MIT) apresentam dados sugerindo que cidades que fizeram intervenções agressivas bem no começo da gripe, como isolamento social, não tiveram desempenho pior na economia, e se alguma diferença notável existiu, foi que cresceram mais rápido pós-pandemia.

Um outro problema normalmente ignorado quando falamos sobre a reabertura das atividades comerciais é que não depende apenas da decisão governamental.

Mesmo com os negócios funcionando, é provável que o receio de frequentar lugares públicos e aglomerações causem, por si só, uma queda no movimento dos estabelecimentos.

Nos Estados Unidos, um dia antes do fechamento oficial pelo governo, as reservas em restaurantes já haviam caído 73%.

É muito provável que estabelecimentos decidam fechar as portas como medidas de economia, sendo mais barato não abrir do que deixar aberto, consumindo recursos, mas com pouco ou nenhum movimento.

É sabendo que o receio de contaminação vai manter pessoas longe do comércio que a guerra da desinformação tentar reduzir a percepção de perigo. Para quem apoia essas medidas, além de abrir o comércio, é preciso fazer as pessoas sentirem-se confortáveis para frequentá-los.

Não sei mais no que acreditar

Existe uma grande força lutando para minimizar a percepção de risco da pandemia.

Grandes empresários, investidores e alguns governos sabem que cenários de grande instabilidade econômica apresentam consequências gravíssimas.

Donos de lojas de departamento temem que as centenas de estabelecimentos deixem de vender e sua projeção de lucro seja reduzida. A perspectiva de crise financeira faz investidores moverem seu capital para aplicações mais seguras e, é claro, governos sabem que crises econômicas geram instabilidades políticas e derrubam presidentes.

Imagine, hipoteticamente, se você fosse dono de um time de futebol com um estádio. Grande parte do seu lucro vem da movimentação no estádio e da venda de merchandising incentivada pelos jogos.

Com a perspectiva de mais de um ano sem poder promover partidas, sobram motivos para tentar reduzir a percepção do perigo e incentivar que pessoas voltem às ruas.

É nesse cenário que vemos as máquinas de noticias falsas trabalhando de forma acelerada para criar narrativas paralelas, tentando convencer a opinião pública de que o problema não é sério, que o fechamento do comércio causará danos ainda maiores para economia ou, simplesmente, que a cura está próxima.

O otimismo é uma forte estratégia para movimentação econômica, mas em meio à pandemias, é também um forte motor para acelerar contaminações e mortes.

O combate à desinformação é difícil, e na maioria das vezes, beira o impossível.

Existem alguns sentimentos muito fortes que colaboram para que essas narrativas paralelas sejam convincentes.

  • Queremos que tudo volte ao normal
  • Temos medo da crise econômica
  • Não sabemos lidar com informações confusas

As noticias falsas sobre coronavírus buscam atacar alguns desses três pontos, desativando os nossos critérios racionais e nos fazendo agir no impulso da emoção.

Antes de tudo, é claro que não está tudo bem na quarentena. Existem diversos problemas psicológicos que podem ser desencadeados por um processo de isolamento social.

É um momento doloroso.

Sentimos falta da nossa rotina, dos nossos objetivos e de poder fazer planos para o futuro. Essa incerteza gera ansiedade e medo. Será que não vou poder viajar este ano? Não assistirei filmes no cinema ou shows das minhas bandas favoritas?

Queria só voltar a frequentar meu restaurante preferido e convidar meus amigos para um churrasco em casa.

Essa esperança de ter tudo como era antes é um gatilho certeiro para aceitar narrativas paralelas. Tendemos a abraçar histórias que contam o que gostamos de ouvir.

Do mesmo jeito que é fácil sair de uma palestra motivacional de empreendedorismo acreditando que vamos criar a próxima empresa bilionária. Agarramos com fé a narrativa que nos agrada.

Também temos medo da fome, de ficar sem dinheiro e emprego. E essa realidade já acontece para muita gente. Como alguém vive dois, três, seis meses sem salário?

Essa consequência, para a maioria das pessoas, está mais próxima do que parece. O medo da crise persistir por muito tempo nos faz comprar ideias que movam as opiniões no movimento contrário.

No fundo, até sabemos que existe um problema na pandemia, mas a vontade de fazer a economia girar e manter nossos empregos é motor para disseminar noticias falsas e que se posicionem contra o fechamento do comércio e atividades não essenciais.

Muitas dessas notícias falsas contra o fechamento acabam sendo disseminadas pelos próprios empresários, colocando medo nos funcionários para que pressionem os governos municipais e estaduais.

E claro, como vemos cada lugar noticiar uma informação diferente, números confusos, dados que não batem e uma série de conflitos, evitamos nos aprofundar. É mais confortável consumir e aceitar as informações mais acessíveis, aquelas que chegam por WhatsApp enviadas pelos amigos.

Em quem confiar?

O fácil acesso à informação não trouxe o benefício que tanto gostaríamos. O efeito que vemos acontecendo é o total oposto. Em vez de nos tornar mais informados, é cada vez mais difícil encontrar fontes confiáveis em meio ao mar de ruídos.

É por isso que notícias falsas nos pegam com tanta facilidade. Por apelar para emoções muito verdadeiras, elas tornam-se facilmente compartilháveis.

Quando recebemos estes links, imagens ou memes dos nossos amigos e familiares, a notícia falsa foi capaz cortar por todo ruído de informação e chegar com o selo de credibilidade das pessoas que conhecemos pessoalmente e confiamos.

Para nos livrar desses conflitos, é preciso estabelecer um pequeno processo de conclusão antes de aceitar informações.

1. Quem são os especialistas no assunto? O que eles dizem?

É muito fácil estabelecer algum tipo de credibilidade na internet e utilizar essa autoridade para direcionar a opinião pública.

Não é raro isso acontecer, mas antes de ouvir essas pessoas que confiamos pela autoridade que conquistaram em outros assuntos, é preciso verificar quem são os especialistas de verdade.

No caso do coronavírus, é preciso ouvir o que a Organização Mundial de Saúde, virologistas, epidemiologistas e médicos dizem.

Antes de adotar qualquer opinião, essas pessoas e entidades estão na linha de frente e sabem melhor do que ninguém a real gravidade do que está acontecendo.

2. Dentro do que eles afirmam, como os países afetados estão se comportando? Condiz com o que está sendo divulgado?

Ao ouvir especialistas, tente conflitar as informações com a conduta que os países estão adotando.

A maioria dos países está adotando a mesma postura? O que eles dizem está sendo aceito pelos especialistas de outros países e sendo adotados como políticas públicas?

Olhar para realidade de outros países para compreender se faz sentido é uma boa forma de confirmação indireta. É muito mais difícil que especialistas de todos os países estejam juntos adotando uma medida que não faz sentido, do que se apenas um ou outro país estiver seguindo.

3. As opiniões contrárias vêm de especialistas no assunto? Se não, possuem fontes verificáveis? Essas fontes são confiáveis?

Receber informações contrárias, em meio essa guerra de narrativas alternativas é esperado.

Para saber se essas informações são verdadeiras, verifique quem está disseminando a informação. Se essa informação vier de um influenciador que não é especialista no assunto, questione sobre a fonte. Verifique as afirmações direto na fonte.

Caso a pessoa se negue à dizer qual a fonte, ou simplesmente não tenha dados de onde veio aquela afirmação, não faz sentido carregar essa informação adiante.

Caso venha de um especialista, verifique a posição de outros especialistas sobre o mesmo assunto.

Como já foi abordado aqui, é comum cientistas e especialistas trazerem opiniões divergentes, adotando o consenso científico para normalizar uma estratégia de ação.

Entenda também se esse especialista em especial é uma voz isolada ou se realmente traz algo que está sendo considerado pela comunidade científica. Entrevistas com os principais especialistas em diversos jornais podem tirar essa dúvida com facilidade.

Por fim, lembre-se sempre do princípio da precaução. Caso a notícia vá na direção oposta da preservação de vidas e incentive comportamentos que apresentem risco, é menos arriscado descartar, mesmo que exista chance de ser verdadeira, do que assumir os danos de adotar caso seja falsa.

O que você vê não é tudo o que existe

O mundo é um lugar bem grande. Muito maior do que nossa percepção pessoal é capaz de compreender.

Nosso país, por si só, já possui dimensões grandes o suficiente para que seja complicado entender a variedade de realidades que existem por aqui. O que acontece no interior de Santa Catarina, em nada se parece com o cenário enfrentado pelos manauaras.

Para quem acorda numa cidade qualquer do Paraná, a percepção pode ser de que nada real esteja de fato acontecendo em relação ao coronavírus. Mesmo com notícias e imagens na TV, a realidade mais próxima não é capaz de traduzir o problema que se espalha longe dali.

Esse é um dos maiores desafios quando falamos sobre políticas de contenção do coronavírus, fazer a população compreender que o aparente estado de normalidade não traduz, de imediato, o colapso que já está acontecendo.

Olhar a própria realidade e projetar como uma representação da sociedade é uma prática comum, produzindo um viés cognitivo perigoso. As ações para socorrer Manaus não podem ser vista com os olhares de quem mora em lugares ainda pouco afetados.

Tampouco uma cidade onde existe uma suposta normalidade está livre de sofrer as mesmas consequências daqui poucas semanas.

Este é o último pilar das redes de desinformação sobre o coronavírus. Para tentar criar a impressão de que tudo não passa de exagero midiático, produzem vídeos e imagens que gerem essa sensação.

É muito fácil, por exemplo, num estado que tem 90% de lotação em seus leitos, ainda encontrar hospitais que são exceção e fazer imagens para tentar mostrar que é tudo exagero da televisão.

A estratégia, por mais bizarra que pareça, surte efeito para pessoas que já estão inseridas nessa cadeia radicalizada de notícias falsas.

Culpar os cientistas, jornais, a globo, comunistas, iluminatis ou qualquer que seja a figura de conspiração de estarem tentando aplicar um golpe é, por incrível que pareça, muito eficiente.

Aproveitando da distância entre a percepção pessoal e a realidade, ignoram que não é apenas o Brasil que enfrenta a pandemia, mas o mundo inteiro está lutando essa mesma batalha.

Por fim, vale lembrar que conteúdos como este, são pouco eficazes. Sei que estou escrevendo para pessoas que já concordam com o ponto levantado e que dificilmente cairiam em notícias falsas ou nas construções falaciosas apresentadas no texto.

Mas o papel que tento cumprir é de fornecer argumentos e condições para que seja possível debater com amigos e parentes que propagam estes mitos, colocando em risco a vida de milhões de pessoas por acreditarem nos discursos radicalizados.

Por isso, quando surgirem as discussões envolvendo coronavírus, volte neste texto, procure os argumentos, tente explicar com calma e atenção.

Faça um esforço extra para não soar arrogante, não fazer a pessoa sentir que está sendo inferiorizada ou acuada por ter apresentado uma informação falsa.

Este é o momento de educar de forma paciente. O trabalho é cansativo, mas ainda é a melhor forma que temos para agir e evitar que nos afundemos nessa nova era das trevas.

Agradecimento ao @canalpeixebabel pela revisão e correção da parte científica abordada no texto, e ao Valter Duo, biomédico especialista em Microbiologia também por uma revisão focada na abordagem científica.

Muito obrigado pelo tempo e atenção!

Se você gostou deste texto não deixe de deixar seus 50 claps e compartilhar nas redes sociais. A divulgação de cada um colabora para evitar a desinformação e os danos causados pelo coronavírus.

Startupdareal é autor do livro Este livro não vai te deixar rico, que aborda os bastidores do universo das startups, empreendedorismo e da busca pelo dinheiro. Livro está disponível em todas as grandes livrarias do Brasil ou através deste link.

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Startup da Real
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Pensamento crítico sobre tudo o que ninguém quer contar para você.