O dilema de se tornar bom em alguma coisa

Ser bom em algo é mais chato do que parece

Startup da Real
@startupdareal
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6 min readApr 6, 2021

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Existe um sentimento muito difícil de descrever, mas que está diretamente ligado ao desenvolvimento em qualquer atividade que tentamos desempenhar.

A primeira vez que senti isso foi quando comecei a brincar com um Cubo de Rubik, um desses cubos mágicos coloridos. Um amigo estava treinando para montar estes cubos rapidamente e me deu um de presente para experimentar.

A minha surpresa, no entanto, é que montar estes cubos não exigia raciocínio lógico, desenvoltura intelectual ou um tipo de talento maior. A única coisa que eu precisava fazer era sentar e estudar as dezenas de algoritmos que resultam na montagem do cubo.

Minha primeira reação ao saber que alguém sabia montar o cubo sempre foi pensar: esse cara deve ser muito inteligente.

Mas a verdade é que não havia praticamente nada de inteligência naquilo.

Pior ainda, quanto mais perto eu chegava de montar o cubo utilizando estes algoritmos, mais sem graça ficava. Enxergar os bastidores da atividade me fazia pensar que aquilo não era tão interessante assim. Na verdade, isso não era muito diferente das matérias chatas da escola.

É só sentar, ler e repetir até decorar.

Sempre que alguém me vê montando o cubo mágico e demonstra admiração, me sinto um verdadeiro impostor. Não existe nada de especial naquilo.

Recentemente tive essa sensação em outro caso similar. Decidi que iria começar a jogar Xadrez e estudar um pouco sobre a atividade. Depois de algumas semanas fazendo exercícios e lendo sobre as jogadas, a percepção que tive foi bem similar ao cubo mágico. É uma atividade com possibilidades finitas e, que por existir há muito tempo, já tem quase todas as posições e probabilidades documentadas.

Se você ler e treinar o suficiente essas possibilidades pré-definidas, seu desenvolvimento caminha gradualmente, você decora as soluções para quase tudo o que pode acontecer.

Esse movimento secreto não está nos livros

Até mesmo no joguinho de tiro que uso para me divertir no videogame eu vejo isso acontecer.

Grande parte da diferença dos melhores jogadores está em saber exatamente como a mecânica funciona e usar isso como vantagem contra aqueles que não estudaram. Se você deslizar no chão e interromper essa deslizada seguida de um pulo, por exemplo, você quebra os quadros da animação do personagem no jogo, e enquanto o inimigo te vê deslizando, na sua tela você já está de pé atirando.

Nada de habilidade, nada de talento, apenas conhecimento de falhas de desenvolvimento que permitem enganar o oponente.

São milhares desses conhecimentos sobre a mecânica do jogo que dão enorme vantagem aos jogadores que passam o dia estudando e treinando.

Além disso, o jogo muda a cada atualização. A potência de algumas armas é reduzida, outras armas ganham ajustes melhores, equipamentos ganham ou perdem desempenho. É preciso uma grande dedicação ao que acontece semanalmente no jogo para não ser surpreendido por alguma dessas mudanças. Toda quarta-feira é dia de sentar e ver o relatório de modificações que os desenvolvedores do jogo soltam, para saber o que preciso modificar no meu jogo ou nas armas que uso.

O que antes era simplesmente jogar, se divertir e eventualmente progredir, se torna uma tarefa bem menos divertida de pesquisa, estudo, testes, treino e repetição.

E quase toda atividade tem isso.

A maioria das pessoas começa a escrever porque acha lindo um texto que surgiu de uma inspiração forte, algo escrito repleto de emoção, imaginando o autor digitando em sua Olivetti e alternando um gole no vinho e um trago no cigarro. Quase todo mundo desiste quando descobre que escrever tem quase nada disso, apenas estudo de estruturas, técnicas repetitivas e muita pesquisa.

Quase todo texto que você chorou foi escrito por alguém muito mais preocupado com a estrutura técnica do que emocionado.

Nada divertido.

Praticamente tudo o que queremos fazer, quando chega a hora de ficar bom naquilo, a coisa perde um pouco do brilho e se torna meio chata.

Um monte de gente desiste de fazer, seja lá o que estiver se propondo, quando esbarra nessa linha.

É claro que o esforço de dominar esses detalhes é uma barreira, mas remover a visão idealista do talento nato, do desempenho que vem puramente por ser inteligente ou habilidoso causa um verdadeiro choque na maioria das pessoas.

Hoje em dia, quando conto para as pessoas como se monta um cubo mágico, a maioria olha para mim e diz: ah, mas assim não tem graça.

É um pouco como o adolescente que cresce sonhando ser jogador de futebol, ele acredita que o talento vai surgir de dentro dele apenas jogando bola o dia todo. Quando descobre que para ser bom de verdade precisa fazer exercícios de controle, drill no cone, séries de sprint, musculação, corrida, nutricionista, treino tático, estudar posicionamento e tudo o que envolve o jogo além do simples ato de jogar bola, assistir ao jogo na televisão se torna bem mais divertido do que ser jogador.

Ser bom em qualquer coisa é tirar o luminoso verniz de magia que envolve a atividade.

A essa altura você deve estar perguntando: mas se a atividade fica chata, por que algumas pessoas continuam perseguindo essas práticas?

A única resposta que consigo pensar é porque compensa.

Quando, diante dessa realização de que a atividade não tem toda magia imaginada, a pessoa decide seguir em frente e participar do chato ritual de se aprofundar e desenvolver, a satisfação que se recebe muda de formato.

Mesmo não achando que montar um cubo mágico é algo incrível, meu foco deixou de ser “montar” e passou a ser “montar cada vez mais rápido”.

Isso exige estudar mais, treinar mais, repetir mais.

Quando você atravessa essa barreira, o jogo muda de figura, as motivações são outras e as recompensas muito mais satisfatórias.

Quando um profissional de Xadrez enfrenta outro grande jogador, todos tiveram acesso à maioria dos movimentos pré-definidos, livros e teorias, mas algum deles ainda vai ganhar do outro, e é nessa diferença que pode morar o talento e a inteligência.

Atravessar a barreira que desilude das atividades é doloroso por um tempo, mas consegue te levar para um outro patamar onde de fato esses detalhes fazem diferença.

Quem acompanha qualquer atleta, sabe que de tempos em tempos algum deles faz um vídeo, stories ou a legenda de uma foto dizendo: “Back to Basics”, insinuando que, mesmo estando num alto nível de desempenho, está revendo a base de fundamentos para que consiga se desenvolver ainda mais.

Esse basics é sempre o momento onde tudo fica chato, é repetitivo e perde o brilho. É o momento onde vemos todos os aprendizes tentando coisas muito avançadas, sem querer aprender o mínimo necessário.

Faz algumas semanas que estou com essa ideia na cabeça, pensando que se dedicar para ser bom em algo significa deixar essa atividade um pouco mais sem graça. No entanto, fazendo toda essa investigação, começo a enxergar que esse é o preço que se paga, é o pedágio para tornar, em algum ponto, tudo ainda melhor e mais gratificante.

Ter a disciplina de seguir através do básico, sem desanimar ou desistir, é o que garante alegrias e conquistas mais adiante. Quando um lutador derruba o outro numa luta, não importa se ele encaixou o golpe porque assistiu em todos os vídeos do seu oponente que ele abaixava a mão esquerda pouco antes de chutar.

Ele fica feliz exatamente porque na hora mais importante de todas, sabia exatamente onde agir.

A graça, para quem assiste de fora um belo desempenho, é parecer que tudo acontece naturalmente, com base no talento e sem esforço. Para quem está dentro, a grande satisfação é saber que finalmente todo aquele esforço, aquela parte chata, valeu a pena.

Este texto foi publicado anteriormente na newsletter Alt+Tab no dia 06 de Abril de 2021.

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