Sua piada de estagiário não é engraçada

A normalização do abuso profissional começa no estágio

Startup da Real
@startupdareal
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5 min readJul 27, 2020

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Por um acaso do destino, minha primeira experiência profissional não foi como estagiário.

Mesmo sendo muito novo e sem experiência alguma, dei sorte de cair num cargo técnico sem precisar do período de estágio.

No entanto, dois estagiários trabalhavam comigo. Eu fazia exatamente o mesmo trabalho que eles, mas por estarem lá antes de mim, sabiam até mais do que eu sobre as rotinas da função.

Em incontáveis situações, eram eles que me socorriam quando eu não conseguia solucionar algum problema.

Mesmo assim, meu salário era o dobro da bolsa que eles recebiam e o tratamento que os outros profissionais tinham comigo, principalmente os mais elevados na hierarquia, era muito melhor.

Na prática, estávamos na mesma posição e deveríamos fazer as mesmas coisas, mas por uma distorção burocrática eu era melhor remunerado e tinha um tratamento diferenciado.

Os trabalhos chatos eram sempre designados aos estagiários.

Tudo que ninguém queria fazer, ou até mesmo que nem era atribuição do nosso departamento, mas precisava ser feito, acabava caindo nas costas de quem teoricamente estava ali para aprender. Mesmo que não houvesse aprendizado nenhum em carregar o armário de arquivo da administração de uma sala para outra.

Um estágio não é o que parece

O que imagina-se de um estágio não é exatamente o que acontece na prática.

Um estágio teoricamente é um período onde alguém, normalmente um estudante, é empregado por um valor baixo em troca do aprendizado profissional. É trabalhar de graça, apenas com os custos básicos supridos, em troca de experiência em determinada área.

Parece justo — até certo ponto *— receber relativamente pouco, mas vivenciar uma realidade profissional para acessar um aprendizado prático e começar uma carreira.

A responsabilidade mais baixa e o tempo investido para estudar e se aprimorar fazem o retorno financeiro ser, também, menor.

Mas não é exatamente isso que acontece.

Estágios, na prática, se tornaram uma enorme brecha trabalhista. Na maioria dos casos, empresas recrutam estagiários como mão de obra barata para realizar tarefas repetitivas e de baixa necessidade de especialização.

A ideia do aprendizado acaba se tornando inexistente, e a exagerada carga de trabalho não permite tempo para estudar ou se desenvolver profissionalmente como deveria.

O estagiário permanece na função pelo sonho de ser efetivado, submetendo-se ao trabalho mecânico e mal remunerado. O empregador dificilmente tem o objetivo de efetivar esse profissional, a ideia é substituir continuamente um estagiário por outro capaz de realizar as mesmas tarefas pelo custo reduzido.

Basta observar como as vagas de estágio estão exigindo cada vez mais conhecimento técnico e, ironicamente, até experiência profissional, para comprovar que a oferta é apenas uma forma de recrutar mão de obra muito barata.

Não é raro encontrar empresas de desenvolvimento onde toda equipe é composta por estagiários.

É obvio que estágios que respeitam as regras e focam no aprendizado ainda existem, mas seguem muito restritos às maiores empresas.

Mas o trabalho exagerado e com baixa remuneração não é o único problema dos estagiários.

O abuso moral com estagiários é socialmente aceito

É assustador como a ideia do estagiário burro e culpado por todos os problemas é socialmente aceita.

Qualquer notícia má redigida num portal de notícias ou comentário controverso de perfil em rede social, recebe o comentário dizendo que foi erro do estagiário.

É como se estagiário fosse uma entidade criada para direcionar a culpa quando ninguém quer assumir. O problema é que no dia a dia esses estagiários possuem nome, endereço e acabam recebendo o peso desse estigma.

Nas empresas são tratados como inferiores, sofrem com brincadeiras desagradáveis e pegadinhas abusivas. Em muitos casos não é piadinha leve, mas atividades e tratamento humilhantes.

Fazer o estagiário passar horas procurando alguma ferramenta ou documento de nome irônico, mas que, obviamente, ele não sabe do que se trata, é uma história que já ouvi de diferentes pessoas incontáveis vezes. Em muitas empresas, essa é uma pegadinha de batismo.

Mas essa pessoa está ali por um motivo, e normalmente buscando reconhecimento profissional e valorização. Ser tratado como inferior de diversas formas causa danos à saúde mental e muitas vezes perpetua esse tipo de comportamento para além da vida de estagiário.

Muita gente que acha um absurdo um juiz humilhar um policial de rua simplesmente por possuir um cargo elevado, esquece disso quando grita ou rebaixa o estagiário por algum motivo qualquer.

Muda a escala, vemos que alguns abusos são apenas socialmente mais aceitos. Estagiários estão trabalhando para aprender e, se cometem erros, os culpados são sempre os profissionais deveriam supervisionar seu trabalho.

Estágio ainda é parte do ensino

Estagiários — teoricamente — recebem menos porque precisam de tempo para estudar e colocar as atividades em dia.

Fazer trabalhos de faculdade toma um certo tempo do dia e, em época de provas, estudar para não tirar uma nota ruim pode consumir longas horas.

Alguma flexibilidade de horário também é esperada quando falamos sobre estágio. A maioria das faculdades ainda exigem projetos que envolvem reunião de grupo, pesquisa em biblioteca e, para resolver questões burocráticas, horas de espera nas coordenações dos cursos.

Tudo isso são necessidades comuns e que todos sabem que existem. Infelizmente, no cotidiano prático, quase ninguém respeita essas necessidades.

Quando um estagiário precisa colocar em prática esses direitos, rapidamente é tratado como irresponsável. Deixar claro que essas ausências ferem a postura profissional esperada pela empresa, muitas vezes com uma hostilidade passiva, é quase um padrão.

O processo de estágio é um importante passo no desenvolvimento profissional. É a porta de entrada para o mercado de trabalho e para um entendimento mais prático do que estudou nos últimos anos.

O esforço para conciliar a rotina profissional junto ao fim da vida acadêmica é enorme, sendo agravado ainda mais pelas demandas exageradas e a síndrome de pequeno poder, comum em muitos chefes.

Neste ritmo, o papel do estágio acaba sendo inutilizado. Nenhum aprendizado verdadeiro acaba existindo em rotinas mecânicas e trabalhos que não condizem com a área de formação do estagiário.

Em muitos casos, estágio é apenas aquele período no fim da faculdade que torna o processo do projeto final ou tese de conclusão de curso ainda mais difícil.

Pior ainda, a normalização desse tipo de situação faz com que estes estudantes, quando se tornarem profissionais e tiverem seus próprios estagiários, reproduzam o mesmo comportamento que sofreram.

É provável que estágio seja o primeiro normalizador da aceitação do abuso moral e das relações hostis de trabalho. Mas muita gente acha que, apesar disso tudo, é divertido estereotipar estagiário como inferiores e propagar um estigma que já é tão perigoso.

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