O Dragão, o Urso e o Cão Vira-lata

Um Breve Ensaio Geopolítico e Semiótico sobre o Coro Desafinado do Concerto Global

José Maurício da Costa
Storiologia
Published in
13 min readDec 21, 2022

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Cossacos Escrevem Carta ao Sultão Turco: Ilia Repin, 1880–91. Wikimedia Commons.

A invenção do estado-nação é coisa nova e não data nem de três séculos. Tempero cozido na caçarola dos ocos ideais da Revolução Francesa, há quem diga que tudo não passa de uma puxada no freio de mão da empreitada colonial, protagonizada sobretudo pela Grã-Bretanha. Abdicação da mão de obra escrava em troca de uma “liberdade” enlatada ou esboço genuíno da declaração de direitos humanos? O clube de Adam Smith, Stuart-Mill e Jeremy Bentham que o diga. Apesar de qualquer argumento, a história dos vencedores nos ensina — através de uma espécie de preconceito teleológico, é claro — que a humanidade evoluiu de agrupamentos menos organizados para mais organizados: partindo da barbárie do um contra todos e todos contra um, teríamos “progredido” de tribos de caçadores-coletores para cidades, impérios, nações, para enfim chegar no destino final da globalização — uma entidade abstrata, regida pela democracia de fins liberais, pela mão invisível do mercado e pelo secularismo religioso-cultural.

Fim da história? Só se for nos folhetins de ciência política das universidades estado-unidenses — que aliás caem em descrédito dia após dia com a descentralização exponencial dos círculos de autoridade e dos meios de comunicação das duas últimas décadas. Advento este que, como um abominável refluxo, fez ressurgir da tumba os fantasmas ideológicos mais absurdos, como é o caso — para citar apenas os campeões da falta de senso — do ultranacionalismo e a da ditadura do proletariado.

Em um cenário bem mais próximo de uma distopia fragmentária do que de uma utopia unificadora, o objeto deste ensaio é invocar uma brevíssima caracterização de três dos cinco maiores — em extensão territorial — estados-nação da atualidade, para mostrar como o fato de chegar atrasado na festa da globalização pode guardar no fundo a intenção de ser o último a ir embora, além de — supostamente — implicar o desejo latente de mudar o rumo de conclusão dos seus eventos. Bem-vindos à baderna manifesta do jogo de cartas da turma do fundão, protagonizados pela China, Rússia e Brasil.

Asterix, uma criação de Goscinny e Uderzo. ©Goscinny/Uderzo.

Preâmbulo: O Que Vale Mais, um Nariz ou um Queixo Erguido?

Bretões Enfrentam Gauleses na Batalha do Ego

Não, não se trata de um quadrinho de Asterix. A questão deste prelúdio é definir quando, como e porque os dados que deram a partida no imperialismo moderno — que culminou no que hoje chamamos de “ordem global” — foram lançados. Pois sabemos que os eventos definidores da nossa suposta “modernidade” foram as Revoluções Francesa e Industrial, ambas situadas no final do século XVIII, sendo a primeira de caráter predominantemente político e a segunda de aspecto principalmente econômico. E se aquela foi protagonizada pelo nariz empinado dos descendentes dos Gauleses, esta foi articulada pelo queixo erguido dos sucessores dos Bretões — ambas seguindo uma clara intenção de romper os laços com a igreja católica apostólica romana. Por essa nem César esperava.

O nascimento dos estados-nação estão relacionados com este mesmo rompimento, uma vez que os grandes impérios da antiguidade foram unificados e sustentados por uma histórica aliança militar-religiosa, junção que a modernidade vai banir de vez para instaurar um regime ainda mais perverso: o do casamento entre a soberana etnia cultural e o Deus do moto-contínuo econômico — desta vez sacramentado pelo milenar poderio marcial e uma novíssima cartilha de dogmas, genericamente agrupada pelo “regime do capital”.

Verdadeira sexta-feira treze dos acontecimentos históricos — literalmente –, a fogueira viva que fizeram com Jacques de Molay, o último líder dos Cavaleiros Templários, gerou uma maldição lançada pela boca do próprio que atravessa os séculos. Nascidas como mero conjunto de migrações para a retomada de território cristão, as Cruzadas culminariam com a exímia formação dos seus protagonistas na arte do câmbio monetário, até o ponto destes superarem e muito o conhecimento contábil da casta sacerdotal. Deu no que deu: a Ordem dos Cavaleiros de Cristo pariu a classe burguesa e o crédito bancário se tornou o porta-voz da i-moralidade civil moderna.

“Na China, o Bolo dos Reis e… Imperadores”. Caricatura Política Francesa de 1898.

Primeira Baderna: De Confúcio às Zonas Econômicas Especiais da China

Yin e Yang se Perdem do Tao em Meio à Guerra do Ópio

Livres das limitações impostas pela figura de um rei soberano e dos mandamentos transcendentes da igreja — fazendo jus à reforma iniciada nos tempos de Lutero e Calvino — franceses e ingleses estavam prontos para impor ao resto do mundo suas invenções políticas e econômicas. Para tanto, os primeiros teriam que travar uma guerra com as mais variadas formas de absolutismo e os segundos com toda e qualquer regra de bloqueio comercial.

Sabemos que a China é uma das sociedades mais tradicionais da humanidade, sendo um dos raros territórios que conseguiram manter quase intactos seus costumes durante milênios de guerras e revoluções. Berço de uma das filosofias de caráter mais independente e anárquico da história, o taoismo, seria ainda com outra linha de pensamento que o terceiro maior dos países em termos de extensão traria sua marca ao mundo: o confucionismo. É na transição daquela visão de mundo para esta última que o fluxo sutil do Yin e Yang perde seu protagonismo em torno das margens do Rio Amarelo, cedendo à linha dura dos rituais de manutenção da ordem espiritual e civil de uma incontável sucessão de dinastias.

Ainda passarão mais de dois mil anos até a vigília desta cultura praticamente inalterada começar a ser abalada. Abalada pelo torpor, uma vez que é justo o tráfico de ópio indiano para o território chinês quem provoca a primeira guerra do país de Confúcio com o continente europeu. O causador: o queixo levantado dos ingleses, que já não permitiam neste momento nenhuma espécie de bloqueio às suas “atividades comerciais”. No século seguinte, quando o partido de Mao Tsé-Tung chegou ao poder, a bronca com o mundo ocidental — assim como a aliança com o mais desobediente aluno do fundão — já estavam consolidadas. A queda do muro de Berlim só viria reforçar ainda mais a figura insubordinada do gigante asiático, levando-o a criar as sua Zonas Econômicas Especiais e mostrando que sabe jogar tanto com a direta quanto com a esquerda. Uma verdadeira aberração totalitária ambidestra que não baixa a cabeça para ninguém, muito menos pra quem inventou de jogar cocaína em bebida caramelada a fim de viciar o resto do mundo no dólar.

Mapa “Cômico” da Europa, Londres, ca. 1870.

Segunda​ Baderna: Eslavos, Tártaros, Czares, Profetas e Ditadores

A Ascensão e a Queda do Cristianismo Ortodoxo Entre Tiranias

O mais desobediente aluno do fundão não leva este apelido à toa. Fundada predominantemente pelos eslavos — habitantes da região de Quieve e que parecem ter gerado em sua etimologia a palavra “escravo” — e pelos tártaros — todos aqueles ocupantes da área que parte do Cáucaso e da Crimeia ao oriente — a Rússia conviveu desde sempre com a ambivalência de ser um povo ao mesmo tempo dominado e dominador. Último país em território europeu a se desvencilhar do regime servil típico do feudalismo, tornou-se a maior pedra no sapato das invasões napoleônicas e um verdadeiro calcanhar de Aquiles da rainha Vitória da Inglaterra.

Após ter sido subjugado por três séculos pelos mongóis, o território que viria a se tornar por mais de duzentos anos o vasto império dos Czares — cujo termo guarda a mesma raiz de Caesar no latim e Kaiser no alemão — entraria definitivamente para a história através das páginas de prestigiadíssimos autores como Tolstói, Dostoiévski e companhia. Apesar de falsos profetas de um nacionalismo de caráter Cristão-Ortodoxo, os escritores russos do século XIX lograram imaginar os limites da aplicação de valores humanistas-religiosos em um estilo de vida que — graças em muito à disputa franco-inglesa pelo controle político-comercial do resto do mundo — se tornava cada vez mais decadente. Como resultado, foi forjada uma literatura que logrou explorar as insondáveis deformidades comportamentais e morais da civilização moderna: eis um patrimônio digno de valia em meio ao imbróglio que chamamos de globalização.

Qual seria a cara de Karl Marx após descobrir que a revolução de caráter mais próximo do seu tão idealizado comunismo explodiria justo na sociedade mais atrasada da Europa? É bem verdade que à época o único proletariado mais ou menos organizado habitava apenas as regiões metropolitanas do império, e foi a massa de camponeses e o descrédito dos militares que fez o jogo virar. Tragédia interminável de um país que, além de cair novamente na armadilha da tirania para bancar a briga com os ianques no período da Guerra Fria, acabou apontando a arma para a própria cabeça ao entrar em uma dividida originada nas suas mais profundas fissuras genealógicas — a disputa pelo território da velha Rússia de Quieve, ponto fraco que os “novos ingleses” conhecem muito bem. Enfim, aqui o mandamento principal parece ser e sempre ter sido o de não obedecer absolutamente ninguém: pouco importa que seja às custas de sua própria pele.

Olá Amigos, Filme da ©Disney que Apresentou o Personagem Zé Carioca ao Mundo.

Terceira​ Baderna: 522 Voltas em Torno do Sol

A Sina de um País que ainda Procura o Próprio Rabo

Começar a falar do Brasil a partir da chegada dos colonizadores na Terra dos Papagaios já é uma forçada de barra por si só. Os arqueólogos tem demonstrado com progressiva clareza que grandes concentrações populacionais conheceram seu inferno, purgatório e paraíso na região Amazônica antes mesmo de Dante escrever a sua Divina Comédia. Para além destes ajuntamentos, coexistiam ainda as muitas “tribos” — as mesmas encontradas pelos ibéricos quando aqui aportaram — que por decisão própria viviam de maneira mais independente e descentralizada. Estes últimos organizavam-se através de uma lógica guerreira de base antropofágica, nutrida pela vingança entre gerações, ideia a qual — por menos aceitável que seja à primeira vista — ainda influencia, e muito, o nosso modo de se des-organizar hoje em dia.

No ano de dois mil e vinte e dois, o Brasil completou o bicentenário de sua soberania, além de celebrar os cem anos da famigerada Semana de Arte Moderna de São Paulo. Apesar destas seculares efemérides, o ano com certeza ficará marcado pelo intrincado processo que elegeu um presidente recém liberado — por uma mera brecha de foro — de um caso de corrupção que estampou as manchetes internacionais. Pior ainda para o outro lado da moeda que, com o jogo virado, insiste em ameaçar um golpe institucional— pelo simples medo de que lhe aconteça o mesmo tipo de punição aplicada ao seu adversário quando este não estava no poder. Entra ano e sai ano, o fato é que Deus nunca esteve do lado de ninguém por aqui: seja você Tupi-guarani ou Tupinambá, rivalizar ou ir contra algo nunca foi garantia de se estar do lado da verdade no Matriarcado de Pindorama.

Quem melhor faz a finta após ter a sorte lançada no cara ou coroa sempre se deu melhor na pátria de Garrincha e Pelé. Ou melhor: de Machado de Assis e Mário de Andrade. Pois assim como na Rússia, nós nunca tivemos um setor específico de filosofia e de ciência política. Como os Tolstóis e os Dostoiévskis da vida, tivemos que aprender a pensar na raça, dando dribles e nós em valores burgueses ou se imbrincando nas veredas do Brasil profundo. As contradições da ciência natural dos trópicos escapam à qualquer formulação, lembrando mais um vira-lata caramelo que dá voltas e voltas — sem nenhum sucesso — em torno do próprio rabo. Em meio ao caos, de uma única coisa temos certeza: mesmo após praticamente quatro séculos de escravidão, pra lá de trezentos anos de colonização e duas décadas de chumbo, o nosso Saci continua mais inapreensível do que nunca na espiral de seu rodamoinho.

A Alegoria da Caverna de Platão. Jan Saenredam, 1604.

Estribilho​​: Subvertendo a República de Platão

Enfim a​ Turma do Fundão Consegue Quebrar a Banca

Neste ponto eu convido o leitor para um refrão improvisado ou no mínimo um estribilho: obviamente toda nação possui suas crises de identidade e suas pedras no sapato, visto que a própria ideia de um território que consegue abrigar anseios iguais pela simples proximidade espacial não passa de uma quimera. Dentre os quase oito bilhões de pessoas no mundo, sem dúvida daria para contar nos dedos quantos vizinhos compartilham de fato seus princípios, valores e — com certeza menos ainda — seus desejos um com o outro. O problema aqui não seria então o da dissonância — pois mesmo na música são os acordes desta natureza que trazem mais brilho, cor e complexidade às composições — mas sim a questão da dependência ilusória. Por que raios precisamos tanto da encenação de algo que nos é externo pra sermos felizes? E mais ainda: por que tanta intolerância com os modos de viver e pensar diferente e — muitas vezes — mais esclarecidos que o nosso?

“Vai que essa moda pega”, seria resposta mais fácil. Assim seguimos com a estratégia da “melhor defesa é o ataque”, e a utópica República de Platão continua sobrevivendo apenas de suas sucessivas migalhas tirânico-democráticas — suas formas mais degradadas, diga-se de passagem. Infelizmente, ou felizmente, o pai da ciência política não se ateve ao papel da insubordinação, da desobediência e da desordem na manutenção da dinâmica civil. Preso em uma noção de superioridade filosófica ignorada pela mediocracia — além de iludido pelo preceito de que todos os homens teriam a busca das virtudes citadinas e moderadas como ideal — o discípulo de Sócrates acabou por negligenciar qualquer possibilidade de conjunção dos excessos opostos: o despótico e o caótico. Justo as “qualidades” que nem sequer chegaram a ser convidadas para aplaudir os simulacros da caverna.

Ou seja: após uma organização experimentar os diversos graus de degeneração, ela não retoma o jogo a partir do início do tabuleiro. Com os olhos embotados de vingança, sente-se obrigada a criar regras clandestinas para a brincadeira a fim de desmascarar o lobo disfarçado na pele de cordeiro: o poder centralizado, como qualquer topo de pirâmide, precisa de uma base para sobreviver. Assim como a mitológica serpente-dragão Ouroboros, a insubordinação, a desobediência e a desordem nascem do impulso que nos leva a devorar o próprio rabo e tentar liquidar tudo aquilo que deixamos pra trás. A velha sujeira jogada debaixo do tapete ataca novamente.

O Real Problema Começa com o "Despertar". J. Ottman Lithographic Company, 1900.

Conclusão: E Agora, José?

Um Apelo Final de Interpretação Semiótica

Não por acaso os símbolos da China, Rússia e Brasil são, respectivamente, o Dragão, o Urso e — extraoficialmente no caso — o Vira-Lata Caramelo. Primeiro, vamos ao caso do gigante oriental: praticamente todas as regiões do mundo possuem algum mito relacionado à serpente-dragão, que representa basicamente o inimigo que precisamos vencer para conquistar nossa maturidade. Desde os contos de cavalaria, passando pelo Siegfried do folclore nórdico e pela figura romana de São Jorge — isso sem falar na tentação do Gênesis bíblico — este animal fictício representa o nosso aspecto indomável, podendo ser confundido com o próprio inconsciente freudiano. A Hidra da mitologia helênica é uma criatura multicéfala capaz de regenerar cada uma de suas cabeças mesmo depois destas terem sido arrancadas, o que levou Hércules a cauterizar cada pescoço decepado de sua adversária a fim de subjuga-la. Conclusão prévia? A insubordinação, personalizada na figura do dragão, só pode ser vencida após ter suas cicatrizes — do passado e do presente — estancadas. Cenário pra lá de distante segundo as verdadeiras querências globais.

Grande, brutal e desajeitado em seu aspecto mais óbvio, o urso siberiano guarda — segundo relata a cultura popular Celta — uma relação intrínseca com os ciclos de hibernação e revivificação. Assim como o maior de todos os países em extensão territorial, a única maneira de evitar seus contratempos é deixando-o quieto em seu canto — coisa difícil de exigir para alguns atores políticos que não aguentam ficar sem coçar a sarna da doença imperial e insistem em cutucar todo e qualquer vizinho com vara curta. Neste ponto, uma pulga já deve ter entrado há muito na orelha do leitor: onde e de que modo se encaixa um animal pequeno e dócil como o cachorro vira-lata neste ringue de pesos pesados? Como já dizia o mais velho de meus irmãos, “bonzinho é aquele que fica de olho no cu do coveiro”. Nada mais típico do cão de rua do que esperar os restos de comida no final das refeições e ainda por cima brigar com seus iguais pela mais ínfima mesquinharia. Não esqueçamos a sua capacidade de se adaptar a qualquer contexto — pobreza e nobreza — além de ter um verdadeiro estômago de ferro. Talvez o mais desconfiado dentre os animais aqui citados, é capaz de se deixar cativar só para depois se tornar ainda mais arisco. Afinal, a única garantia de sua sina é a miséria, o abandono e a boca do lixo.

Insubordinação, desobediência e desordem vestem-se aqui de seus espíritos simbólicos para tornarem-se ilusão, atraso e segregação, um coro de desafinados na utopia presunçosamente uníssona e delirante do concerto global. Sim, vestir a carapuça do retardatário pode guardar no fundo a intenção de ficar até o fim — nem que seja somente pelo prazer de apagar a luz. Já quanto ao desejo latente de mudar o rumo de conclusão das coisas, essa é uma resposta que somente o tempo pode dar. Nossa única certeza até então é a de que — apesar de darem um baita trabalho e nos lembrarem a todo tempo que nem todos estão de acordo com o toque da música — dragões não existem, ursos são indolentes e, os cães vira-latas… estes ladram pra qualquer transeunte e mordem apenas seus próximos.

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