O problema não é deixar o dinheiro na poupança

Você não é um investidor, só é um cliente da corretora

Startup da Real
@startupdareal

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Um fenômeno recente, e que me causa bastante espanto, é a ideia de que todo mundo deve se tornar um investidor.

Popularizado por vídeos no Youtube, e não por verdadeiros cursos certificados em escolas de investimentos, essa visão empurra pessoas de classes media e baixa para juntar os poucos centavos do seu salário e correr para investir na bolsa.

O otimismo exagerado em relação aos investimentos não é casual. Corretoras, grandes e pequenas, injetaram uma boa quantidade de dinheiro para atrair uma série de investidores amadores para a bolsa de valores.

Individualmente o montante não é grande, mas quando começam a atrair milhões de pessoas físicas para o mercado financeiro, esse bolo acaba crescendo bastante.

É com essa visão que as empresas de investimento entenderam rapidamente que convencer a grande massa de injetar dinheiro no mercado financeiro era um negócio bem lucrativo.

Moldar grandes influenciadores de finanças e usá-los para convencer o público de que o segredo para alcançar o primeiro milhão está nos investimentos é, por si só, um investimento bastante lucrativo.

O otimismo em relação aos investimentos não faz parte de uma melhor educação financeira, mas de um intenso trabalho de marketing inserindo milhões de brasileiros no funil das corretoras.

Para quem não conhece, um funil de marketing de conteúdo — bem básico — é dividido em 3 fases: topo, meio e fundo.

O objetivo desse funil é transformar visitantes de um blog, portal ou site em clientes pagantes de uma solução.

Normalmente, uma estratégia básica de marketing de conteúdo foca em produzir 80% do conteúdo com material de topo de funil.

Uma série de conteúdos para atender pessoas que não entendem profundamente do problema, mas que já possuem um determinado interesse no assunto.

É por isso que a maioria das empresas mantém blogs bem alimentados, um canal no Youtube com vídeos educativos que raramente mencionam o produto que estão vendendo, mas abordam os diversos temas gerais que envolvem o negócio.

A ideia é atrair uma massa de leitores interessados nestes assuntos para escorregarem através do funil.

Uma vez captados pelo topo do funil, uma parcela dessa audiência vai sentir vontade de se aprofundar ainda mais no problema. Essas pessoas serão facilmente atraídas para os conteúdos do meio do funil.

O meio do funil trabalha os visitantes que já entendem das dificuldades e necessidades do seu negócio, sentindo que precisam agir em direção à solução do problema. As interações aqui, normalmente, acabam se dando por meio de ebooks, webinars ou lives.

Nesse ponto, o trabalho é conectar o problema com a solução do negócio que será vendido.

Sabe aquele ebook da Empiricus? Ou o curso gratuito da Betina? Aquela live com um especialista para falar quais são as melhores ações para o período?

É exatamente disso que estamos falando aqui.

O fundo do funil chega quando um visitante tornou-se uma lead qualificada, e você precisa apenas que ele conheça melhor o seu produto, sem muitos rodeios, para que ele se torne de fato um cliente.

É claro que essa abordagem é simplista e pode mudar em detalhes de acordo com a empresa ou metodologia, mas o funcionamento não desvia muito dessa ideia.

Só que os especialistas em marketing sabem que, quando você está consumindo esse conteúdo no blog de uma empresa, o material vem carregado de uma atmosfera: “eu sei que ele só está tentando me vender um produto”.

E mesmo sendo bem eficiente, grande parte dos visitantes já abordam o conteúdo de uma forma meio cética.

Existe o trabalho consciente de convencer que o conteúdo é valioso e digno de crédito, que não é apenas um discurso de vendas gratuito. No entanto, por mais que esse trabalho seja feito, ele não é tão creditável, por exemplo, quanto um grande portal de notícias falando do mesmo assunto.

A saída que as corretoras encontraram para quebrar a barreira do conteúdo topo de funil é simples: comprar os grandes portais de notícia do ramo.

A Infomoney é da XP Investimentos, a Exame é do BTG Pactual.

Agora, distanciando o conteúdo da empresa, fica muito mais difícil visualizar que uma matéria pode ser apenas um meio para educar o mercado e atrair mais clientes.

O otimismo dos investidores pessoas físicas passa a ser facilmente manipulado. Os portais que emitem as informações que serão usadas para criar confiança ou medo no mercado financeiro, são controlados por quem mais se beneficia disso.

Pensando dessa forma, não é uma surpresa descobrir que a expectativa em relação às condições econômicas do investidor brasileiro está muito descolada do que na realidade acontece na economia.

Este artigo da Bloomberg, em 2019, já abordava que a distancia entre a expectativa e a realidade em relação as condições da economia brasileira nunca foi tão alto. E que se os resultados econômicos de Jair Bolsonaro falhassem, o impacto com a realidade poderia ser bem doloroso.

Os sites especializados em finanças e investimentos, controlados por grandes corretoras, não foram a única porta de entrada para pessoas físicas no mercado financeiro. Influenciadores surfaram nessa onda e, muitas vezes patrocinados pelas corretoras, faziam o trabalho de atrair pessoas que rejeitam um discurso mais técnico.

Influenciadores de finanças possuem uma enorme gama de características de identificação. Fazem piadas, são simpáticos e usam termos do cotidiano para se conectar com um público que analistas e economistas muitas vezes não conseguem.

Anunciar num grande canal de finanças no Youtube, por exemplo, pode despertar o interesse por investimentos numa massa gigantesca, que antes passaria longe dessa conversa.

Dona Madalena, que pesquisou sobre poupança para colocar um pedaço do FGTS que acabou de receber, em menos de 5 minutos estava no Youtube, ouvindo uma simpática moça bonita e muito carismática explicando que deixar dinheiro na poupança é perder dinheiro.

Alguns anos dessa tendência e hoje temos uma geração de pessoas que acredita que investir na bolsa é a principal forma de investimento, e é claro, deixar dinheiro na poupança é um grande crime.

Existe uma direção constante e única no conteúdo de ~educação financeira~ que aponta cada vez mais para investimentos em ações e alguns outros fundos.

A aura criada pelo consumo desse tipo de material é tão grande, que as pessoas adotam o fato de ter alguma quantidade pequena de dinheiro numa carteira de investimento como parte da sua identificação pessoal.

Basta dizer numa rede social que mantém seu dinheiro numa poupança, para surgir um mar de pessoas dizendo o tamanho do absurdo que você está cometendo. Curiosamente, é a mesma reação dos fãs de cerveja artesanal e café gourmet. Uma relação muito mais de construção da autoestima e definição de personalidade, do que conclusões baseada na análise de perfil, condições individuais e disposição ao risco.

Quando alguém sugere uma alternativa melhor que a sua para o seu dinheiro, sem ao menos perguntar sobre sua realidade, emprego, reserva e dívidas, este é o sinal de que essa sugestão é o puro resultado de um impulso egocêntrico para mostrar o que sabe sobre o assunto.

Não é nada diferente de dizer que gostar de beber cerveja Brahma é “tomar xixi de milho”, sem se importar o mínimo com o seu gosto pessoal, costumes e hábitos. Neste caso, impor uma realidade pessoal em cima da sua, como forma de valorização do próprio conhecimento, é tudo o que importa.

É só ego.

O investidor brasileiro, pessoa física, está sendo educado com foco nos ganhos e nas possibilidades positivas. As pessoas estão entrando no mercado financeiro com os únicos 1000 reais que conseguiram juntar ao longo de um ano e pensando em transformar este dinheiro em milhões.

Mas existem filosofias muito diferentes quando o assunto é investimento, e assumir uma direção especifica como verdade absoluta é um problema gravíssimo. O problema é que a maior parte da suposta educação financeira que circula na internet está vindo desses agentes que incentivam o risco.

Mas da mesma forma que investidores agressivos olham mais para os ganhos do que para os riscos, existem os especialistas que estão muito mais ligados ao risco do que nas possibilidades de lucro. Um percentual de juros levemente mais alto nem sempre justifica o risco envolvido.

Nassim Taleb, sempre citado em qualquer conversa moderna sobre investimento, é um desses especialistas em investimento com os olhos voltados para o risco. A filosofia construída por ele, ao longo dos 4 best sellers de sua série, disseca detalhadamente cada detalhe na relação entre incerteza, riscos e suas consequências.

Taleb, numa entrevista para Bloomberg, aborda exatamente o ponto do investidor simples em relação ao mercado. Para Nassim Taleb, sem uma boa proteção aos riscos, o mais aconselhável é se manter fora do mercado financeiro. Para quem não tem proteção, é melhor apenas manter o dinheiro ou até segurar uma pequena perda com a correção da inflação, do que se expor ao risco.

“É preciso olhar para os dois lados da história. Você pode ganhar muito, mas pode terminar sem dinheiro.”

O que a maioria das pessoas ignora — aqui cabe A lógica do Cisne Negro — é que situações muito ruins podem acontecer de uma hora para outra. É possível perder tudo da noite para o dia, sem aviso.

O autor de Antifrágil ainda destaca algo que considero muito importante:

As pessoas tendem a olhar para suas economias tentando transformá-lo em sua principal fonte de renda, quando na verdade, você deve olhar para esse dinheiro buscando preservá-lo.

O foco deve ser preservar. E se algo sobrar, aí pode fazer sentido arriscar um poucos mais.

A principal fonte de receita deve vir do trabalho. Você produz recursos trabalhando e guarda/investe para preservar o patrimônio construído.

Algo que passa muito despercebido nessa história de investimento, e que ninguém costuma pensar muito, é que um aumento de salário de 200 reais, significa, em um ano, um rendimento próximo de deixar 20 mil reais no CDB por 5 anosclaro, ignorando variações.

Um aumento de 200 reais por mês no salário são, em um ano, 2600 reais. Sabe quanto você precisaria deixar num CDB para render 2600 reais em um ano? Algo próximo de 130 mil reais.

O público geral, bombardeados por campanhas de marketing disfarçadas de educação financeira, investe muito mais com a emoção de se descolar da sensação de pertencer a classe trabalhadora e acreditar que está em outro patamar social, do que pela análise fria de quanto de fato está rendendo aqueles investimentos.

Não é raro, investir em desenvolvimento profissional e capacitação — claro, até certo ponto porque não se cresce salários indefinidamente — compensar muito mais do que a grande maioria dos investimentos.

É preciso ficar muito claro que investimentos geram muito dinheiro para quem tem muito dinheiro. Mas para a maioria das pessoas comuns, que estão muito mais suscetíveis aos impactos de uma crise, desemprego, um acidente debilitante ou uma morte na família, é preciso pensar em reserva de emergência e preservação do patrimônio.

Este é o jogo a ser jogado.

Em meio a uma pandemia que impacta diretamente a economia e empregos, o foco massivo das pessoas deveria estar em guardar o máximo de dinheiro com a maior liquidez possível. Você nunca sabe quando uma empresa vai fechar e ficará desempregado. E por melhor profissional que seja, o momento não está em abundância para ninguém.

As chances são, que aproveitando a onda de desemprego e escassez de vagas de trabalho, as empresas ofereçam cada vez menos, tanto porque os lucros estão caindo — obviamente não em todos os setores — , quanto porque sabe que as pessoas estão desesperadas por um emprego.

E quando os gurus de finanças falam sobre reserva de emergência, é sempre uma passadinha direta, apenas como uma etapa, às vezes em paralelo, ao processo de ~finalmente se tornar um investidor~.

Mas pensa comigo: quanto tempo, uma pessoa que ganha 2500 reais por mês, vai precisar guardar 10% do seu salário para juntar entre 6 e 8 meses de renda, garantindo que está minimamente protegido caso perca seu emprego e tenha dificuldades de conseguir outro?

Montar essa reserva vai levar até 5 anos. E a maioria das pessoas vai precisar do dinheiro que está guardado muito antes disso.

Qual lógica existe em fazer alguém que não tem a mínima reserva, a mínima proteção caso perca o emprego, expor o pouco dinheiro que conquistou trabalhando em investimentos ainda mais arriscados?

E é comum as pessoas repetirem: “ah, mas se colocar 500 reais por mês, durante 30 anos, dá para ter uma boa aposentadoria”.

De novo, é preciso voltar para a realidade do brasileiro.

Primeiro, num país onde 85% da população ganha menos de 2500 por mês, e 98% ganha menos de 9000 reais mensais, esperar que a pessoa consiga guardar 500 reais por mês é uma estimativa bem otimista.

Metade dos brasileiros vive com 413 reais por mês.

Eu sei, parece pouco, mas para a maioria das pessoas é uma quantia de dinheiro muito além da possibilidade.

Segundo, que esperar que essa pessoa não retire esse dinheiro ao longo de 30 anos é ignorar toda nossa conturbada história. Nossa democracia mal tem 30 anos. Muita coisa pode ser diferente ao longo dos anos e as necessidade vão variar demais, mudando completamente os planos iniciais.

Taleb, ainda na entrevista para a Bloomberg, explica que é muito difícil fazer as pessoas entenderem que essa expectativa do longo prazo não se aplica ao mundo real. A visão que se tem no começo é muito diferente do que encontramos no caminho. É como um casamento, ele diz, ninguém se casa pensando em separar, mas a metade dos casamentos termina bem antes do esperado.

Mas nada disso aqui deve servir de argumento para você não investir. E esse é o principal ponto.

Cada pessoa possui um perfil, uma renda e uma estrutura, até familiar, que permite assumir riscos ou não. É comum, por exemplo, a classe média alta quebrar negócios e ser socorrida pelos familiares.

No entanto, para outra fatia bem menos privilegiada, ou até mesmo, mais responsável, os riscos que correm serão sentidos na própria pele, aos custos da sua qualidade de vida e de seus familiares. É bem menos tentador assumir riscos quando você descobre que o downside é seu filho passando fome.

Investimento e finanças exigem, antes de tudo, uma análise aprofundada de quem está arriscando a própria pele. Cada um, individualmente, carrega expectativas e possibilidades diferentes.

Mas essa visão que carrego por ter lido muito Nassim Taleb não é tão popular assim. O próprio apresentador da Bloomberg se espanta quando Taleb aconselha que sem proteção investidores não se exponham ao mercado financeiro.

No marketing existe um movimento comum, normalmente guiado por um grande player, que é chamado de educação de mercado. Fazer as pessoas entenderem que existe um problema e que existe uma boa solução — uma categoria de produtos — que podem resolver este problema.

Infelizmente, grande parte do que tentamos chamar de educação financeira é apenas educação de mercado. São empresas investindo fortunas para convencer o público de que a saída da pobreza e a conquista da riqueza está nos serviços que elas mesmos oferecem.

Educação financeira, mesmo, é bem raro de ver.

Eu não sou especialista em finanças e nunca quis falar muito sobre o assunto. Quem me segue faz mais tempo sabe disso. Compartilho aqui um pouco da minha visão sobre o assunto e a filosofia particular que carrego ao lidar com riscos e outros problemas financeiros.

De resto, o que faço, é uma receita das mais simples:

Trabalho muito e deixo meu dinheiro de reserva onde consigo acessar 3 horas da manhã de um domingo. E enquanto eu não for rico o suficiente para essa reserva ficar maior do que o risco que ela deve cobrir, meus planos são trabalhar ainda mais e não me preocupar com outros investimentos.

Quando isso mudar, a conversa é outra.

Este texto foi publicado anteriormente na newsletter Alt+Tab no dia 02 de Março de 2021.

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Pensamento crítico sobre tudo o que ninguém quer contar para você.