O aspecto psicológico de conselhos ruins e decisões ainda piores

Um texto muito complicado para explicar algo simples

Startup da Real
@startupdareal

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Existem algumas discussões muito difíceis de serem estabelecidas.

Recentemente, durante as festas do fim do ano, comentei no Instagram que não estava consumindo bebidas alcoólicas. Me questionaram se não abriria exceção para o natal e ano novo, eu disse que não.

Faz alguns meses que estou num processo de dieta, reeducação alimentar e perda de peso.

Recebi algumas mensagens de entusiastas do fitness me explicando que, beber apenas um dia, não me faria ganhar peso. Algumas delas, um pouco mais mal educadas, mandando eu “estudar mais” sobre o assunto.

Um dos problemas dos entusiastas, isso em qualquer assunto, é que acumulam muitas informações isoladas, mas possuem grande dificuldade em aplicar o que sabem dentro das mais distintas realidades.

Mais ainda, acreditam que o que sabem é tudo o que existe.

É como nesse gráfico do efeito dunning-kruger que vocês já devem estar exaustos de ver pela internet.

Dito isso, preciso dizer que as pessoas que falaram para eu estudar mais sobre o assunto não conhecem meu histórico com atividades físicas e nutrição.

Li, ao longo dos mais de 20 anos envolvido com esportes e atividades físicas, pelo menos 40 livros de especialistas sobre dieta, alimentação, emagrecimento, metabolismo e todos esses tópicos envolvidos.

Sem falar nas inúmeras discussões, vídeos, palestras, documentários e cursos.

Tenho inclusive, guardado em algum lugar, um certificado de um curso nutrição esportiva. Está longe de ser um nível superior, mas me trouxe algumas boas informações.

Esse não é um assunto onde sou um completo leigo. Eu sou muito obsessivo com as coisas que me presto a fazer, e isso não foi diferente nas atividades físicas.

Mas existe um elemento, que a maioria das pessoas não considera, que influencia bastante na hora de analisar uma situação, seja ela qual for.

O aspecto psicológico envolvendo as ações que desempenhamos possui um impacto muito maior no longo prazo do que a gente imagina. Muitas vezes esse tipo de impacto é ignorado em troca de afirmações simplistas como “um dia só não vai fazer mal”.

Quando comecei a praticar atividades físicas, como tudo que me prestei na vida, eu não era um grande prodígio de destaque. O que me interessava, além do prazer de praticar essas atividades, era entender o processo envolvido no aprendizado e no desenvolvimento das habilidades.

Uma vez, lendo um livro sobre treinamento de Muay Thai, cheguei num capítulo — que se me lembro bem — chamava-se “lidando com o aspecto psicológico de ser acertado”.

O capitulo esboçava, de uma forma até mais simples, o que se passa na cabeça de um lutador quando ele recebe um golpe contundente, perde uma luta ou sofre um nocaute.

Esse ponto de vista virou minha grande fixação. Sempre que me aventurava em qualquer atividade nova, me interessava sobre o aspecto psicológico envolvido no processo.

E mesmo lendo bastante sobre o assunto, acabei levando anos para conseguir transferir algumas ideias para atividades diferentes. Porque aquilo que muitas vezes soa normal de um ponto de vista, de outro pode ser incrivelmente mais difícil.

Quando eu já treinava jiu-jitsu tinha uns 4 anos, era comum assistir lutas de MMA e ver os lutadores em posições que, do ponto de vista de quem treina jiu-jitsu, parecia muito fácil encaixar um golpe específico.

Para servir de exemplo, pense numa chave de braço.

A construção parece confusa, mas vai fazer sentido.

No jiu-jitsu existe uma noção muito simples de que, se um lutador estiver em cima, por dentro da guarda e com os braços muito esticados, quem está por baixo pode tentar aplicar uma chave de braço.

Essa é a aplicação mais comum do famoso armlock, o primeiro movimento que quase todo mundo aprende no Jiu-jitsu.

Sempre que eu via, em lutas de MMA, alguém golpeando de cima, meio de qualquer jeito, me admirava o lutador não tentar aplicar este golpe. Essa falta de compreensão me acompanhou por alguns anos, até o dia em que entrei numa academia de MMA e comecei a praticar.

O que descobri treinando MMA por mais de três anos, é que as questões que passam na cabeça quando você está treinando jiu-jitsu, de kimono, são muito diferentes de quando está lutando dentro das regras do MMA, mesmo quando as posições e condições, olhando de fora, são muito parecidas.

No MMA, quem está por baixo precisa se preocupar com um número de variáveis muito maior do que durante uma luta envolvendo apenas o jiu-jitsu.

Durante a luta de MMA, quem está por cima pode socar e dar cotoveladas. Para quem recebe os golpes, isso limita bastante o uso dos braços. Porque ao mesmo tempo que você precisa atacar, deve que garantir que não vai apagar com um golpe que passe pela sua defesa.

No Jiu-jitsu a dinâmica é completamente diferente. Quem está por baixo, nessa posição especifica, está muito confortável. Pode respirar e tem todo controle da distância do oponente. É muito comum trabalhar dessa posição para finalizações bem certeiras.

No MMA essa é uma posição incomoda, porque a pessoa que está em cima tem o objetivo de não deixar o oponente descansar, desferindo socos e cotoveladas sem parar. Os lutadores estão quase sempre mais cansados do que no Jiu-jitsu, e esse cansaço ativa um alerta de poupar energia e fazer tentativas mais seguras, sem se expor tanto.

Além disso, a luva e o suor no corpo sem kimono tornam tudo muito mais escorregadio.

Apesar de serem situações idênticas para quem olha de fora. Por dentro existe todo um universo muito diferente de preocupações, que só quem conhece as duas vivências consegue perceber.

Quando o rapaz, que disse que eu precisava estudar mais sobre nutrição, veio dizer que beber um dia não vai me fazer engordar, ele estava olhando a situação do ponto de vista extremamente simplista.

É como responder uma questão, numa prova de física, pensando apenas na parte da matemática, ignorando a influencia dos detalhes que a física adiciona. A matemática até pode estar certa, mas a falta de compreensão sobre a física e suas interações constantemente leva a resposta para o caminho errado.

Consumir 600 calorias extras, tomando 4 latas de cerveja no meu natal, não vai, de fato, fazer diferença na minha alimentação, muito menos me fazer engordar.

Diluindo isso na semana, não aumentaria minha ingestão calórica em nem 100 calorias a mais por dia.

Mas isso é olhar só para os números, e não o que acontece no mundo real.

Álcool exerce forte influência no apetite. Alguns estudos estimam que depois de consumir álcool a tendência é que se consuma 10 a 25% mais comida.

Mas nem precisa do estudo para a gente saber disso.

Quem bebe sabe que a vontade de petiscar aumenta, que o prato vem maior do que o normal e que, não muito depois, já vem a vontade de comer outra coisa novamente.

Abrir a exceção para uma cervejinha na ceia do natal, aquelas 600 calorias, não ficaria só nisso. Certamente adicionaria várias outras calorias. Estimo aqui, entre petiscos, repetições, amendoins e sobremesa duas vezes, algo entre 800 e 1200 calorias, além das cervejas, vindas desse aumento no apetite.

Aí, quem olha apenas para os números, ignorando o aspecto psicológico envolvido, vai dizer:

“mas é só não comer mais”

Na teoria, é.

Mas na prática, não funciona bem assim.

Além do aumento do apetite, o álcool também exerce forte influência na inibição. Assumir controle sobre decisões e aplicar uma maior força de vontade é bem mais fácil quando estamos sóbrios do que sob influencia do álcool.

Você pode dizer que “é só não comer mais”, mas na prática não é isso que vai acontecer.

Essas quase 2000 calorias extras já começam a ser um problema.

Mas só um dia, realmente, ainda não faria ninguém engordar.

Só que existe uma série de consequências psicológicas para esse exagero pontual.

Existe um efeito, que aprendi nas aulas do professor Dan Ariely, chamado Fudge Factor, que simplificando bastante, aponta a linha onde se torna aceitável ultrapassar um limite ético, seja por qual forma de racionalização estiver considerando.

É como na abertura do comércio agora na pandemia, com todas as pessoas vivendo suas vidas normalmente. Mesmo alguém defensor da quarentena e do distanciamento social acaba se convencendo de que “se tá todo mundo saindo, eu também preciso viver minha vida”.

Todos estarem vivendo suas vidas destaca essa linha específica, onde se torna aceitável ultrapassar um limite antes estabelecido.

O mesmo eu consigo ver acontecendo quando estamos fazendo dieta.

Quando estamos disciplinados por um bom período de tempo, mas acabamos abrindo essa exceção do “só hoje não vai fazer diferença”, com muita frequência esse “só hoje” é o gatilho repetir a dose no dia seguinte.

Quem cuida da alimentação sabe muito bem o que é o pensamento de “ah, agora já comi mesmo”.

Dessa forma, considerando um período como o natal e o ano novo, onde a oferta de comida e bebida é muito maior e constante que nos dias normais, eu tenho certeza que beber na noite do natal me faria, no almoço de sobras do dia seguinte, mais a vontade para beber novamente.

Atravessar esse limiar, me conhecendo bem, seria o suficiente para pensar algo como: “agora já estraguei a dieta mesmo, vou curtir o fim de ano. Em janeiro eu recupero.”

O que antes eram 600 calorias num jantar, acabam virando quase 2000 calorias a mais por praticamente duas semanas, provavelmente até o fim do meu recesso de trabalho.

De novo, só lembrar como as pessoas bebem e comem no fim do ano para saber que não é nenhuma afirmação exagerada. A gente sabe que beber sem parar e comer o dia todo são comportamentos normais nesse período.

Para muita gente, uma exceção como essa vira o motivo de abandonar a dieta de vez. E dieta aqui me refiro apenas ao controle de uma alimentação saudável.

E isso, sendo extremamente modesto, acreditando que eu beberia apenas 4 latinhas de cerveja e estaria satisfeito. Não faria drinks cheios de xarope de cranberry e nem tomaria caipirinhas com açúcar para resistir ao calor de 35 graus enquanto curtia uma tarde na piscina.

Pior ainda, é saber que voltar para a dieta não é uma chave que a gente liga e tudo se transforma magicamente. Pode levar semanas ou até meses para recusar os convites para beber, ou até mesmo vencer aquela vontade de abrir uma latinha enquanto jogo uma partida de videogame com os amigos.

Isso, o cálculo de “ah, uma lata de cerveja só tem 153 calorias, não vai te engordar” não é capaz de mensurar. Mas eu vivo nesse corpo faz 36 anos, e conheço muito bem a forma como minha cabeça funciona.

A calculadora e o papel aceitam muito facilmente regras que o mundo real ignora.

Depois que eu estiver muito bem condicionado com a forma que me alimento e não for mais um esforço interno tão grande resistir aos impulsos de comer tudo o que vejo pela frente, essas estruturas podem ir se afrouxando.

Fica mais fácil retomar a alimentação no dia seguinte.

Falar da minha alimentação e sobre o consumo de álcool é um exemplo simples, que uso aqui para explicar como muitas das questões onde tentamos aplicar um julgamento raso, que podem até ser baseados em ciência, com matemática, números e embasamento técnico, muitas vezes não fazem diferença.

O fator psicológico que ronda essas questões costuma ser mais determinante para essas questões do que uma simples relação matemática.

Seres humanos não são máquinas. Incentivos, medos, ansiedade, pressão social, desejos e impulsos são capazes de confundir nossas decisões e muitas vezes nos afastar de objetivos que realmente queremos bastante.

É comum agir em oposição aos nossos interesses pessoais mais fortes.

Não é raro ver exemplos de pessoas que lutam contra obesidade chorando ao comer um chocolate por não conseguirem se controlar, ao mesmo tempo que lutam diariamente para perder alguns quilos.

E não estou entrando no mérito de aceitação do corpo, real necessidade de fazer dieta e nada do tipo.

O ponto é que, na maioria das vezes, entender como funciona nossa cabeça e respeitar esse entendimento pode nos ajudar bastante a evitar armadilhas que, no momento da emoção, achamos até que estamos fazendo bem para nós mesmos.

É muito fácil usar uma racionalização ingênua para ceder aos impulsos e sabotar um esforço de muitos meses.

Por isso, o caminho mais fácil e entender como essas armadilhas psicológicas atuam e nos manter conscientemente contornando cada uma delas.

O que não podemos fazer, no entanto, é tentar impor um comportamento aos outros, sem considerar o que está acontecendo dentro da cabeça dessa pessoa.

Este texto foi publicado anteriormente na newsletter Alt+Tab no dia 07 de Janeiro de 2021.

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