O problema não é o empreendedorismo de palco

O mundo é maior do que nossas evidências anedóticas

Startup da Real
@startupdareal
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12 min readDec 6, 2018

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Desde que criei o Startup da Real no Twitter, muitas pessoas dizem que eu "ataco os empreendedores de palco", numa simplista explicação do trabalho que eu tento fazer aqui no Medium e no Twitter.

A descrição do empreendedorismo de palco é simplesmente aquela pessoa, normalmente de boa aparência e fala cativante — que te aprisiona — e que ganha a vida dando palestras sem ter o conhecimento prático — talvez necessário — para embasar suas afirmações.

Mas o empreendedor de palco é apenas um sintoma do problema, mas não o problema em si. Não é — apenas — a falta de experiência prática no discurso vendido que caracteriza um palestrante perigoso.

Se não sabe o que fazer, não faça nada.

Existe um engano comum na visão geral sobre a resolução de problemas.

Quando pensamos em melhorar qualquer situação, temos o costume de buscar ações positivas — fazer algo— para tornar o que desejamos realidade.

Quando alguém decide que precisa emagrecer, a iniciativa geral é pensar o que precisa comer, quais suplementos ou remédios deve tomar. Quando alguém quer ficar rico, pensa imediatamente onde colocar o dinheiro, o que comprar para acelerar o processo ou quais serviços assinar.

A vontade de adicionar elementos para gerar resultados é quase um padrão. E normalmente podemos identificar charlatões pelo discurso exclusivamente positivo — indicando ações.

O problema é que de forma prática as grandes conquistas não tendem a ser alcançadas por adição, mas por ações negativas—não fazer.

Observe jogos que envolvem risco, como Xadrez ou Poker, que a melhor estratégia para ganhar não é entrar em mais apostas, mas evitar perdas. Um dos principais ensinamentos de qualquer mesa de Poker é saber quando não entrar. Evitar perder até identificar chances reais de ganhar.

Da mesma forma, pessoas não ficam ricas apostando cegamente, mas evitando quebrar num meio onde todos estão falindo. E por padrão, quem emagrece também não faz isso adicionando mais alimentos à dieta. Só existe uma forma de perder peso, déficit calórico.

Essa ideia foi permeada de forma tão drástica na mentalidade cotidiana que o discurso padrão virou: você só pode ser feliz se fizer algo, se tiver um propósito, uma busca maior, um objetivo amplo.

Do dia para noite, a única forma plena de felicidade deixou de incluir filhos, uma vida tranquila e um cachorro no quintal. Para ser feliz agora é preciso um negócio multimilionário, conhecer 45 países e trabalhar 80 horas por semana.

Ter uma vida sem dores de cabeça, fazer o seu trabalho direito, voltar para casa e curtir a família até acordar no dia seguinte e voltar para suas atividades deixou de ser algo louvável, tornou-se uma vontade reprovável.

O discurso que é vendido por aí, não apenas tenta impulsionar aqueles que apresentam uma predisposição para empreender, mas rebaixar aqueles que não vivem a mesma busca.

A palavra de ordem é "deixe de ser medíocre" hostilizando quem deseja levar uma vida de poucas ambições e com o foco em outros valores.

Quando questionados sobre o uso da palavra medíocre, o sorrisinho amarelo aparece e a falácia etimológica entra em campo: "medíocre de mediano", esquiva-se como quem não lembra que a palavra, com o passar dos anos, assumiu uma conotação ofensiva para definir algo ou alguém que não possui virtudes.

A discussão sobre "estar acima da média" já foi abordada por aqui.

Tudo funciona para alguém

Um dos argumentos mais comuns quando alguém levanta crítica aos conselhos que encontramos pela internet, é que "tem gente que se beneficia", "pode funcionar para alguns" e "não é tão ruim assim."

O primeiro problema que a gente precisa abordar quando falamos de "funcionar" é que estatisticamente quase tudo vai funcionar para alguém.

Quando observando um estudo abordando algum método específico, podemos observar agrupamentos que demonstram o ponto de maior ocorrência, mas também existem pontos que desempenharam muito acima ou muito abaixo do que foi observado pela maioria.

exemplo de distribuição

Uma pessoa sedentária que nunca praticou atividades físicas e deseja ganhar massa muscular, vai se beneficiar de praticamente qualquer estimulo novo que for submetido, independente de existir uma lógica ou planejamento de treino.

Alguém que ganha 10 mil reais por mês, certamente consegue juntar 100 mil em 5 anos, economizando 56 reais por dia. Mas é possível considerar essa uma boa dica, simplesmente porque alguém consegue se beneficiar disso?

Se olharmos para os dados, vamos ver que não.

Considerando os dados de renda mensal domiciliar per capita da população, apenas os moradores do DF seriam capazes de seguir essa dica. Claro, se não precisarem pagar aluguel, condomínio, luz, água, alimentação, transporte, vestimenta, saúde e outros custos da vida cotidiana.

Os relatos anedóticos criam um problema grave de percepção na forma como compartilhamos experiências. As histórias que contamos sobre o mundo para embasar afirmações tendem a ser viciadas e pouco aplicáveis.

Todo programador já ouviu falar sobre alguém que ganha 10, 15 ou 20 mil e essas histórias se espalham como fogo no capim. Mas ao analisar o salário real dos programadores a maioria não chega nem na metade destes números. Para cada empresa com um programador recebendo um salário desses, existe quase uma dezena de milhar que não chega perto disso.

A mesma coisa acontece quando falamos sobre negócios e empresários. Como só estamos vendo aqueles que deram certo e viveram para contar suas histórias, nossa percepção do mundo diz que basta empreender e vai dar certo. Repetimos os mesmos cases de sucesso por praticamente 10 anos, sem nos dar conta do motivo de serem sempre os mesmos.

É o WhatsApp vendido por 23 bilhões, o Instagram por 1 bilhão ou a Netflix ganhou notoriedade quando a Blockbuster não teve visão.

A visão focal criada por anedotas e utilizadas para reforçar um discurso cria uma inevitável bolha de percepção.

Primum non nocere

Quando a discussão sobre robótica entra no campo da medicina, a maioria das pessoas tende a olhar pelo caminho da ação positiva. Um robô — equipamento com forte inteligência artificial — seria capaz de realizar exames por conta própria, analisar os dados, identificar doenças e indicar um tratamento.

A estratégia parece simples e extremamente funcional, mas na vida real nem tudo funciona como nos diagramas feitos com tinta pincel num quadro branco.

Existe um princípio ético que norteia as atividades médicas e que cria uma enorme dificuldade para aplicar o modelo de inteligência artificial na medicina. Antes de tudo, não cause dano. Eu já entendi @marcogomes, uma hora os robôs vão conseguir.

Qualquer pessoa saudável que passar por exames detalhados de saúde apresentará algum tipo de irregularidade. São inúmeras pequenas infecções, inflamações e outros problemas que o corpo soluciona por conta própria. Solucionar todas as inflamações e infecções do corpo enfraquece o sistema imunológico e fragiliza o paciente, deixando-o mais vulnerável.

Tão comum quanto, são condições onde o tratamento apresenta risco maior do que a própria doença.

Uma senhora de 87 anos, de saúde fragilizada, com o fêmur fraturado dificilmente vai passar pela cirurgia de correção. O risco de ir a óbito é maior do que o benefício de recuperar o funcionamento do membro. Por mais triste que possa parecer, nossa Vozinha provavelmente vai usar cadeira de rodas até o fim da vida.

Do ponto de vista do médico, muitas vezes mais importante do que saber resolver um problema é o entendimento de quando não tomar uma ação. E você pode achar que isso representa uma pequena parcela dos pacientes, mas a Iatrogenia — morte causada pelo curador — é uma das principais causas de morte nos Estados Unidos.

Isso não significa que médicos são ruins ou que não devemos procurá-los para resolver problemas de saúde, mas que existe uma base ética — que muitas vezes é comprometida — ensinando que as vezes a melhor decisão é não fazer nada.

Por melhor que seja a intenção, expor um paciente ao risco do tratamento muitas vezes causa um dano maior e muito desproporcional. Todo remédio ou tratamento passa por esse dilema: os efeitos colaterais compensam o tratamento da doença?

Muitas vezes não.

Outra forma de enxergar como intervenções ingênuas podem causar danos que não imaginamos, são treinos e dietas feitas sem o embasamento científico necessário. Estudos demonstram que a indicação de rotinas drásticas se exercício físico e dietas extremamente restritivas causam retorno do peso e dificuldade posterior em voltar a emagrecer.

O estudo de acompanhamento feito com os participantes do programa "O Grande Perdedor" ao longo de 6 anos, demonstra que após a perda de peso os participantes sofrem uma intensa adaptação metabólica, fazendo o organismo consumir até 500 kcal diárias menos do que antes de emagrecer. Essa adaptação não apenas devolve boa parte do peso, como também dificulta o processo de voltar a perder peso.

Infelizmente os dados mostram que perder peso de forma consistente vai além de simplesmente "fazer dieta e se mexer mais" ou "eu era gordo e agora estou magro, você também pode".

Os relatos anedóticos de quem já fez podem parecer sólidos, mas o problema do risco está nas informações e detalhes que não conhecemos.

Seguir as dicas de dieta e treino da sua musa fitness favorita do Instagram pode parecer uma excelente ideia, mas como existem pontos que ela mesma desconhece, é possível que no longo prazo você acabe sofrendo do efeito sanfona e encontrando ainda mais dificuldades para perder peso.

O erro mora no discurso ingênuo

Em situações onde não existem critérios fortes para definir real autoridade sobre um assunto, o já comentado relato anedótico assume uma força desproporcional para validar o que está sendo dito.

Como o empreendedorismo, por exemplo, não é um conhecimento validado por um processo formal — o que é bom —, experiência acaba exercendo forte influência na hora de decidir a credibilidade de alguém.

Uma pessoa que já construiu um negócio conquistou — sem dúvida — mais autoridade para abordar o assunto do que alguém que apenas leu inúmeros livros. Mas assim como no exemplo da dieta, existem variáveis ocultas e detalhes que normalmente essa experiência desconhece — ou ignora.

Apesar do selo de autenticidade que o discurso de alguém que viveu a experiência recebe, a vivência não valida automaticamente tudo o que é dito.

O fato é que o discurso de autoridade é uma falácia das mais comuns que existem. A estratégia mais simples para desmerecer um argumento é tentar remover a autoridade do interlocutor ou transferir a própria autoridade para fortalecer uma posição.

É por isso que argumentos devem ser analisados pontualmente pelas suas propriedades, ignorando — ao máximo — quem está apresentando as informações.

É neste ponto onde entendemos que o problema não é o empreendedorismo de palco, mas o uso de argumentos vazios.

O que é perigoso — e está longe de ser uma característica exclusiva dos empreendedores de palco — são os discursos ingênuos e que incentivam pessoas a assumirem riscos desproporcionais.

Quando eu abro meu email de manhã e encontro uma mensagem dizendo: especialista de Harvard afirma que Bitcoin vai valorizar 545% até o fim do ano. Eu tenho o claro exemplo de alguém utilizando de autoridade — neste caso, não a própria — para me incentivar a assumir riscos que eu desconheço — ou que estão sendo propositalmente ocultados.

Eu realmente recebi um email com essa afirmação no começo do ano.

Já pensou?

O mesmo é verdadeiro quando alguém diz: "Bill Gates não tinha nível superior e virou bilionário, é melhor empreender do que fazer faculdade."

Neste caso, o discurso inverte a lógica: Bill Gates não ficou bilionário por não ter nível superior, mas apesar de não ter nível superior. Mais ainda, ignora o perigo de um negócio não dar certo e a foge da realidade objetiva: as profissões mais bem pagas do mundo ainda exigem formação.

Além de incentivar o risco de chegar aos 30 anos, com uma empresa falida e sem nível superior, oculta-se o fato de que gente bem sucedida sem nível superior ainda é uma minoria. Quase todos abandonaram universidades como Harvard, Stanford, Princeton e Yale, e vieram de famílias ricas o suficiente para que não conseguir um emprego bem remunerado no futuro não ser uma preocupação real.

E por mais que o discurso venha acompanhado do clássico: "mas você pode ser um ponto fora da curva" o mundo real não se importa com o que você acha.

Estatisticamente, praticamente todo mundo que seguir esse conselho vai se dar mal.

Estudo retratando o mito da pessoa bem sucedida que abandona a faculdade

De uma forma mais drástica, mas com um mecanismo similar, conselhos ingênuos baseados em experiências anedóticas, discurso de autoridade e otimismo exagerado fizeram pessoas pararem seus tratamentos de câncer para apostar na eficácia da Fosfoetanolamina.

A pele no jogo dos outros

São inúmeros os conselhos perigosos que são replicados diariamente por empreendedores, de palco ou não, palestrantes, instagramers fitness, gurus de finanças, coaches e outros profissionais que lucram alto com a venda desses conselhos.

Instituir a figura do Empreendedor de Palco teve um papel importante para a identificação de um padrão, mas se prender ao estereótipo e não ao discurso problemático ainda deixa pessoas inocentes vulneráveis. O problema não é o palco, mas a superficialidade do que está sendo dito lá em cima.

Qualquer pessoa que oculte riscos e impulsione ações sem discorrer sobre os riscos, responsabilidades e, tão importante quanto, situações onde o melhor é não fazer nada, está sendo tão ou mais nocivo que muitos empreendedores de palco.

Mais ainda, quando existe a perspectiva de lucro em cima dos conselhos fornecidos, o problema se intensifica. Quem fornece o conselho não apenas perde as motivações para apontar os riscos, como ganha motivações para ocultá-los.

Na maioria dos casos uma pessoa apenas ganha sem assumir nenhum risco, enquanto o outro lado corre o risco de perder tudo com uma chance marginal de ganhar algo.

Mais ainda, se eu não tenho nenhuma responsabilidade pelos conselhos que forneço, eu perco o incentivo para sugerir uma direção certa.

Imagine por exemplo, uma empresa que vende consultoria de investimentos. Se ela não assume riscos pelas perdas do cliente, o que impede o consultor de indicar apenas títulos de empresas parceiras, ganhando uma comissão imediata pela venda ao invés de enfrentar os riscos probabilísticos do mercado para extrair uma comissão no futuro?

Ter a pele em jogo não significa ter passado a experiência uma vez, mas compartilhar o risco todas as vezes que apontar uma nova decisão. É impossível assegurar que um conselho é o melhor possível, sem compartilhar as consequências do resultado.

Por isso a melhor forma de descobrir um bom investimento, por exemplo, não é perguntar para um especialista quais são as melhores ações para investir, mas perguntar onde o analista está aplicando o próprio dinheiro.

Colocar a pele no jogo é uma iniciativa ética para garantir que as decisões são as melhores possíveis. E mesmo em situações onde o risco se consolida, ambos aprenderam o que não fazer. O consultor no caso, jamais repetirá o mesmo conselho novamente.

Quando Nassim Nicholas Taleb percorre sua jornada de quatro longos livros desenvolvendo a importância de arriscar a própria pele, muita gente interpreta "colocar a pele no jogo" como um simples argumento em busca de autoridade, "eu vivi então posso falar".

No entanto, a obra de Taleb é um longo tratado sobre a ética que envolve riscos. A expressão Skin in the game é, na verdade, um acordo ético constante de que alguém não pode apontar decisões se não compartilhar as consequências pelos resultados ruins.

Um livro após o outro, o que Nassim Nicholas Taleb faz é apontar o dedo para jornalistas, economistas e outros charlatões que incentivam riscos em beneficio próprio, sem nunca assumir as consequências dos danos causados aos outros.

Para esquivar de conselho perigosos, pergunte-se não apenas o que você perde se o conselho estiver errado, mas o que a pessoa que está dando o conselho também vai perder.

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