Mimimi: a Patologia do discurso “Raiz” do brasileiro

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5 min readSep 17, 2018

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por @rafcl

Raiz. Por definição: base, vínculo, firmeza, sobrevivência.
Popularmente: termo designado para regrar o futebol de acordo com valores saudosistas ou conservadores.

No maior torneio do maior esporte do país, uma torcida entoa cânticos sobre o assassinato em massa de homossexuais. Na letra, o genocídio é naturalmente associado ao candidato líder das pesquisas eleitorais. E há quem ache uma “brincadeira sadia”, ou que é um cântico normal do esporte.

Raiz. Fincado na terra. Enraizado. Firme e irredutível. Perfeito termo para designar o preconceito do brasileiro.

De certa forma, é normal ser resistente às constantes mudanças do mundo moderno. E é natural que, de vez em quando, olhemos com carinho para o nosso passado, buscando uma ou outra satisfação temporária. O problema é que, em 2018, chegamos a um ponto em que a visão de mundo do brasileiro vem beirando à patologia. Vivemos em meio a um delírio coletivo de coisas que sequer aconteceram de fato, ou que não tem o menor risco de acontecerem. Um desdém em relação aos perigos reais. Um medo desenfreado de sair da zona de conforto social. Eu diria que é uma vontade de regredir. Um conservadorismo antolhos. Isso não é diferente no âmbito futebolístico.

Depois que o Atlético Mineiro repreendeu a própria torcida por conta daquela música pífia, os comentários que surgiram foram os de sempre: “isso é do futebol!” “não gostou, vai jogar vôlei” “mas sempre foi assim e só agora estão falando? hipocrisia.” “só uma brincadeira, todos do vídeo estão rindo”. Típico. É o que acontece quando a política e a sociedade interferem no esporte, mas de uma maneira altamente antidemocrática.

Assim como a ilusão de que o 11 de setembro interrompeu Dragon Ball Z. Assim como a ideia falsa de que a Seleção de 2006 foi um timaço. O brasileiro se prende a convicções nem tão convictas sobre o seu passado e seu presente, porque tem medo do que o progresso pode gerar. A ascensão de discursos de empoderamento de “minorias” assusta. Hoje, o brasileiro vem discutindo com a embaixada alemã que o nazismo não aconteceu do jeito que foi ensinado nas escolas. Nada surpreendente, já que o candidato líder nas pesquisas representa o conservadorismo e o endeusamento de um dos períodos mais trágicos da nossa história. Para muitos, a ditadura militar foi um progresso, que deveria voltar para consertar nossas mazelas. Os livros de história, convenientemente, viraram Fake News. O brasileiro só acredita no que quer acreditar. Inclusive, na sua própria verdade.

VANDERLEI ALMEIDA/AFP/Getty

O estado de oblivion coletivo do tupiniquim vai muito além da educação formal — ou a falta disso. Eu diria que pouquíssimo tem a ver com esse tipo de instrução. O discurso saudosista-conservador-raiz atinge o funcionário público, o baleiro, o jornalista, o motorista do ônibus, o professor, o estudante que divide aluguel, o neurocirurgião, o jogador de futebol. Não é de se espantar, visto que somos o segundo país do mundo com menos noção da nossa própria realidade. Infelizmente, crescemos com a necessidade de nos espelhar numa figura paterna de heroísmo. Infelizmente, o egoísmo nos impede de olhar além do nosso próprio espelho. Ou pode ser um estágio doente de negação do próprio status quo. O resultado é esse: Se eu não sou diretamente afetado por um problema, é tudo mimimi. Se eu sou afetado, o primeiro candidato com voz firme e discurso eloquente vai resolver o meu problema. O Brasil moderno é deprimente para quem deseja questionar os padrões estabelecidos.

De fato, até o futebol costuma ser um pouco assim. Um espaço de catarse, fora do alcance de outros grupos, onde o homem — e só ele — se acha no direito de exercitar toda sua virilidade sem ser repreendido. Afinal, outros homens estão lá compartilhando do mesmo espaço de interação. Quer assediar uma moça que passa desacompanhada? Permitido. Quer chamar o goleiro adversário de gay, como se fosse uma ofensa? Ok. E se for na Rússia, durante a Copa do Mundo, e você quiser gravar um vídeo falando sobre a cor da genitália de uma mulher que não entende seu idioma? De boa, foi ela que entrou na onda. O homem está na sua segunda casa. Então isso é normal. Tem que ser normal. Se perguntarem, é só zoeira. É do futebol.

Jornal O Globo — Divulgação

O estádio é o templo do homem moderno. É seu o Coliseu de Roma contemporâneo, onde ele leva toda a agressividade e hostilidade que não pode expressar no dia-a-dia. Às vezes, seu time nem precisa ganhar. É só provar mais a sua masculinidade do que o outro time, ou a outra torcida. É só se mostrar mais homem. Ainda somos pré-históricos.

Essa insegurança parece ser o ponto de partida da intolerância. A dificuldade de aceitar os discursos e espaços legítimos de mulheres e grupos LGBT no futebol é um reflexo do homem que se sente ameaçado no habitat público, que ele acha que é o dono. Afinal, se o esporte mudou tanto dentro de campo com a compactação, posse de bola, gegenpressing e esses termos que eu não sei o que significam, por que não aceitar evoluções no comportamento? Por que ser ativista pelo direito da torcida em ser hostil e preconceituosa? Por que fazer vistas grossas ao machismo, homofobia e racismo, muito presentes em estádios, mídias sociais e inclusive dentro de campo?

A verdade é que ninguém liga. O discurso de ódio, para o brasileiro médio, é o natural nas relações sociais. Fui educado para agir assim, por que eu estou errado? Quanto vitimismo!

Infelizmente, o futebol é só um reflexo da nossa conjuntura atual. E a alienação coletiva que vivemos é tão forte, que, particularmente, tenho medo dos próximos dias. Até porque hoje, finalmente, as repressões diárias vem sendo denunciadas em casa, no trabalho e no convívio civil. Claro que eles não querem que essas represálias cheguem no mundo do futebol.

Mas o mundo mudou.

Respeitemos nossa própria história.

Abracemos a mudança.

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