Os japoneses tem uma palavra para quem literalmente morre de trabalhar: Karoshi

Morrer de trabalhar não é bonito

A tóxica cultura do mercado de trabalho se corrói por dentro

Startup da Real
@startupdareal
Published in
8 min readJan 23, 2018

--

Não faz muito tempo ouvi o diretor de uma empresa comentando que odeia funcionário saindo na hora que acaba o expediente. É gente sem comprometimento, dá 18h larga tudo pela metade e vai embora.

Para ele, cumprir o que foi combinado no contrato de trabalho beira o absurdo. Esse não é um caso isolado. De fato, na cultura empresarial, fazer apenas o que foi contratado é visto como um grande pecado.

Mas ainda pode piorar.

Quando comecei minha vida profissional, a tecnologia ainda não era como hoje. Emails eram usados estritamente para relações profissionais e para receber desenhos em powerpoint daquela tia que acabou de comprar seu novo Pentium 133.

Na época, poucas pessoas utilizavam internet e a comunicação online era mais rara e restrita ao pequeno nicho de nerds que exploravam as novidades da tecnologia.

Todo mundo acreditava — e muitos ainda acreditam — que a tecnologia estava chegando para nos salvar. Com computadores, poderíamos trabalhar menos e produzir mais. Hoje, trabalhamos não apenas quando estamos sentados dentro do escritório. Nosso trabalho vai para casa conosco, dentro do bolso.

Ao contrário da expectativa, o ser humano nunca trabalhou tanto. E essa não é uma preocupação nova. Em 1850 o filósofo Henry David Thoreau já escrevia:

“A excessiva lida torna-lhe os dedos demasiado trêmulos e desajeitados para isso. Na realidade, o trabalhador não dispõe de lazer para uma genuína integridade dia a dia, nem se pode permitir a manutenção de relações mais humanas com outros homens, pois seu trabalho seria depreciado no mercado.”

Há quase 200 anos já era observado que o excesso de trabalho prejudicava a saúde dos trabalhadores, privando-os suprir suas necessidades humanas mais simples. Thoreau teria sérios problemas na sociedade atual.

Contratos são vistos de forma unilateral

Na sociedade moderna as relações de trabalho legais são estabelecidas de forma contratual. Um funcionário ao ser aceito numa empresa assina um contrato que descreve — ou deveria descrever — o que é esperado enquanto estiverem trabalhando juntos.

O contrato — teoricamente — estipula quantas horas de trabalho devem ser cumpridas, prevê os períodos de pausa e as atividades que serão desempenhadas. Não tem segredo, todo mundo sabe.

O problema é que — convenientemente — empregadores esquecem disso. Os pequenos favores após o horário do expediente começam de forma sutil, mas quando nos demos conta, o novo padrão é trabalhar algumas horas a mais.

Pior ainda, o mesmo otimismo na flexibilização das regras não é transmitido para o profissional que, normalmente, sofre um tratamento hostil quando precisa se ausentar para uma consulta médica ou resolver problemas pessoais.

Seja de forma clara, pedindo para que evite o sair e deixe para resolver seus problemas aos finais de semana — horário de trabalho é pra trabalhar — Ou de forma velada, simplesmente franzindo a boca e forçando para demonstrar descontentamento físico, o pequeno favor da noite anterior é rapidamente esquecido quando é a outra ponta do contrato que precisa.

O que podemos observar de forma agressiva, é o abuso na relação de poder entre as cadeias hierárquicas nas empresas.

Os prejuízos de quem gosta de se matar de trabalhar

Uma cultura que exige uma entrega excessiva ao trabalho não se sustenta sozinha. Se fosse apenas uma relação de poder entre empregadores e empregados, seria muito mais simples suprimir o comportamento. Mas outros empregados validam as cobranças e dão força para as exigências.

Funcionários aprendem rapidamente que exaltar trabalho, ficar algumas horas a mais todos os dias e fazer posts no Linkedin chamando quem não segue o mesmo comportamento de preguiçoso tem um rápido retorno.

Empregadores adoram pessoas assim. Funcionários tóxicos são facilmente premiados e promovidos. Com o incentivo, o comportamento é reforçado e outros passam a imitar o discurso.

Não demora muito para que todos os gestores sejam carrascos intolerantes e os funcionários passem a tentar impressioná-los, ficando espontaneamente até mais tarde, comendo rápido sem utilizar seu horário de almoço e respondendo emails de trabalho tarde da noite quando já estão em casa.

A primeira vista pode parecer que essas pessoas estão trabalhando mais, mas o que vemos na prática é uma realocação das tarefas no tempo disponível. A lei de Parkinson é uma leve sátira, mas nesse caso se aplica muito bem:

“O trabalho se expande de modo a preencher o tempo disponível para a sua realização.”

Um funcionário quando entende que seu novo horário não é mais de 8h~18h, mas até 20h ou 22h — seja por imposição ou para impressionar — repensa a forma que organiza suas atividades. As tarefas serão feitas com menos urgência e organizadas para preencher o tempo disponível. É um engano muito comum acreditar que mais tempo se converte em mais atividades realizadas.

Quando a cultura é estabelecida e todas as pessoas passam a ficar até mais tarde, mais recursos são consumidos desnecessariamente. Quantos prédios comerciais não tem centenas de lâmpadas acesas e ar condicionados ligado esperando uma única pessoa sair meia noite.

Não precisa ser médico para deduzir. Alguém que trabalha entre 12 a 14 horas por dia não faz exercícios físicos e, pela falta de tempo, alimenta-se mal. Com a imunidade baixa, não demora muito para que gripes e resfriados apareçam.

É normal alguém que se orgulha de trabalhar tanto também aparecer na empresa doente, ostentando as cartelas de remédio espalhadas pela mesa. Quem gosta de sinalizar esforço não vai perder a chance de mostrar que é tão comprometido que foi doente trabalhar.

É bem difícil que alguém doente produza com a mesma qualidade. É esperado nesse estado cometa erros grosseiros e que custam caro. Ainda mais sério, o resfriado que teria cessado com um dia de repouso evolui para algo mais grave, impossibilitando a pessoa de trabalhar por vários dias e causando os verdadeiros prejuízos que poderiam ser evitados.

Gostamos de exaltar os belíssimos resultados dos Japoneses, mas a cultura de trabalho no país é tóxica e pessoas — literalmente —morrem de tanto trabalhar. Lá existe até uma palavra para isso, Karoshi é morrer de tanto trabalhar.

O Japão é frequentemente citado de forma positiva por quem gosta de impor rotinas de trabalho extremas e condições hostis.

Sua vida não é seu trabalho

A necessidade de dinheiro e a cobrança social pelo sucesso profissional nos empurram um triste dilema.

Se você não dedicar sua vida ao trabalho, seu valor social é percebido como menor e, normalmente, ainda é visto como único culpado por todos os seus problemas financeiros. Está passando dificuldades porque não se esforçou de verdade.

Muita gente se mata de trabalhar para não ser tratado como culpado pelo péssimo salário que recebe.

Com isso, o tempo de lazer é totalmente substituído por palestras sobre trabalho, os livros de fantasia são trocados por livros de negócio que ensinam atitudes para impressionar o chefe e, quando nos damos conta, estamos vivendo para o trabalho dentro e fora dele.

A rotina comum para quem vive de trabalhar é sair de casa quando os filhos ainda não acordaram e voltar quando já estão dormindo. Seus interesses pessoais vão desaparecendo e sua personalidade, agora, não é mais profunda do que o cabelo penteado de lado, o sorriso plástico e o terno sem caimento que podemos ver em qualquer capa da Você S/A.

Você quer mesmo se tornar uma Sociedade Anônima?

Não existe nada de errado em ser um bom profissional, investir no aprimoramento e querer uma boa carreira. Essas são características admiráveis e que devem ser incentivadas.

Mas a tênue linha entre ser um bom profissional e ser relapso com a própria saúde e as outras pessoas que compõem nossas vidas é um extremo que deve — na medida do possível — ser evitada.

Não dá pra escolher demais

Nesse cenário temos dois perfis muito bem definidos:

De um lado temos quem quer impressionar e sinalizar que seu esforço faz dele alguém superior. Do outro, o profissional que tenta fazer seu trabalho, mas por exigência dessa cultura, é forçado a cumprir longas horas extras sem contrapartida.

O segundo perfil, o que não admira o cenário e se queixa do comportamento tóxico, recebe respostas hostis. Se não está satisfeito, é só pedir demissão. Como se não existissem contas à pagar e o comportamento não fosse reproduzido na maioria das outras empresas.

O problema é de ordem cultural. É difícil escapar.

Outro argumento bem frequente e que normalmente distorce a relação entre empregador e empregado é o comum: você deveria dar graças a deus de estar trabalhando, tem um monte de gente precisando de emprego por aí.

É como se o empregador fosse um ser benevolente em te oferecer um emprego e estivesse fazendo apenas um grande favor.

Nessa visão o empregador é tido como alguém tão generoso em te contratar, que você não pode reclamar do ambiente insalubre, das exigências descabidas e da má remuneração.

Neste momento, esquecem completamente que a relação que existe é de contrato de trabalho. Ele não está te pagando porque é legal, mas porque você exerce uma função que será revertida em faturamento para a empresa.

É claro que estar desempregado é ruim, mas não é porque o emprego paga as contas que alguém precisa aceitar qualquer condição imposta.

Fazer o necessário quando necessário

Todo mundo vai precisar ficar até mais tarde vez ou outra. As vezes projetos com uma urgência maior acabam surgindo, mas o problema não é esse. O problema é virar uma regra.

É preciso deixar muito claro aqui que o objetivo não é incentivar pessoas a deixarem a empresa na mão, mas esclarecer que essas necessidades devem ser exceção.

O texto também não tem o propósito de incentivar profissionais ruins, muito pelo contrário. É preciso que todos se esforcem, trabalhem bem e produzam com qualidade no horário que existe para isso. Não querer ficar até mais tarde e gostar se divertir não faz de ninguém um profissional ruim.

Existem inúmeras exceções para tudo o que foi dito aqui, mas no grosso, todos reconhecemos que este é o caricato cenário que encontramos no mercado de trabalho brasileiro.

Profissionais devem se manter atualizados, investir em capacitação e exercer suas atividades com o máximo de qualidade. Mas se a única qualidade que você pode oferecer é exaltar o trabalho duro, talvez quem tenha sérios problemas de profissionalismo não seja quem vai embora quando o relógio bate 18:00h.

Este conteúdo faz parte do Este livro não vai te deixar rico, uma coletânea com os melhores artigos do Startup da Real para você ter sempre com você ou presentear seus amigos.

http://bit.ly/livro-startupdareal

Para ajudar na iniciativa Startup da Real, confira a página do Patreon e colabore como puder.

Se você curtiu o texto, não esqueça de seguir o @startupdareal no Twitter, dar 50 claps no texto e compartilhar o conteúdo no seu Linkedin.

--

--

Startup da Real
@startupdareal

Pensamento crítico sobre tudo o que ninguém quer contar para você.