Oito vezes em que esporte e política se misturaram

Vinicius Buono
STICK TO SPORTZ
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8 min readAug 19, 2019

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Por Vinícius Buono

Colin Kaepernick ajoelhado durante o hino dos EUA. Crédito: Reprodução

Quantas vezes você já ouviu a frase “esporte e política não se misturam”? Aqueles que consideram a política apenas como o ato de, a cada dois anos, apertar botõezinhos na urna, amam encher a boca pra falar esse tipo de bobagem, então não é difícil de vê-la pipocando por aí ocasionalmente.

Curiosamente, essa falácia tende a ser regurgitada cada vez que determinado atleta, time, ou instituição esportiva no geral faz uma declaração que o enunciador discorda, como nos últimos tempos, quando atletas como LeBron James e Colin Kaepernick usaram sua voz e suas posições para pedir um tratamento mais justo aos negros americanos.

O Stick nasceu justamente pra mostrar que os temas se misturam, sim! Em sua condição de animal político e social, dissociar tais coisas torna-se impossível para o ser humano. As próprias relações com o meio, os outros e a vida como um todo são puramente políticas, e isso é fundamental para que uma sociedade caminhe e se desenvolva de maneira saudável.

A aversão à política é até compreensível se observada pela ótica da repulsa aos políticos. A desilusão e a sensação de abandono por parte do Leviatã pipocam frequentemente na internet, nos noticiários, na própria rua. Isso, porém, não torna a política menos onipresente, inclusive nos esportes. Para ajudar a desmistificar, o Stick traz 08 vezes em que a política e o esporte andaram de braços dados:

O ursinho Misha. Créditos: Wikimedia Commons

1- Jogos Olímpicos de Moscou, 1980

As Olimpíadas são o maior evento poliesportivo do planeta. Atletas não praticam modalidades muito populares, e essa é a chance de estar sob os holofotes, visto por bilhões de pessoas ao redor do mundo. É a chance de fazer sua voz ser ouvida, e poucas coisas são mais políticas do que isso.

Os Jogos Olímpicos de Moscou, capital da antiga União Soviética, foram boicotados pelos Estados Unidos e contaram com a adesão de mais 61 países em razão da invasão do Afeganistão pelos comunistas em 1979. Alguns atletas dessas delegações até participaram dos jogos, mas sob a bandeira olímpica.

Na cerimônia de encerramento, o mascote oficial dos jogos, o ursinho Misha, protagonizou uma das cenas mais icônicas da história das Olimpíadas, derramando uma lágrima tanto pelo término dos jogos, quanto pelo boicote.

Médici com a Taça Jules Rimet. Crédito: Reprodução

2- Tricampeonato brasileiro de futebol em 1970

“Noventa milhões em ação…”. Aposto que só de ouvir esse início, o restante já vem à sua cabeça. Isso porque, além daquele time do Brasil ser o maior da história do futebol (e sinto muito, mas isso não está aberto a discussão aqui), o tricampeonato mundial no México foi utilizado pesadamente como propaganda ufanista pela ditadura militar, sob comando do general Emílio Médici.

O país vivia tempos conturbados desde a proclamação do Ato Institucional Número 5, ou AI-5. O regime recrudesceu ainda mais a repressão com a suspensão ao direito do habeas corpus. Teve até uma intervenção quase direta do ditador: Às vésperas da Copa, Médici sugeriu a convocação do prolífico Dadá Maravilha, atacante do Atlético-MG. O técnico João Saldanha, comunista inveterado e sem papas na língua, deu a famosa resposta: “o presidente escala os ministérios, eu escalo a seleção”. Pouco tempo depois, foi demitido e substituído por Zagallo e o resto é história.

3- Cassius Clay / Muhammad Ali

Qualquer desculpa pra usar essa foto. Muhammad Ali sobre Sonny Liston. Crédito: Reprodução

A carreira inteira de Muhammad Ali é entrelaçada à política. Nascido Cassius Clay, o pugilista era, no início, tudo o que as pessoas amam odiar: jovem, falastrão, arrogante e bom. Muito bom. Conquistou a medalha de ouro nos jogos olímpicos de Roma, em 1960, e as duas vitórias contra o campeão mundial dos pesos pesados, Sonny Liston, levaram muitos a alegar que as lutas tinham sido compradas, principalmente pelos laços de Liston com a máfia.

Começava, ali, o processo que transformaria Ali em inimigo público número um. Passou por outras turbulências, como quando se associou ao ativista Malcolm X e anunciou que se convertera ao islamismo, mudando seu nome para Muhammad Ali.

Muitos se recusaram a chamá-lo por seu novo nome, tanto jornalistas quanto rivais. Por isso, em 1967, ele dominou a luta inteira contra Ernie Terrell, mas não foi para o nocaute. Em referência ao fato, em alguns momentos, Ali gritava para Terrell: “Qual é meu nome?”

No mesmo ano, o ápice: Ali se recusou a servir o exército americano na Guerra do Vietnã. Dizia que o verdadeiro inimigo era a segregação e que ele não iria atravessar o mundo para matar outras pessoas não-brancas, afinal “não eram os viet congs que chamavam-no de crioulo”.

O pugilista foi preso, multado e proibido de praticar o esporte até entrar com recurso em 1971, perdendo 04 anos do seu auge. Entre a contracultura que surgia, tornou-se herói.

Suas lutas inesquecíveis contra Liston, Joe Frazier e George Foreman transformaram Ali numa lenda do esporte. Suas posições e convicções políticas transformaram-no numa lenda da história.

4- Sangue na Água

Ervin Zador, atleta húngaro de polo aquático. Créditos: Reprodução

De novo nas Olimpíadas, de novo envolvendo a URSS. Em dezembro de 1956, o time de polo aquático da Hungria chegou às Olimpíadas de Melbourne como defensor do título. Pouco tempo antes, em outubro do mesmo ano, uma grande revolta contra o domínio soviético tinha acontecido na Hungria, duramente reprimida pelo Kremlin.

As tensões entre os dois países estavam em ebulição, e o jogo não foi diferente. Com uma vitória, os húngaros garantiam, ao menos, a prata. Os soviéticos precisavam vencer para se igualar a eles e superar a Iugoslávia. Antes da partida, o trash talk rolou solto. Durante, também, mas a violência acompanhou, com socos e pontapés sendo trocados.

Com apenas um minuto faltando, os húngaros venciam por 4–0. Ervin Zador estava marcando o soviético Valentin Prokopov. Eles já tinham trocado algumas ofensas quando, de repente, Prokopov acertou-lhe um soco no olho. A pancada abriu um corte e o jogador começou a sangrar profusamente. Revoltada, a torcida (composta majoritariamente por imigrantes húngaros na Austrália), aos gritos e insultos, correu para a piscina. A segurança teve que ser chamada para controlar a situação e o juiz encerrou o jogo ali mesmo.

Os húngaros levaram a medalha de ouro e grande parte daquele time desertou ao término dos jogos.

5- Jesse Owens

Jesse Owens. Crédito: Reprodução

Os jogos de 1936 em Berlim foram usados ostensivamente como propaganda pelos nazistas. No atletismo, porém, Hitler foi frustrado pelo americano Jesse Owens. Negro, Owens ganhou 4 medalhas de ouro e o Führer até deixou o estádio antes do término da premiação.

Porém, na década de 30, a segregação racial ainda era muito forte nos EUA. Apesar do caso ser famoso, hoje, como um grande balde de água fria nos ideais de raça ariana dos nazistas, a realidade foi um pouco diferente: o próprio Owens afirmou que, enquanto ele era muito bem tratado na Alemanha, como uma celebridade, mesmo, em sua terra natal, o país da liberdade, ele não podia nem pegar o ônibus pela porta da frente.

Para se ter uma ideia, o primeiro presidente a honrá-lo por suas conquistas foi Dwight Eisenhower, quase 20 anos depois, em 1955.

6- Panteras negras, 1968

A saudação no pódio levou os atletas à expulsão. Crédito: Reprodução

Antes de Colin Kaerpernick, vieram Tommie Smith e John Carlos. Nas Olimpíadas da Cidade do México, em 1968, os dois atletas negros levaram ouro e bronze, respectivamente, nos 200 metros rasos. Na hora de subir ao pódio, foram de meias e luvas pretas e fizeram a saudação dos Panteras Negras, grupo que combatia a segregação nos EUA, erguendo o punho fechado durante o hino. Foram expulsos da Vila Olímpica.

7- Democracia Corinthiana

A faixa ostentada pelos jogadores na final do Campeonato Paulista. Crédito: Reprodução

Na década de 80, o Brasil ainda vivia sob o jugo da ditadura militar. Quando a diretoria do Corinthians foi trocada, em 1981, os atletas, liderados pelo lendário Doutor Sócrates, exigiram maior participação nos rumos do clube. Na final do campeonato paulista contra o São Paulo, entraram em campo carregando uma faixa: “Ganhar ou perder, mas sempre com Democracia”.

Há de se levar em conta que o Corinthians é a segunda maior torcida do país. No contexto da ditadura, o gesto do clube foi enorme e entrou para a história como um belo ato de resistência.

8- Francisco Franco e o Real Madrid

Franco entrega a taça da Champions League a Miguel Muñoz, então capitão do Real Madrid. Crédito: Reprodução

No início da década de 1950, a liga espanhola tinha em seus maiores vencedores, quatro clubes: Barcelona, com seis títulos; Athletic Bilbao, com cinco; Atlético de Madrid, com quatro; e Valencia, com três. Achou que faltou algum? Pois bem. O Real Madrid era um clube mediano à época, com apenas dois títulos da liga, sendo que o último havia sido conquistado na temporada 1932–33.

Entra Alfredo di Stéfano. O argentino, considerado por muitos o melhor jogador da história até aquela altura, foi contratado pelo Barcelona junto ao River Plate. Porém, na época, Di Stéfano jogava pelo Millonarios, da Colômbia, que atuava por uma “liga pirata”, sem reconhecimento da FIFA.

O Real Madrid, então, entrou no jogo e negociou Di Stéfano diretamente com o Millonarios. O ditador Francisco Franco era torcedor do clube e queria incentivá-lo como forma de promover a cultura espanhola em detrimento de outras — como a catalã, representada pelo Barcelona.

A imagem da Espanha estava, também, manchada internacionalmente, pois a ditadura de Franco, apesar de ter se mantido neutra durante a 2ª Guerra Mundial, tinha fortes inclinações fascistas e recebeu, inclusive, apoio de Hitler e Mussolini na Guerra Civil Espanhola.

Teve início, aí, a rivalidade entre os dois clubes, que perdura até hoje. O ministro do esporte da Espanha se meteu, propondo um acordo: Di Stéfano, por quatro temporadas, jogaria uma por cada time. O Barcelona não topou e desistiu.

Com Di Stéfano no comando de um esquadrão que também contava com Ferenc Puskás e Francisco Gento, o time da capital ganhou seis de suas 13 Champions League, além de oito títulos nacionais entre 1954–64. Há relatos de que a construção do estádio Santiago Bernabéu teria sido facilitada pelo Generalíssimo inclusive com uso de dinheiro público, e que a direção do Real Madrid tinha muita intimidade com os árbitros espanhóis.

A política é o grande pano de fundo da nossa sociedade e não se limita ao voto. Viver é um grande ato político, do início ao fim. O esporte não é alienígena, está inserido no contexto e, portanto, tem influência na política (e vice-versa!), por mais que argumentos falaciosos tentem convencer do contrário.

Essas foram oito vezes em que essa relação ficou clara, mas existem infinitos exemplos. Achou que faltou algum? Conta aí pra gente!

Como sempre, obrigado pela atenção. E lembre-se: esporte e política se misturam, sim, e de maneira inevitável. Não só quando você concorda.

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Vinicius Buono
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um pouco de tudo, muito de nada. Basquete & o que der na telha no Stick To Sportz. Rise and shine.