Imigração, Areia, Pedras e Cimento: Por que eu idolatro Dwyane Wade

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8 min readApr 11, 2019

Por @rafcl

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Eu não sei muito bem como começou.

Talvez tenha sido numa noite apreensiva, lá em 2001, quando minha mãe recebeu uma ligação do meu pai e me passou o telefone. Atendi, com todo o entendimento de mundo de uma criança de 6 anos.

“Cheguei filho. Tá tudo bem” Ele disse. Mas eu não conseguia parar de chorar. Talvez eu nem tenha respondido, eu não lembro bem. O que importa é que, depois de quase um mês de incerteza, a travessia finalmente tinha terminado.

Foto: GettyImages

Com 7 ou 8 anos de idade, muito antes de eu ver minha primeira partida da NBA, eu já sabia de algumas coisas (ou, pelo menos, imaginava):

  • Space Jam é bom demais;
  • E esse Michael Jordan deve ser o foda;
  • Meu pai está em Miami, ou em algum lugar ali perto. Miami é longe do World Trade Center, né? Na moral, tem que ser longe;
  • Miami tem algum time de basquete? Deve ter. Todas as cidades dos Estados Unidos devem ter time de basquete.

Acho que minha internet era lenta demais pra procurar todas essas respostas. Na dúvida, rezava pra que Osama não aprontasse nada novo.

Ex-jogador de futebol, de uma época em que o salário era longe de ser astronômico, como é hoje. Final de carreira, percebeu que a falta de estudo básico iria dificultar sua busca por ocupações fora dos campos. Imigrar e começar do zero era uma saída fácil. Aliás, Fácil? Não, quando você para e pensa sobre a realidade estadunidense pós 11 de Setembro, torcendo o nariz para todo e qualquer ser humano visivelmente nascido em terras estrangeiras. Não quando você tem uma mulher e um filho pequeno no seu país natal. Mas era fácil pra ele. Acostumado a jogar contra, eu tinha que me familiarizar de vez a arremessar sem marcação. Sozinho.

Com 9 a 10 anos de idade, a travessia do meu pai já se mostrava frutífera, ao ponto de eu entender um pouco melhor os motivos pelos quais ele fez tal escolha. Não necessariamente gostar dos motivos, ou da ausência — eu odiava — mas pelo menos podia entendê-los, enquanto atendia suas frequentes ligações. Desde os seus primeiros anos como imigrante nos Estados Unidos, ele trabalhou com pavimentação de casas, praças, clubes. A grana vinha de um trabalho suado, braçal e bem feito. Mas vinha — diferentemente daqui. Aos poucos, ele se estabeleceu em Boynton Beach, pequena cidade, recheada de outros imigrantes (a Flórida é o quarto estado dos Estados Unidos com maior quantidade de estrangeiros), situada a uma hora e meia de Miami. Se estabeleceu até demais e não demorei a saber que ele estava em outro relacionamento.

Mas foi nessa época que eu pude ganhar meu primeiro videogame. E quem diria, um PlayStation 2 sem acesso à internet iria ser a minha primeira introdução ao Miami Heat e a Dwyane Wade.

Confesso que o Phoenix Suns era o segundo time que eu mais controlava. (Imagem: Divulgação/2K Sports)

O saudoso NBA 2K6 me mostrou que Miami não apenas tinha um time oficial, como era um dos melhores do jogo. O lineup de Jason Williams, Dwyane Wade, James Posey, Antoine Walker e o possante Shaquille O’Neal estava prestes a ser campeão na vida real e eu nem fazia ideia disso, enquanto perdia pra Philadelphia nos meus Playoffs virtuais. Eu não tenho vergonha de fazer parte de uma geração que conheceu seus ídolos nos gráficos cavalares— outrora tão inovadores! — da Sony. Desde lá eu forçava minhas jogadas pra que Wade, o mais legal dos jogadores, fosse MVP no fim do ano.

E assim se seguiu em 2007, a primeira temporada que pude acompanhar de verdade, já com o conhecimento adquirido no game e nos fracassos das aulas de educação física. A varrida pro Bulls pré-Rose me fez perceber o quanto Shaquille O’Neal já passava da hora de ir embora e não chegava perto dos 94 de overrall que eu tinha acostumado. Ali, o time já era claramente de Dwyane Wade. Mas em 2008, uma lesão te tirou cedo da temporada. Foi em 2009, enfim, que meu pai me fez um convite.

“Vou pagar sua viagem pra cá.”

Em janeiro daquele ano, eu pude ver de perto todo o esforço diário em que ele se implicou durante todos aqueles oito anos, para ter o conforto de arcar com a minha viagem. Acordando entre 4 e 5 da manhã todo dia, ele costumava me levar para alguns expedientes, dentro de uma caminhonete velha e cheia de materiais, para me fazer entender como era aquele cotidiano exaustivo, junto com os outros brasileiros, mexicanos e dominicanos que suavam nas obras. Na ocasião, ele já assumira uma postura de liderança e comando. Era o chefe da galera.

Nesse mesmo ano, foi primeira vez desde seu ano de rookie em que Wade teve uma temporada sem Shaq ao seu lado. Pela primeira (e única) vez na história, teve média superior aos 30 pontos. Ano de Carreer High em assistências, roubos de bola e tocos. E adivinha? Levou um time com Michael Beasley, Joel Anthony, Mario Chalmers e Jamario Moon aos Playoffs. Na ocasião, ele já assumira uma postura de liderança e comando. Era o chefe da galera.

Claro que eu tive que fazer com que essas figuras se encontrassem.

Provavelmente, o único contato anterior do meu pai com o basquete tinha sido nas quadras de Salvador, conseguindo ser pior que uma criança de 8 anos. Mas eu o arrastei pra um Miami x Boston — o então campeão — na American Airlines Arena, após um dia inteiro carregando areia, pedras e batendo cimento nas casas dos loiros ricos.

Era desse nível aqui pra cima. (via platinumsandconstruction)

A viagem de Boynton até Miami é de quase 2 horas, se contar o engarrafamento. Parece fanfic, mas no meio da viagem, descobrimos que a enteada do meu pai errou o jogo que iríamos ver e comprou um ingresso para a partida do BUCKS, em Winsconsin. Foram alguns cambistas mexicanos que salvaram a noite, nos conseguindo ingressos para o ÚLTIMO ANDAR da Arena.

O frio não deixou eu gravar na memória a imagem da American Airlines Arena vista de fora, mas a atmosfera interna é inesquecível. As cadeiras pequenas e apertadas, com pouco espaço entre as fileiras. Os torcedores do Celtics ao nosso lado. As camisas aposentadas no teto. O enorme Jumbotron — que, por estarmos tão longe da quadra, estava bem na nossa frente. A grande quantidade de latinos presentes, envergando camisas com o número 3. Os anúncios dos jogadores adversários. Os nossos…

E o dele. Tão pequeno, de lá da Row Z. Mas tão enorme nas minhas idealizações de moleque.

“DWYANEEEEEE WAAAAAAAAAADE”

Wade sendo marcado por Garnett na derrota do Heat de 83–98 pro Celtics. KG terminou com 16 pontos e 11 rebotes. (GettyImages)

Acertando o primeiro arremesso do jogo com uma mid-range certeira, que seria sua marca registrada ao longo da carreira. A bola de segurança.

Enganando a marcação com um Q.I inigualável e distribuindo um passe pra Shawn Marion, próximo ao garrafão.

Vendo o jogo escapar ainda no primeiro quarto — Maldito Big 3 — , mas buscando as respostas imediatas a todos os chutes de Ray Allen e Eddie House (combinados: 12–17 3pFG!)

A elegância, a coragem, o sangre frio, a noção de quadra, a mentalidade vencedora, a inteligência e raciocínio rápido de elite que nunca se perderam.

Que permaneceram até o fim desse jogo, mesmo com a derrota, carregando a pontuação de um plantel limitado contra o melhor time do momento (25–4–4, 8–17 FG). Que continuaram lá até o fim dessa temporada de auge, numa saída precoce nos Playoffs.

Um conjunto de virtudes que durou mesmo após a decisão de LeBron James e a formação do Big 3. Mesmo assumindo um papel — com muitas aspas aqui — “menor”, para adequar seus novos companheiros. Mesmo após a queda pros Mavericks, naquela final. Mesmo após todo o ceticismo e ódio. Mesmo após a redenção, a decepção, os títulos, a dinastia. Mesmo após a volta de LeBron pra Cleveland. Mesmo após a saída pra Chicago e as férias nos Cavs. Ele sempre soube onde era sua casa.

E voltou, porque é isso que um bom filho faz.

Porque aqui — e somente aqui — Dwyane Wade nunca entrou em um jogo para não doar sua alma, por completo. Falo isso com conhecimento de causa.

E eu falo aqui como um brasileiro, sem demagogia, porque me sinto abraçado pelo Heat, como latino, hispano, filho de brasileiro imigrante ilegal. O Heat é um dos times que mais assume as raízes e valoriza a cultura latina, inclusive sabendo que sua franquia está em um dos territórios mais ocupados por essa população.

E Dwyane Wade é o maior jogador dessa história. Não só pelo que fez pelo Heat, mas por toda essa comunidade da Flórida. É a cara dessa franquia. E ele sempre será.

Ontem, na despedida contra os Nets, mais uma vez eu me senti como em 2009, só que no conforto da minha cama. Wade, controlando as ações. Buscando arremessos. Com companheiros que não conseguiam seguir o ritmo. Time adversário jogando muito bem, aparentemente sem fazer tanto esforço, acertando chutes do perímetro como se fosse uma exibição de arremessadores de 3 pontos.

Mas lá estava ele, sem querer que aquilo acabasse. Tirando a diferença de pontos, suando, nos dando esperança. Não era sua zona de conforto, mas os fãs sabem que, se for preciso, ele vai dominar a bola e fazer o que sabe. E se ficar pelo caminho, tudo bem, porque a performance do mais alto nível veio. Não são muitos que conseguem um triple-double (25–11–10) no jogo de despedida, MANCANDO, aos 37 anos. Não são muitos que acabam a carreira entre os trinta maiores pontuadores de todos os tempos, batendo recorde na despedida.

Eu não sei muito bem onde começou, mas tenho certeza que não termina hoje.

Eu nunca achei que teria uma relação de tanto pertencimento com um time estrangeiro. Tanta admiração a um jogador.

Mas idolatria a gente carrega pra sempre.

Hoje eu continuo arremessando sozinho nas quadras da minha cidade. Mas faço isso com um sorriso no rosto.

Muito obrigado, pai. Muito obrigado, Dwyane Wade.

Seria impossível não amar vocês.

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