Ser gordo é uma questão de escolha?

Tudo o que você não sabia e coloca um fim neste debate

Startup da Real
Published in
9 min readJun 19, 2022

--

Este texto é uma tradução livre deste vídeo, publicado por Jeff Nippard em seu canal do Youtube.

Essa é uma questão complicada.

Muita gente tende a pensar na questão como se existissem dois botões.

No primeiro botão estaria escrito Obeso, e no outro teríamos Não Obeso. Neste cenário, todo mundo que está muito acima do peso optou conscientemente por apertar o botão Obeso.

Mas eu não acredito que funciona assim.

Para início de conversa, se você escolhesse 100 pessoas aleatórias na rua e perguntasse qual botão essas pessoas gostariam de apertar, suspeito que quase todos optariam pelo botão Não Obeso.

As pessoas sabem dos riscos para saúde e dos estigmas sociais associados a obesidade. Teoricamente, ninguém escolheria ser obeso de forma consciente, falando neste sentido mais simplista.

Talvez seja um pouco mais parecido com esse outro cenário:

Você tem essa longa lista de escolhas continuas ao longo de toda sua vida, onde seleciona alguns alimentos em detrimento de outros.

Seja quando você escolhe entre um frango frito empanado ou um peito de frango grelhado, coca-cola normal ou coca zero, ou escolhe entre batata frita pequena e a extra-grande no McDonalds. E, também, quando você prefere alguns comportamentos em vez de outros, como exercitar-se ou ficar no sofá.

Ao longo do tempo, seriam os efeitos acumulativos dessas inúmeras escolhas individuais que levariam uma pessoa a se tornarem obesas.

Acredito que essa analogia está um pouco mais próxima da realidade, mas ainda é muito incompleta.

Observe esse gráfico, de um estudo de 1990, onde pessoas foram alimentadas com 1000 calorias a mais por dia, ao longo de 100 dias, pouco mais de 3 meses.

Todos os indivíduos foram supervisionados 24 horas por dia, 7 dias por semana, pela equipe de pesquisadores para garantir que todos seguiram os protocolos.

Cada barra do gráfico acima representa uma pessoa, a altura da barra diz quanto peso ganharam ao longo dos 100 dias.

A pessoa mais à esquerda do gráfico ganhou 10 libras (~4,5kg) ao longo do experimento, já a pessoa no ponto mais à direita do gráfico, ganhou quase 30 libras (~13,6 kg) com as mesmas 1000 calorias extras por dia.

Isso pode acontecer por inúmeros motivos, mas um grande fator é a diferença genética entre metabolismos.

Neste estudo de 2018, podemos observar que assim como existem diferenças no ganho de peso, existe também uma enorme diferença em quantas calorias as pessoas gastam em repouso.

No gráfico, observamos que o indivíduo mais à esquerda gastava 250 kcal a menos do que os cálculos de metabolismo previam. Já o sortudo mais à direita, queimava 150 kcal a mais do que previsto pelos cálculos.

Isso significa que, mesmo que nenhum dos dois fizesse exercício, o indivíduo da direita ainda gastaria mais de 400 kcal por dia a mais que a pessoa na extrema-esquerda do gráfico.

Voltando aos botões do começo do texto, uma batata frita pequena do McDonalds tem 200 kcal, e a batata extra-grande 600. São 400 calorias a mais quando você escolhe a batata maior.

Neste caso, a pessoa à direita do gráfico poderia escolher a batata extra-grande todas as vezes, que ainda teria o mesmo equilíbrio calórico da pessoa à esquerda mesmo escolhendo sempre a batata pequena.

Mas este resultado está considerando apenas o gasto energético em repouso, mas as pessoas também gastam calorias se exercitando, pelo efeito térmico dos alimentos e através da termogênese da atividade sem exercício, que na literatura especializada é chamada NEAT.

Esse NEAT pode variar bastante entre indivíduos, mais até que o gasto energético em repouso. Essa termogênese da atividade sem exercício se refere às calorias gastas por atividades diárias que não são realmente exercícios físicos, como comportamentos de inquietude ou ficar batendo o pé.

E por mais que seja possível aumentar o NEAT movendo-se mais ao longo do dia, esses comportamentos são regulados subconscientemente pela dinâmica cerebral.

Então ao forçar um comportamento mais inquieto e mover-se mais ao longo do dia, em muitos casos, seu cérebro encontrará uma forma de reduzir esse gasto calórico compensando em outro lugar. Seja aumentando a sonolência, tirando cochilos, piscando lentamente ou andando mais devagar.

Num estudo observando o Papel da Termogênese de Atividade Sem Exercício para medir a resistência de humanos ao ganho de peso, pesquisadores alimentaram indivíduos com 1000 calorias a mais, pelo período de 8 semanas.

Os pesquisadores descobriram que o NEAT dos indivíduos variava de -98 kcal, onde indivíduos se moviam ainda menos, a 692 kcal adicionais queimadas por dia.

Isso quer dizer que um indivíduo que adicionou 1000 kcal ao dia conseguia queimar 692 dessas calorias apenas em atividades que não eram exercícios, batendo o pé, batucando com os dedos na mesa ou se movendo por aí.

Enquanto isso, o corpo do outro participante precisava lidar com as 1000 calorias extras e um pouquinho mais. Já que seu NEAT foi reduzido em 98 kcal.

Dessa forma, alguém que foi geneticamente abençoado com uma alta taxa de gasto energético em repouso e altos níveis de NEAT, pode escolher apertar o botão e comer alimentos gordurosos e não saudáveis com muito mais frequência e ainda apresentar peso corporal mais baixo do que alguém que não teve tanta sorte assim na loteria genética.

Isso bate bastante com nossa experiência cotidiana. Todo mundo conhece alguém que já testou todas as dietas disponíveis e ainda continua acima do peso, mas também conhece alguém que pode comer de tudo sem se preocupar, mas continua magro.

A maior parte das pessoas rapidamente elogiariam a pessoa magra por sua disciplina, assim como criticariam a pessoa obesa por sua suposta falta de força de vontade e escolhas ruins.

Todos esses julgamentos acontecem sem reconhecer que existem inúmeros fatores de base genética que pode deixar incrivelmente fácil para a pessoa magra continuar magra, mas incrivelmente difícil para a pessoa acima do peso realizar qualquer mudança considerável.

Tudo o que falamos agora é apenas o metabolismo, mas existe outro grande fator em questão: o apetite.

Estudos também mostram que alguns indivíduos sentem mais fome que outros como resposta às dietas. Algumas pessoas sentem que estão o tempo todo lutando contra a vontade de comer, enquanto a fome de outras é reduzida após as refeições e volta um pouco antes da hora de comer.

Neste estudo de 2013, pesquisadores avaliaram o apetite de dois grupos, os que faziam refeições com bastante gordura e os que faziam refeições com baixo índice de gordura.

Na média, ambos os grupos foram capazes controlar o apetite, no entanto, quando os resultados foram separados por participantes individuais, era possível observar uma gigantesca disparidade nos resultados.

Enquanto algumas pessoas continuavam famintas após as refeições, outros sentiam-se plenamente saciados.

E como apetite é o que naturalmente guia a ingestão de alimentos para a maior parte das pessoas, novamente vemos que alguém que continua faminto após uma refeição terá muito mais dificuldade em mudar estes hábitos quando comparados com alguém que é saciado facilmente.

Até aqui, cobrimos dois fatores genéticos que explicam como algumas pessoas ganham pesos com mais facilidade que outras, mesmo fazendo as mesmas escolhas em relação à alimentação e exercícios.

Entretanto, ainda existem muitos outros fatores biológicos que podem influenciar.

Sejam medicamentos que podem aumentar o apetite e a retenção hídrica, condições neuroendocrinológicas que podem influenciar no ganho de peso através de hormônios e metabolismo, gravidez e menopausa que possuem enorme impacto hormonal e metabólico ou por alguma deficiência física, tornando o gasto de calorias através do NEAT, a já comentada termogênese de atividade sem exercício, muito mais difícil.

É claro que isso não significa que Calorias Ingeridas x Calorias Gastas só funciona para algumas pessoas. É um fato que obesidade acontece quando comemos mais calorias do que gastamos. Um estudo rigidamente controlado confirmou repetidas vezes que a ingestão de calorias é o motor que guia tanto ganho, quanto a perda de gordura.

Isso significa que qualquer pessoa que está obesa alcançou essa condição através de um consistente superavit calórico ao longo do tempo. No entanto, para algumas pessoas evitar esse superavit é muito mais difícil do que para outras, e por motivos que vão bem além da sua escolha consciente.

É por isso que acredito ser errado reduzir todos esses fatores à mera escolha entre ser obeso ou não.

Se esse fosse o caso, por que a tendência de obesidade aumentaria tanto a partir dos anos 70? As pessoas estariam subitamente escolhendo ser obesas?

Ou existe outra camada para tudo isso?

Eu não acredito que esse pico de obesidade aconteceu porque mais pessoas escolheram tornar-se obesas, mas pelo fato de que alimentos altamente calóricos tornaram-se mais disponíveis e por preços muito mais acessíveis.

Mais pessoas tiveram acesso a alimentos mais gostosos, altamente processados e muito calóricos.

Isso nos leva para outro lado de tudo isso, os fatores ambientais.

Deixando de lado todos os fatores biológicos e metabólicos que já conversamos, existem fatores ambientais que podem impactar sua suscetibilidade a obesidade.

Isso inclui o ambiente alimentar, onde além do pico de disponibilidade, nós também somos bombardeados por campanhas de marketing melhores e mais impactantes para alimentos altamente calóricos, que promovem consumo em excesso e porções em tamanhos cada vez maiores.

Existe também o fato de que comidas saborosas e altamente calóricas, os junkie foods, costumam ser mais baratas, sendo mais acessíveis para pessoas com renda mais baixa.

Também precisamos levar em conta os fatores sociais, considerando o tipo de alimentação que sua família e amigos seguem e que pode tornar muito difícil, e no caso de dependentes e crianças, virtualmente impossível, fazer as tais boas escolhas.

Tudo isso sem esquecer do estilo de vida que a pessoa leva, considerando, por exemplo, a quantidade de horas que uma pessoa dorme por noite. E mesmo sendo tentador dizer que a pessoa pode apenas dormir mais, isso nem sempre é fácil devido ao trabalho e outras responsabilidades.

De fato, uma meta-análise de 2017, identificou que trabalhar no turno da noite está associado com um risco 23% maior de ficar acima do peso. Essa outra meta-análise de 2019, encontrou a relação dose-resposta entre duração do sono e riscos de obesidade.

Menos sono significa maior risco de obesidade, sendo 7–8 horas por noite sendo o ponto próximo do ideal.

E existem fatores psicológicos como estresse e depressão.

Essa meta-análise de 2010 descobriu que estresse é um fator de risco para ganho de peso, e outra meta-análise do mesmo ano identificou que depressão é um fator preditivo para risco de obesidade.

Voltando para a pergunta do início, obesidade é uma escolha?

Eu acredito que a resposta é não.

Pelo menos não em todos os casos, muito menos no sentido simplista da questão. Existem influências demais dos fatores genéticos e ambientais, para apontar a culpa inteiramente para o indivíduo por sua condição.

Mas isso também não significa que ninguém tem controle algum da sua saúde e do seu peso corporal. Obviamente, se as pessoas quiserem perder peso, mesmo que existam muitos fatores agindo contra elas, como baixa taxa metabólica, fome e tudo o que conversamos aqui, ainda é possível perder peso se conseguir sustentar déficit calórico ao longo do tempo.

No fim, a pergunta se obesidade é ou não uma escolha pode ser condensada num problema semântico. Talvez o que você quer dizer quando usa a palavra escolha, seja diferente do que eu digo com a mesma palavra.

Então se você quiser argumentar que existe uma escolha em algum sentido, o melhor que você pode dizer é que existe uma série de escolhas complexas entrelaçadas com outros fatores também complexos que podem contribuir.

Assim, como pessoas que ocupam os espaços de saúde e fitness, acredito que precisamos aumentar os esforços para sermos mais compreensivos com estes fatores e mais compassivos com as pessoas passando por estas dificuldades, mais do que fazer julgamentos por suas escolhas e suas características.

Em vez de culpá-los pelas circunstâncias, podemos focar em guiá-los na direção correta com conselhos nutricionais sustentáveis, mas só quando eles pedirem.

Este texto é uma tradução livre deste vídeo publicado por Jeff Nippard em seu canal do Youtube. 

Não esqueça de dar 50 claps se você gostou deste texto. É um pequeno gesto que ajuda bastante na divulgação do nosso trabalho.

Startupdareal é autor do livro Este livro não vai te deixar rico, que aborda os bastidores do universo das startups, empreendedorismo e da busca pelo dinheiro.

Livro está disponível em todas as grandes livrarias do Brasil ou através deste link.

--

--

Startup da Real

Pensamento crítico sobre tudo o que ninguém quer contar para você.