É URGENTE: Precisamos discutir Masculinidades no Futebol

STICK TO SPORTZ
STICK TO SPORTZ
Published in
8 min readJan 14, 2020

Por Rafael Freire

Siga STICK 2 SPORTZ no Twitter

Jean acertou negociação com o Atlético-GO depois de ter sido preso em Dezembro de 2019 por violência doméstica (Reprodução/Orange County)

De certa maneira, a gente já tá acostumado com essa cultura. Fomos criados, inseridos e impulsionados a venerar esse tabernáculo ‘intocável’ que é a cultura do futebol, sem precisar questionar nada. Décadas se passaram e ainda é uma realidade: por ainda vivermos em uma sociedade regrada por valores paternalistas, o futebol não apenas obedece ao fluxo da dinâmica social, mas é uma célula amplificada dos comportamentos e práticas condizentes ao modelo padrão do que se espera de um homem. O ideal de virilidade, força, impassibilidade e dominância imposto ao comportamento masculino é ainda mais forte dentro do mundo do esporte — e talvez especialmente no contexto futebolístico brasileiro — uma vez que, por serem os melhores naquela modalidade, há uma expectativa de que os atletas estejam num patamar mais próximo ao ideal de masculinidade do que os homens ditos “comuns”. Mas é primaz que esses homens “comuns” também se adequem à mentalidade dominante para serem integrantes da classe.

Afirmo que no Brasil isso é mais forte porque trata-se de uma questão cultural. Não só por sermos a única seleção pentacampeã: o futebol é, talvez, um dos pilares culturais da identidade da nossa nação. Não pode-se subestimar o impacto subjetivo e identitário de um esporte que delimita padrões e comportamentos, muitas vezes, desde antes de uma criança nascer. Talvez nenhum país tenha essa relação simbiótica com uma modalidade como nós temos com o futebol. Para o menino — e dou esse recorte de gênero justamente por conta do que se investiga aqui — ao crescer, o pertencimento a um grupo muitas vezes se dá com seu apreço a um time x, um time y, ou pelo menos ao futebol em si. O garoto não só é ensinado a gostar de futebol, a amar este esporte quase como uma religião, mas é reforçado a ridicularizar aqueles que não gostam. No Brasil, uma das primeiras emasculações do homem é quando ele tem 4 ou 5 anos e é escanteado pelos coleguinhas quando diz não gostar de jogar bola. E mesmo se gostar, seu amor é posto em cheque caso não se comporte como os demais.

As masculinidades não são entidades fixas encarnadas nos corpos ou nos traços da personalidade dos sujeitos; as masculinidades são configurações normativas de práticas que são realizadas nas relações sociais e, dessa forma, podem se diferenciar e serem reformuladas de acordo com as relações de gênero em um cenário social particular. (Connell e Messerschmidt — 2013, p. 250)

Discutir as diferentes masculinidades dentro da cultura do futebol, bem como a influência de um ideal alienante sobre os sujeitos e sobre suas masculinidades, se faz relevante na medida em que o futebol brasileiro, como principal esporte e uma das maiores ferramentas de mobilização cultural e social, exerce uma pedagogia de valores, papéis sociais e estilo de vida. Isso quer dizer que a formação de homem também é cultural e o ato dos meninos em escantearem o coleguinha que não gosta de futebol é fruto de valores aprendidos. Entre eles, e talvez o principal: existem ideais de homem a serem seguidos e valorizados. Existe um padrão heteronormativo e paternalista de masculinidade que é enaltecido e, de certa forma, exigido, na cultura do futebol do país e, dada sua tamanha influência, é disseminado também a diferentes instâncias da sociedade. Esse ideal pode ser alienante e afetar psicologicamente os atores sociais: tanto o menino que cresce amando o futebol (ou não), quanto o atleta desde a sua formação como profissional. Dentro dessa realidade, a maneira em que o jogador demonstra sua masculinidade acaba fazendo parte do seu valor e de sua marca, talvez em níveis tão impactantes quanto sua técnica, habilidade, saúde atlética e profissionalismo. Numa cultura que valoriza determinados comportamentos e posturas, dentro e fora de campo, aqueles que não se adequam podem vir a sofrer consequências em suas carreiras.

Bruno e Richarlyson. Dois pesos brutalmente diferentes para carreiras opostas.

Esses são só dois de vários exemplos. São casos que eu, como pessoa que acompanha futebol, pude presenciar SÓ NESSA ÚLTIMA DÉCADA.
Em cima, Bruno. Mesmo esquartejando a mãe do seu filho e jogando o resto do corpo para os cachorros comerem, voltou da prisão como astro. Foi recebido com uma verdadeira ovação na sua estreia pelo Boa Esporte.
Embaixo, Richarlyson. No currículo: 1 Copinha, 3 Brasileiros, 1 Libertadores, 1 Mundial, 3 Estaduais, Seleção Brasileira. Foi excluído da Calçada da Fama pelo time em que jogou por 5 anos. Foi recebido com bombas na sua apresentação no Guarani.

A diferença? Bem, aparentemente, o nosso futebol considera mais ofensivo ter supostos trejeitos homossexuais do que ser um assassino condenado.

Outro exemplo recente é do goleiro Jean, que após ser preso por agredir a mulher com oito socos, foi contratado pelo Atlético Goianiense. Mas pelo menos não usará a Camisa 24. Porque aí já é demais, né? Não tem espaço pra essas coisas no futebol.

Torcidas Queer, Alas Femininas e Campeonatos de Futebol da população LGBTQI+ vem marcando uma nova resistência à cultura dominante. Na foto, Champions Ligay de 2017 no Rio de Janeiro (Reprodução / Instagram)

Não é coincidência que só de poucos anos para cá que essa discussão entrou em pauta com maior força, principalmente por conta da demanda de públicos historicamente negados a participar do espetáculo do futebol, como o público feminino e a população LGBTQI+. Só há menos de uma década ̶p̶o̶u̶c̶o̶s̶ clubes passaram a se posicionar para captar e validar o local dessas populações na cultura futebolística. Porque desde sempre o futebol foi tido como território masculino. Onde os comportamentos diziam respeito apenas aos homens. Ou seja, o estádio era aquele templo, aquele coliseu, onde o homem chega, descarrega toda a energia que não pode descarregar no convívio social e depois volta pra casa. E as condutas das mais diversas — e aqui eu pontuo principalmente homofobia, machismo e até assédios e abusos dos mais diversos tipos — eram permitidas pela desculpa do fanatismo, do conservadorismo, do “é do futebol”. “Se não gosta, fica em casa”. Ainda hoje notamos com certa frequência atos de legitimação escancarada de homofobia e misoginia nos estádios, bares, redes sociais e em qualquer lugar em que o futebol costuma ser veiculado. A perseguição a torcedores queer. A supervalorização do atleta com suposta virilidade e a subestimação daquele que demonstra sua vaidade, emoções, ou que tem supostos “trejeitos”. De certa forma, muito disso é a resistência de uma classe de homens com medo de ser emasculada dentro da sua própria presunção de um lócus exclusivo. É o conservadorismo de uma época em que ele tinha a liberdade de despojar esses comportamentos sem consequências. Tudo isso faz parte de uma conjectura de identidade cultural que na verdade é homogeneizante, preconceituosa e conveniente com diversas violências.

Em outras palavras: Se continuam existindo novos Brunos, Jeans, Robinhos, Dudus, Jóbsons é porque a cultura do futebol — assim como a nossa realidade machista cotidiana— continua dando o pedestal de volta a essas pessoas. Passam panos quentes em todos os crimes e tentam justificar, ou esquecer do assunto. Seja culpabilizando as mulheres que sofreram, seja postulando uma narrativa de “recuperação” messiânica, seja pela justificativa de que um atleta não pode ter a carreira “destruída” por um “erro”. Isso perpassa opiniões que vão desde torcedores, clubes, dirigentes até membros de imprensa. Mas a verdade é que corroborar com isso é fazer com que o futebol utilize seu potencial popular e transformador para praticar um desserviço à sociedade, mostrando que o homem pode sim continuar sendo ídolo e exemplo a ser seguido no esporte, não importa os crimes que cometa fora dele.

[SPOILER ALERT: As carreiras, em sua grande maioria, seguem intactas. As vidas das vítimas, nem tanto.]

Normalização: eleger arbitrariamente as identidades inteligíveis culturalmente, seus atributos e condutas, de forma que as demais identidades possam ser contrapostas e hierarquizadas através de um processo comparativo. A identidade normal é naturalizada, “desejável” e “única” (SILVA, 2009 apud GRESPAN; GOELLNER, 2014, p. 1273)

Portanto, os sujeitos que se aproximam desses modelos hegemônicos idealizados e normalizados de masculinidades gozam de processos privilegiados de apropriação de poder e inúmeras possibilidades e oportunidades na cultura e̶ i̶n̶c̶l̶u̶s̶i̶v̶e̶,̶ ̶a̶ ̶i̶m̶p̶u̶n̶i̶d̶a̶d̶e̶ ̶d̶o̶s̶ ̶c̶r̶i̶m̶e̶s̶ ̶q̶u̶e̶ ̶c̶o̶m̶e̶t̶e̶u̶̶. Paralelamente, aqueles que quebram com tais modelos, ou pelo menos ousam o mínimo de questionamento, experimentam inúmeras violências físicas e simbólicas, que têm como objetivo adequá-los aos ideários hegemônicos de masculinidade.

Sendo assim, o que acontece quando até o próprio atleta começa a sentir a pressão desse ideal de masculinidade? Pode-se dizer que, de tão exigido que é esse modelo, principalmente num esporte de forte presença da competitividade sobre outros corpos, é algo que já é aprendido desde o inicio da trajetória. Para o jogador chegar ao nível profissional ele deve provar essa masculinidade, virilidade, dominância, em vários níveis e para várias pessoas. Mas é claro que no mais alto nível, a cobrança chega com ainda mais força na imprensa, nas torcidas, nas mídias sociais e muitas vezes vai além da própria performance. Miskolci (2013) concorda comigo e afirma que conformar-se às masculinidades dominantes prova-se um exercício difícil e que gera constante tensão psíquica. Mal sabia ele o que iria acontecer com a gente um ano depois.Todo mundo aqui lembra do que aconteceu em 2014. O 7–1 pode ter sido a melhor oportunidade de vislumbrar a enorme lacuna psicológica causada pelo choque entre os ideais exigidos e as identidades cruas e reais de homem, de jogador, de pessoa. Já se passaram seis anos e ainda não entendemos isso.

O natural após a Copa do Mundo não foi entender os motivos que causaram o choro, mas sim demonizar aqueles que choraram. Procurar alternativas diferentes. Aqueles que estavam ali não eram homens o bastante. Não eram “raiz”. (UOL ESPORTE)

É por tudo isso que é preciso que haja aqueles e aquelas que questionem a cultura do futebol e seus valores. E é necessário que isso parta de todos os atores sociais possíveis dentro dessa realidade. Que haja mais torcidas como a do Ceará, que praticamente barrou a contratação do goleiro Jean pelo clube. Que nasçam mais Democracias Corintianas contra regimes políticos que venham de encontro ao interesse do povo. Que existam mais Bahias, se posicionando fortemente contra racismo, homofobia, violência doméstica, abuso sexual e abandono paterno. Que propaguem-se inúmeras torcidas Queer ocupando espaços merecidos e legítimos dentro das Arenas. O trabalho de reconstrução cultural é árduo, mas é preciso, para que a pedagogia do futebol não seja necessariamente tóxica. O esporte tem o potencial de ser transformador e é uma pena ainda não estarmos usando essa transformação de uma maneira saudável. Se podemos ensinar valores à sociedade com o futebol, precisamos mudar o que está vigente.

Que não demore para as diversas masculinidades, plurais como devem ser, sejam enfim abraçadas pelo futebol.

Mas pra isso, é urgente que essa nossa discussão seja mais barulhenta do que os gritos de bicha no tiro de meta.

--

--

STICK TO SPORTZ
STICK TO SPORTZ

A bola não mente e nem a gente. NBA, Cultura, Sociedade e mais tudo que der na telha #SpeakUpAndDribble