A Mitologia da Grande Conjunção

Um Ensaio sobre a Construção de Significado na Pós-Modernidade

José Maurício da Costa
Storiologia
Published in
10 min readDec 28, 2020

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Giulio Romano: A Queda dos Gigantes, 1526–34.

“Ser humano é ter mitos. A visão de mundo mítica não pode ser eliminada.” — J. F. Bierlein¹

O dia é 19 de dezembro de 2020, dia em que completo anos. Abro minha caixa de e-mail e o título de uma retrospectiva do The Economist salta aos meus olhos:

Um novo coronavírus, possivelmente transmitido por animais vendidos em um mercado na cidade chinesa de Wuhan, se espalhou para criar uma das piores crises globais desde a segunda guerra mundial. Covid-19 já causou mais de 73 milhões de infecções registradas e mais de 1,6 milhões de mortes registradas. Em 23 de janeiro, as autoridades chinesas impuseram uma quarentena em Wuhan, logo estendendo-a para o resto da província de Hubei e além. Variantes dessa política de “bloqueio” foram adotadas por outros países enquanto lutavam para conter o surto.²

É natural esperarmos por um sinal dos céus em momentos críticos da humanidade. Para muitos dos que pertencem à minha geração, nunca um evento global havia causado tanto temor e alvoroço como o que ainda estamos vivendo. Bem típico da característica líquida de nossa atual sociedade: uma ruptura histórica causada por um elemento invisível, que ao invés de forçar uma união contra um inimigo comum nos obriga a isolarmo-nos daqueles que mais amamos. Neste contexto, de nada adianta esperarmos por um salvador, nos restando apenas orar por uma fórmula bioquímica. Uma crise existencial, que abala valores essenciais e leva a famigerada ansiedade do homo sapiens contemporâneo ao seu limite.

Os fundadores da psicologia moderna já atentavam a mais de meio século atrás para os perigos da fragmentação e ceticismo extremo de nossa relação com o mundo e a natureza. Ao desprezarmos a importância dos aspectos simbólicos de nossa cognição em nome da 'racionalização' da experiência humana, acabamos nos tornando vítimas de nossa indissociável irracionalidade ou, para usar um termo mais técnico, de nosso inconsciente.³

Sim, o aspecto irracional do homem é parte integral de sua constituição e, quanto mais buscamos nos afastar desta realidade, mais escravos dela nos tornamos. O que mais poderia explicar um berro inesperado dez minutos após uma conversa serena com nossos pares, um acesso de raiva logo na sequência de uma meditação profunda ou mesmo o poder e fascínio que as drogas, a violência e a prostituição ainda causam no mundo todo? Os temas que alavancam o crescimento da indústria global do entretenimento não nos deixam mentir.

“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Pois quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo também olha para você.” — Friedrich Nietzsche⁴

Então que tipo de resposta a nossa geração poderia oferecer a um problema invisível? Buscar embasamento em fatos é uma saída indiscutivelmente eficaz. Porém, tentar tratar a não-razão com uma dose dobrada de racionalidade só pode causar o efeito contrário ao desejado. Basta lembrarmos da 'projeção' de Freud, ou mesmo da 'sombra' junguiana, descobertas que remontam ao auge da separação entre corpo, mente e espírito tão característica ao processo civilizatório. De minha parte, continuo apostando no mesmo método que os grandes artistas, pensadores e mesmo cientistas de nossa história exploraram com ainda mais entusiasmo em tempos de ruptura: a criatividade.

As 4 Etapas do Processo Criativo de Graham Wallas.

Digo 'mesmo cientistas' pois infelizmente nos dias de hoje criou-se um senso comum de que a ciência apoia-se apenas em fatos e não trabalha com o imaginário. Se seguirmos a linha do processo criativo elaborado por Graham Wallas⁵, o mesmo que posteriormente serviu de base para o desenvolvimento do design thinking, a ancoragem em fatos faz parte apenas da primeira — preparação — e da última — verificação — de suas quatro etapas. As duas fases intermediárias do processo — incubação e iluminação — são introspectivas e não dependem de observação direta, mas sim do amadurecimento do material psíquico que diz respeito ao campo do inconsciente. Qualquer pessoa minimamente instruída sabe que sonhos e símbolos protagonizaram um papel tão importante quanto o da realidade concreta na história de toda grande descoberta científica.

Tudo isso nos leva à seguinte questão: por quê o imaginário tornou-se irrisório em nossa sociedade, levando-nos a rotular áreas ancestrais do conhecimento — como a mitologia, a alquimia e a astrologia — de pseudo-ciências ou mesmo ocultismo?

"A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a leva-lo para trás. Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorra do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo. Mantemo-nos ligados às imagens não exorcizadas da nossa infância, razão pela qual não nos inclinamos a fazer as passagens necessárias da nossa vida adulta." — Joseph Campbell⁶

Que fique claro: não se trata aqui de construir uma defesa de áreas do conhecimento “injustiçadas” e menos ainda de diminuir os avanços da ciência moderna. A intenção é bem mais a de construir uma linha de raciocínio trans-histórica ou mesmo sincrônica entre campos de estudo que nasceram de uma mesma fonte e que perderam muito com sua separação. No presente ensaio, parto simplesmente da hipótese de que a mitologia é capaz de oferecer um arsenal consistente para a construção de significado de um evento celebrado de maneira igualmente vibrante tanto por astrônomos quanto por astrólogos, tanto por cientistas quanto por teólogos, tanto por historiadores quanto por futuristas: a grande conjunção planetária das órbitas de Júpiter e Saturno.

O Tamanho Relativo dos Planetas do Sistema Solar: This Changing World, 1934

É bem sabido que os astros de nossa via láctea ganharam seus nomes dos antigos romanos, que por sua vez adotaram todo o arcabouço mitológico dos gregos. Segundo essa lógica, cada planeta da órbita solar possuiria os atributos de um dos deuses do Olimpo, sendo Júpiter relacionado a Zeus, Saturno a Cronos, Urano (este descoberto e batizado apenas no século XVIII) à sua divindade homônima e assim por diante. Não bastando apenas este nível de analogia, nossos ancestrais egípcios e helênicos ainda apadrinharam os mais diversos grupos de estrelas aos planetas⁷, determinando cada um dos astros do céu como “regente” de um ou dois signos do zodíaco.

Dificilmente há algum outro contexto no qual a imaginação humana foi tão inventiva quanto na analogia das constelações com as formas e mitos de homens, animais e objetos sagrados. Estas analogias, quando contrastadas com a última etapa do processo criativo — a verificação —, infelizmente caem por terra sem ter a mínima chance de ingressar no panteão da ciência moderna. Justo. Porém, o fato de ser impossível de se validar um determinado fenômeno pelo método científico não deveria automaticamente descartar sua relevância em termos estéticos, sociais e culturais.

Johannes Hevelius: Firmamentum Sobiescianum ou Uranografia. Danzig, 1690.

"As representações, símbolos, mitos, idéias, são englobados, ao mesmo tempo, pelas noções de cultura e de noosfera. Do ponto de vista da cultura, constituem a sua memória, os seus saberes, os seus programas, as suas crenças, os seus valores, as suas normas. Do ponto de vista da noosfera, são entidades feitas de substância espiritual e dotadas de certa existência." — Edgar Morin⁸

Noosfera é um conceito criado pelo padre, teólogo, filósofo e paleontólogo francês Teilhard de Chardin⁹, que buscou construir uma visão integradora entre ciência e teologia. Originado pela palavra grega Nous — que pode ser traduzida por 'espírito' — designa um ‘invólucro pensante’ que hipoteticamente recobria toda a terra. Uma espécie de rede psíquica cuja existência dependeria do pensamento e linguagem humanos, possuindo inúmeros paralelos com os conceitos de arquétipos e inconsciente coletivo do psicólogo suíço Carl C. Jung.

Chegamos aqui em um ponto crucial de nossa análise: se a cultura é o conjunto de crenças, hábitos e ritos compartilhados por um determinado grupo, a noosfera seria esta camada na qual os nossos mitos e sonhos criariam existência própria. Afinal, são poucos os sonhos nos quais percebemos de fato estarmos sonhando. Na grande maioria das vezes em que nos encontramos fora do estado de vigília, só nos resta vivenciar incondicionalmente os roteiros escritos pela substância de nosso inconsciente.

E se o fato de projetarmos nossos sonhos e imaginação nas estrelas nos ajuda de alguma maneira a sentirmo-nos mais pertencentes, responsáveis e influenciáveis por este universo, talvez esteja aí o elo perdido entre o arcaico e o moderno — entre a astronomia e astrologia, ciência e religião, história e mitologia, química e alquimia — e que ao mesmo tempo pode ser a nossa ponte para o futuro.

Como poeta, eu carrego os valores mais arcaicos da terra. Eles remontam ao Paleolítico tardio: a fertilidade do solo, a magia dos animais, a visão de poder na solidão, a iniciação e o renascimento aterrorizantes; o amor e o êxtase da dança, o trabalho comum da tribo. Tento manter em mente tanto a história quanto a natureza selvagem, para que meus poemas se aproximem da verdadeira medida das coisas e se oponham ao desequilíbrio e à ignorância de nossos tempos. — Gary Snider¹⁰

Dentro de todo este contexto, existiria então alguma remota possibilidade de se construir significado na pós-modernidade sobre sentenças como "Júpiter ultrapassa Saturno", "entramos na era de Aquário" e "como será o mundo pós-pandemia"? Para responder a esta questão, basta evocarmos um registro ancestral que conseguiu reunir todos estes elementos em uma só narrativa: a cosmogonia da Grécia antiga.¹¹

Nos mitos de criação helênicos, no início existiam apenas o Caos e a Escuridão, até o Firmamento ser gerado espontaneamente pela Terra e fecundar em sua própria mãe o Tempo, criando a primeira geração divina. Urano, deus da criatividade e codinome para o conceito de Firmamento, insistia em devolver seus filhos ao ventre da Terra temendo perder sua potência infinita. Atormentada pela dor de não poder dar a luz a seus rebentos, esta forjou um foice e tramou que seu caçula, Cronos — deus da conservação que personifica a ideia de Tempo — castrasse o pai, libertando seus irmãos — os Titãs — e gerando o amor — Afrodite — ao arremessar os testículos do mesmo ao mar.

Cristofano Gherardi & Giorgio Vasari: A Mutilação de Urano por Saturno.

Sob o comando do senhor do Tempo, os Titãs — escravos do desejo e da matéria — passaram a reinar sobre o mundo formando a segunda geração divina. Aquele desposou sua irmã Reia, e com o objetivo de manter a soberania, exigiu que esta lhe entregasse seus filhos um a um para que ele os devorasse. Uma destas crianças, Zeus, é salvo por sua mãe e estabelece a terceira geração divina, depondo seu pai após vencer a batalha entre deuses e gigantes que ficou conhecida como Titanomaquia.¹²

Francisco Goya: Saturno Devorando um Filho, 1819–1823.

A Grande Conjunção de 2020 demarca o solstício de fim de ano e reúne os governantes das três gerações divinas: Urano — o regente da constelação zodiacal de Aquário —, Cronos e Zeus, mais conhecidos na história da arte e filosofia como Saturno e Júpiter.

"Se enxerguei mais longe, foi porque me apoiei sobre os ombros de gigantes." — Isaac Newton¹³

Em 1610, o astrônomo italiano Galileo Galilei apontou seu telescópio para o céu noturno, descobrindo as quatro luas de Júpiter — Io, Europa, Ganimedes e Calisto. No mesmo ano, Galileu também descobriu uma estranha forma oval em torno de Saturno, que observações posteriores determinaram ser seus anéis. Essas descobertas mudaram a forma como as pessoas entendiam a dimensão estelar.

Treze anos depois, em 1623, os dois gigantes do sistema solar, Júpiter e Saturno, orbitaram juntos pelo espaço. Júpiter alcançou Saturno e o ultrapassou, assinalando a Grande Conjunção como um dos maiores eventos da astronomia. Apesar do fenômeno se repetir a cada duas décadas, já faziam praticamente 4 séculos exatos que os planetas não chegavam tão perto um do outro quanto agora, ou seja: desde que o homem apontou pelas primeiras vezes um telescópio aos céus.¹⁴

Em 1642, Galileu faria ainda suas últimas investidas contra o dogmatismo da igreja antes de falecer. Neste mesmo ano, nasceria Issac Newton — físico, matemático, astrônomo, alquimista, teólogo e um grande estudioso de filosofia natural e grega — levando a humanidade ao ápice de sua compreensão sobre o funcionamento da natureza e do mundo. Se a passagem de Júpiter por Saturno em Aquário puder significar algo para a nossa sociedade pós-moderna "que já sabe que não existe Céu nem sentido para a História, e assim se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo"¹⁶, que seja o triunfo da alma eterna de Zeus sobre o determinismo devorador de Cronos, inaugurando uma era em que a potência infinita de Urano possa voltar a reinar sobre nossos céus e nos permita enxergar sobre os ombros de gigantes.

Referências Bibliográficas:

  1. Mitos Paralelos, J. F. Bierlein.
  2. The World This Year, Dec 19th 2020 Edition, The Economist.
  3. O Homem e seus Símbolos, Carl C. Jung.
  4. Além do Bem e do Mal, Friedrich Nietzsche.
  5. The Art of Thought, Graham Wallas.
  6. O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell
  7. Ancient Skies, David Weston Marshall
  8. O Método 4: As idéias: habitat, vida, costumes, organização, Edgar Morin.
  9. Teilhard de Chardin, Wikipedia.
  10. A Controversy of Poets, edited by Paris Leary and Robert Kelly.
  11. Theogony, Wikipedia.
  12. Titanomachy, Wikipedia.
  13. A Dança do Universo, Marcelo Gleiser.
  14. The ‘Great’ Conjunction of Jupiter and Saturn, NASA.
  15. O Que é Pós-Moderno, Jair Ferreira dos Santos.

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