Sobre Liverpool vs. Atletico e responsabilidade social

A realização do jogo de volta da Champions League em 11 de março foi responsável direta por 41 mortes, de acordo com estudo da Edge Health publicado na última semana.

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5 min readMay 30, 2020

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Por Henrique Bulio

Ainda que o surgimento do COVID-19 tenha sido de forma repentina, o conhecimento público e científico acerca do novo coronavírus se expande a cada dia, potencializado especialmente pelo interesse da volta à normalidade. Claro, o que pensamos como ‘normal’ já foi afetado de forma definitiva, tanto pelo número de mortes quanto pelos efeitos que a pandemia deixará mesmo após seu encerramento, porém, retornar à vida em sociedade é o maior desejo nos tempos atuais de isolamento social.

O que se pode questionar com relação ao novo coronavírus é o quanto às medidas para a contenção de sua propagação foram demoradas, o que automaticamente nos faz pensar na quantidade de vidas que poderiam ter sido salvas caso autoridades tivessem tido uma resposta mais enérgica enquanto a ameaça se dissipava mundo afora.

Com a COVID-19 se espalhando da cidade de Wuhan, seu epicentro, para a Europa — e, posteriormente, o restante do planeta — , a realização de eventos que permitiam aglomerações demorou a ser proibida; até a declaração de uma pandemia por parte da Organização Mundial da Saúde, em 11 de março, 118 mil casos e mais de 4000 mortes estavam confirmados pela OMS. Na mesma data, o presidente americano Donald Trump anunciou restrições de viagens a 26 países europeus, já que o velho continente explodia em números de casos confirmados.

Hoje, sabemos muito mais sobre o COVID-19 do que sabíamos há dois meses, e com toda a ciência empenhada em descobrir uma cura para o novo coronavírus, saberemos muito mais em dois meses do que sabemos hoje. Só que, com mais de 118 mil casos da doença confirmados, é seguro afirmar que já havia evidência o suficiente para exigir uma resposta impactante ao problema.

O que nos leva à Anfield em 11 de março de 2020, quando o Liverpool recebeu o Atletico de Madrid pelo jogo de volta das oitavas de final da Champions League.

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Um dia antes da disputa da partida pelo campeonato europeu, a confirmação de que o jogo teria público na arquibancada ocorreu depois de uma reunião entre representantes da UEFA e autoridades locais. O governo espanhol já havia feito recomendações na época para que seus cidadãos evitassem viajar; com a realização da partida, 3000 torcedores do Atletico foram até Liverpool.

Eram 22 mil os casos confirmados da doença na Europa em 11 de março, com o epicentro de coronavírus em solo europeu ocorrendo no Norte da Itália, mais precisamente na região da Lombardia. Anteriormente, no dia 19 de fevereiro, 40 mil torcedores da Atalanta viajaram à Milão para assistir o duelo da equipe contra o Valencia, no jogo de ida das oitavas-de-final da Champions League.

De acordo com o prefeito de Bérgamo, uma das cidades mais afetadas pelo vírus, a realização do jogo com público foi ‘uma bomba biológica’, já que os 40 mil torcedores poderiam ter sido infectados, sem contar os que se reuniram para ver o confronto em outros lugares. A partir dali, os casos na Lombardia — região onde fica a cidade de Bérgamo — explodiram, e no dia 10 de março eram mais de 1500 contaminados. Havia evidência mais do que suficiente para que o jogo entre Liverpool e Atletico fosse realizado com portões fechados; o próprio jogo de volta entre Valencia e Atalanta, disputado no Estádio Mestalla em 10 de março, foi disputado sem presença de público. O mesmo aconteceu no jogo entre Paris Saint-Germain e Borussia Dortmund no dia seguinte: o Parc des Princes estava vazio na vitória do time da casa sobre os alemães.

Ainda que Atalanta vs. Valencia tenha servido como fator causador da explosão de casos confirmados de COVID-19 em Bérgamo e Milão, a quantidade de informação disponível naquele momento era muito menor do que as autoridades locais de Liverpool possuíam no momento em que permitiram que o confronto da equipe local contra o Atletico fosse disputado com presença de público. Uma análise da National Health Service (NHS), o serviço nacional de saúde do Reino Unido, e que foi publicada no jornal The Sunday Times, aponta que, como resultado direto do comparecimento de torcedores em Anfield, 41 pessoas perderam suas vidas entre 25 e 35 dias depois da partida. Aquela foi a última grande partida de futebol disputada com público no continente europeu, já que as grandes ligas foram paralisadas de forma quase que conjunta dois dias depois.

Junto da Itália, a Espanha foi outro país que surgiu como grande foco da doença no continente europeu. O governo local já havia imposto restrições de público em escolas, bares, restaurantes e partidas de futebol naquele momento, mas não houve qualquer impedimento de viagem para Liverpool; o governo do Reino Unido ainda não havia começado a implantar medidas de restrição, utilizando a técnica de ‘imunidade de rebanho’, medida de Boris Johnson que foi bastante criticada e que, somente na segunda-feira seguinte, 16 de março, foi substituída pelo isolamento social.

Não faz a menor diferença quem avançou para a próxima fase da Champions League naquele dia (o Atletico venceu por 3 a 2 e se classificou, inclusive); vidas foram perdidas por decisões irresponsáveis das autoridades locais. Para o tanto que falamos sobre a responsabilidade social do esporte em salvar vidas, é extremamente irresponsável que as motivações financeiras estejam acima da segurança e da saúde das pessoas.

A volta do futebol é importante no angustiante período de isolamento social? Sem dúvida — basta ver o apelo que a Bundesliga está tendo no momento em que os fãs estão sedentos por qualquer evento esportivo. Só que nenhuma angústia é maior do que ficar doente e não poder se salvar, como declarou de forma precisa o presidente da Argentina, Alberto Fernández.

Medidas de isolamento precisam durar o quão necessário for para que se possam salvar o máximo de vidas possível no período da pandemia, e essa responsabilidade social vem tanto das autoridades (olá, Bolsonaro e Doria) quanto de nós, ficando em casa e respeitando a quarentena. A irresponsabilidade de outros já custou um número alto de vidas, e cabe a nós fazermos o máximo possível para limitar novas perdas.

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