Sterling chegou ao limite

O atacante do Manchester City discute o racismo, a implacabilidade dos estereótipos da mídia aos jogadores negros e sua decisão de falar sobre ambos após ser atacado racialmente durante um jogo da Premier League, em dezembro.

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10 min readMar 20, 2019

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Texto original
Autor:
Rory Smith

Traduzido por @jhonataskm

Ilustração: Robert Carter

Naquele dia, Raheem Sterling olhou e prestou atenção. Normalmente, quando está em campo, ele se perde tão plenamente no jogo que o barulho da multidão se torna um murmúrio incapaz de se distinguir, uma voz perdida no zumbido de dezenas de milhares.

Mas quando Sterling se aproximou da linha lateral para pegar a bola e bater um escanteio no jogo Chelsea x Manchester City, na Premier League em 8 de dezembro, algo o forçou a mudar de foco.

Ele se lembra de fazer contato visual com um grupo de torcedores na primeira fila do setor ‘Matthew Harding’ do Stamford Bridge. Como todos os jogadores, e como um dos melhores jogadores de seu país, ele está acostumado à hostilidade, especialmente fora de casa. Mas o que ele via era diferente. Parecia ódio.

“Do jeito que eles olhavam para mim, eu tinha que saber de onde vinha toda essa raiva”, ele disse. “Eu estava tentando ouvir o que eles estavam dizendo.” Entretanto, o que ele entendeu, tentou descartar imediatamente: “Não, não pode ser isso o que eu ouvi”.

Foto: Michael Zemanek/BPI/REX

Um vídeo do jogo indicou que sua suspeita estava certa. Um torcedor em particular parecia ter disparado gritos racistas para Raheem. As consequências acrescentaram credibilidade: pouco depois do fim do jogo, o Chelsea anunciou que havia impedido que quatro torcedores assistissem aos jogos, aguardando uma investigação para saber Sterling havia sido vítima de racismo. O incidente foi relatado à polícia de Londres.

Não foi o primeiro incidente racista sofrido por Sterling — quando adolescente, uma vez ele foi atacado por um estranho em uma rua de Liverpool — nem a primeira vez que ele é atacado racialmente em um estádio inglês. Na primeira partida no Goodison Park, estádio do Everton, após ser contratado pelo Manchester City, ele estava caminhando em direção ao túnel quando um menino com seu pai o chamou de “algo negro”.

Ao sair de Stamford Bridge naquela noite em dezembro, porém, Sterling, continuava agitado com o que ouvira, com o que havia acontecido. Quando retornou a Manchester, ele decidiu que“ isso era demais”. Ele queria dizer alguma coisa.

Ele passou a noite toda pensando na melhor maneira de fazer isso. Fez algumas pesquisas, organizou seus pensamentos. Na manhã seguinte, quando estava sentado no banco de trás do carro, a 30 minutos de carro da sua casa para o centro de treinamento do Manchester City, ele escreveu uma mensagem de 207 palavras para expressar seus pensamentos. Concentrou-se não apenas no que acontecera em Stamford Bridge, mas o porquê de ter acontecido. Sterling postou o texto, com duas imagens, em sua conta no Instagram.

UMA HISTÓRIA PARA CONTAR

Algumas semanas atrás, Sterling voltou para visitar amigos perto de Wembley, a parte noroeste de Londres, onde ele cresceu. Ele ainda é intimamente ligado ao lugar: esteve em discussões com o conselho local para encontrar uma área apropriada para um instituto esportivo e educacional, um lugar para oferecer oportunidades para crianças (e seus pais) de origens semelhantes às dele.

É uma coisa pessoal, algo que ele diz ser menos sua responsabilidade como atleta profissional e mais um desejo inato de “mostrar luz” para uma nova geração. Ele quer que sua história dê a outros como ele esperança. “Não [é algo] apenas para tentarem ser um jogador de futebol”, disse Sterling, “mas para fazer o que quiserem”.

Não é difícil encontrar inspiração na ascensão de Sterling. Seu pai foi morto a tiros na Jamaica quando Raheem tinha 2 anos de idade. Sua mãe se mudou para a Inglaterra na esperança de dar a seus filhos uma vida melhor. Sterling se lembra de sua luta para conseguir emprego, as longas horas que ela dedicava a isso, os dias em que ele e sua irmã a ajudavam a limpar os quartos de hotel antes da escola.

Sterling sempre se empenhou em não permitir que exageros se tornassem reais, sempre corrigiu qualquer licença poética tomada por aqueles que contam sua história. Em 2016, ele disse ao The Mail que sua casa de infância não estava em uma área “violenta”; Em um texto do The Players’ Tribune do ano passado, explicou que apesar de que sua família nunca teve muito dinheiro, sua mãe sempre se certificava de que ele e sua irmã tivessem o que precisavam.

Sua ascensão meteórica para se tornar um dos melhores jogadores ingleses de sua geração deveria, então, ser motivo de comemoração para a Inglaterra. Aos 15, o Liverpool venceu a competição do Arsenal e do Manchester United para contratar Sterling vindo do Queens Park Rangers. Quando tinha 17 anos, fez sua estreia pela seleção Inglesa. Antes dos 20, já havia sido convocado para uma Copa do Mundo.

Foto: Michael Regan/Getty Images

Em 2015, o Manchester City fez dele, por um tempo, o jogador inglês mais caro da história, pagando 49 milhões de libras, ou cerca de R$ 245 milhões, para tirá-lo de Anfield recomendado por Pep Guardiola, que chegaria na temporada seguinte.

A parceria provou ser extremamente bem-sucedida. Sterling venceu um título da Premier League e duas Copas da Liga com o treinador espanhol. Além disso, desempenhou um papel fundamental para a Inglaterra chegar às semifinais da Copa do Mundo. o Manchetser City o recompensou com um novo contrato há alguns meses, pelo menos em parte para afastar o interesse do Real Madrid. Guardiola definiu Raheem como “incrível”.

Poucos, no entanto, diriam que a Inglaterra ama Sterling. Uma recepção gélida em Anfield seria inevitável desde sua transferência para um rival do Liverpool, mas ele também é recebido com vaias em outros lugares. Inclusive foi ridicularizado por seus próprios torcedores enquanto jogava pelo English Team, além de ter sido atacado racialmente por um torcedor do Manchester United na porta do centro de treinamento do City. Um jornal, após a eliminação da Inglaterra da Euro 2016 pela Islândia, chamou Sterling de “idiota futebolístico”. Não foi um apelido ligado a nenhum outro jogador daquela equipe.

Sterling não tem dúvidas de por que essa hostilidade se enraizou.

“Desde o início da minha carreira, houve uma percepção de um garoto extravagante de Londres: ama carros, adora o estilo de vida chamativo”, disse ele. “Eu não estou dizendo que sou um santo ou algo assim, mas isso é o completo oposto de quem eu sou.”

“Essas pessoas não me conhecem. Eles vão me definir pelo que leem sobre mim; é assim que eles vão me tratar. Quando as pessoas estão fazendo o público acreditar que você é um personagem que você não é, isso é prejudicial e degradante ”.

Ele tampouco tem qualquer dúvida sobre por que essa imagem foi construída: a forma como é apresentado pela mídia, está enraizado no fato de ser negro. “Um milhão porcento”, disse ele.

É essa convicção que o levou a assumir o risco e a falar, a tornar-se parte da conversa global — liderada por atletas como Colin Kaepernick e LeBron James — sobre igualdade.

UMA CRIAÇÃO DA MÍDIA

O exemplo que mais marca com Sterling é o dos seus carros. Em 2016, vários jornais da Grã-Bretanha publicaram reportagens as quais alegavam que ele estava “procurando um sétimo carro para que ele tivesse um para cada dia da semana”. Nenhum deles perguntou a Sterling sobre essa ambição específica. Cada um somente publicou uma galeria de fotos do atacante ao volante de vários veículos.

“Estes eram carros que eu tinha entre as idades de 17 e 23”, disse ele. “Mas eles conseguiram que Raheem tivesse um para segunda-feira, um para terça-feira e assim por diante. Todos esses carros sumiram, foram vendidos. Mas o que você faz quando vende um carro? Você compra um novo. Mas eles têm uma foto minha em cada carro, então a história é que eu dirijo um carro todos os dias. As pessoas veem isso e acham que é isso que ele está fazendo: comprar carros, viver a melhor vida.” Para registro, Sterling disse que atualmente tem um carro, e seu esposa, Paige Milian, tem outro. E também está, como disse “vendendo o meu, para obter um mais discreto”.

Não são apenas os carros, no entanto. Sterling apareceu em manchetes por: voar em uma companhia aérea de baixo custo; comer no Greggs, uma rede britânica de sanduíches; e fazer compras na Poundland, uma loja de descontos. Sempre que uma dessas notícias surge, seus amigos lhe enviam um link — acompanhado por uma série de emojis rindo — no seu grupo de Whatsapp. Às vezes Sterling também ri. “Há muito mais acontecendo neste mundo do que eu indo para Greggs”, disse ele.

A abundância disso, porém, o desgasta. “Qual é a necessidade disso?” Pergunta. “Qual é a necessidade dessa história? Às vezes você questiona qual é o motivo.”

Mais prejudicial do que o conteúdo dos artigos, para ele, é o modo como são enquadrados: os pequenos comentários, as menções supérfluas de seu salário semanal e, em particular, as palavras com ideias escondidas — as insinuações de que esse jovem, um jogador de futebol negro de sucesso não está gastando o dinheiro que ganhou corretamente, ou que ainda não ganhou nada.

“Não sou só eu”, ele diz. “Sempre que você vê uma notícia sobre um jogador negro ou um artista negro, ela tem que acabar com dinheiro, carros ou algo extravagante. Com uma pessoa branca de sucesso, a notícia é positiva, curta, doce, que pessoa amável.”

“É um estereótipo dos negros: correntes e joias, ostentação e dinheiro. Estas são palavras associadas aos negros. Se eu estivesse mostrando 10 carros na minha garagem, se eu estivesse no Instagram mordendo minha corrente de ouro, ou com dois Rolex, você pode me chamar de chamativo. Mas você não pode me chamar disso, se eu não estivesse retratando isso.”

Essa foi a tendência que Sterling demonstrou no post do Instagram que ele escreveu no carro no dia seguinte ao incidente racista em Stamford Bridge: a publicação constante de histórias e detalhes que pintam uma imagem distorcida e estereotipada de jogadores negros. Quando um jogador branco (Phil Foden) compra uma casa para sua família é retratado como sensato e uma atitude bonita, um relato sobre um jogador negro (Tosin Adarabioyo) fazendo a mesma coisa é noticiada com indícios de que ele não ganhou o suficiente para isso.

Sterling observou também que, quando voou em uma companhia aérea de baixo custo, não foi descrito como humilde ou elogiado por seu pragmatismo. “Era: ‘Você tem todo esse dinheiro — por que você está na easyJet?’”

É um assunto sobre o qual Sterling pensa muito. Ele discutiu longamente com Aidy Ward, seu agente, e com seu capitão no City, Vincent Kompany.

“Vinnie levantou um bom ponto”, disse Sterling. “Ele disse que não é culpa das pessoas que escrevem as histórias: é porque não há pessoas negras e minorias étnicas suficientes em altos cargos na mídia. Se houvesse outras pessoas de ascendência jamaicana a quem as pessoas que escrevem as notícias tivessem que obedecer, elas vetariam essas reportagens. Porque elas entenderiam esse lado da história. Eles viveram deste lado do mundo. Eles entendem como as pessoas se sentem. Com alguém que nunca sentiu certas coisas, você não pode fazer essa mudança.”

“Não estou dizendo que os jornais estão fazendo isso de propósito. Eles podem não saber que estão fazendo isso de maneira racista. É por isso que eu disse naquele post que as pessoas precisam ter cuidado com o que está escrito, como escrevem, com as pequenas palavras. As pessoas que leem o fazem e julgam imediatamente quem é a pessoa na notícia. É daí que minha imagem veio. Eles estão alimentando isso para as pessoas que estão lendo. E isso é constante, não acho justo, mas quem sou eu?

É uma questão pertinente, cuja resposta mudou, fundamentalmente, naquele dia de dezembro. Futebolista e pai são os dois primeiros que vêm à mente de Sterling, mas é o objetivo mais amplo de quem ele é, e quem ele pode ser, que mais o instiga.

Foto: CreditOli Scarff/Agence France-Presse

Sterling se inspira em Jay-Z, alguém que “ficou rico e depois procurou a próxima geração, colocou em jogo para encontrar alguém que o seguisse”. Ele continuou: “Se eu não fizer isso, se eu não faço isso, só vai continuar. Quando o futebol acabar, vou viver do que fiz no campo? Não. Eu quero ser capaz de ajudar as pessoas a serem as melhores possíveis.”

O que ele percebeu, no entanto, é que para ele — para qualquer um — ter algum efeito, o campo de jogo tem que ser nivelado. Sucesso preto não deve vir com uma advertência ou um asterisco. Foi isso que o fez escrever esse post. É o que o fez falar.

“Eu só queria que as pessoas parassem e pensassem”, disse.

Ele queria desafiar a mídia jornalística a ser melhor. Assim como ele, queria que aqueles que criassem essas imagens, que perpetuassem os estereótipos, olhassem e prestassem atenção.

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