O Renascer​ da Propriedade Intelectual

Como e, porque os NFTs roubaram a cena em 2021

José Maurício da Costa
Storiologia
Published in
5 min readJan 3, 2022

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Willem van Haecht: Apelles Pintando Campaspe, c. 1630

NFT foi escolhida como a “palavra do ano” pelo Dicionário Collins. Enquanto muitos ainda tentam entender o seu significado ou mesmo nunca tinham ouvido falar neste conceito, ele já movimentou quantias exorbitantes no mercado de arte digital e de criptomoedas: projetos como o Bored Ape Yatch Club ou mesmo o CryptoPunk estão entre as iniciativas de maior sucesso dentro deste universo, e representam apostas indo em direções opostas quando falamos de possibilidades da tecnologia e de modelos de negócio.

Enquanto o primeiro aposta na descentralização dos direitos autorais — os compradores de cada avatar do projeto podem fazer o que bem entenderem com sua “submarca” adquirida — o último está mais próximo dos modelos tradicionais de propriedade intelectual, como o são os personagens da Disney, por exemplo. Os altos valores negociados nestas transações — um dos últimos Bored Apes transformado em NFT, datado de novembro deste ano, estava na casa dos duzentos mil dólares — podem assustar a quem olha a primeira vista, porém a promessa de quem compra estes documentos não está na imagem em si, porém no direito de uso da marca que está por trás do projeto. Para além de ilustrações de “macacos aborrecidos” e personagens “pixelados”, o advento do NFT sugere uma verdadeira revolução no modo como a propriedade é tratada no mundo digital, excluindo os intermediários das transações e devolvendo o poder às mãos dos artistas e seus admiradores. E o mais incrível de tudo: esta tecnologia, por mais nova que pareça, remonta aos primórdios da contabilidade e da escrita humana.

Rembrandt van Rijn: Cristo Expulsando os Mercadores do Templo, 1635.

A maior vantagem em ser um passadista não é, como muitos devem pensar, o fato de não se incomodar — e até sentir prazer — com o cheiro de mofo e fósseis de traças. Para lá de abrir sarcófagos e ficar limpando sítios arqueológicos com vassourinhas, aquele que se ancora no passado para responder às perguntas do futuro parte de uma tese irrefutável: a de que tudo o que acontece no presente tem seu eco no passado. Sim, as famigeradas leis do carma e da entropia atacam novamente. Mesmo o conceito de inovação disruptiva — termo sucateado por um lado e sobre valorizado por outro — tem seu lastro em leis fundamentais da natureza e da organização social, que podem ser encontradas de maneira embrionária em qualquer nível de evolução orgânica.

Assim também os são os NFTs — acrônimo para tokens não fungíveis em inglês — termo ainda incógnito para a grande maioria e que, no entanto, possui um longo trajeto na história, ou melhor, pré-história, já que se trata no caso justamente do evento — o mais aceito hoje entre os linguistas — que deu à luz a escrita. Data de provavelmente 8.500 A.D. a aparição dos primeiros tokens simples na história da humanidade — pequenas peças de argila com diferentes moldes para identificar propriedade e proprietário — e de cerca de 5.000 A.D. o surgimento dos tokens complexos, que além de possuírem formatos diferentes, portavam inscrições em sua superfície. Esta parte eu não posso deixar de dedicar às miríades de forecasters, cool hunters ou future sei lá o quê de plantão, que insistem em evocar a “tokenização” como grande tendência para diferenciar os seres evoluídos das telas digitais dos macacos que ainda insistem em ler jornal impresso.

Mito desvendado, os NFTs não passam de certificados — uma sequência de caracteres — que comprovam propriedade sobre algo, seja isso o que for: um terreno, um imóvel, um certificado universitário, um avatar no meta verso ou a autoria de um artista sobre sua obra. E porquê tanta euforia em torno de algo que nasceu a mais de oito mil anos antes de Jesus expulsar os comerciantes do Templo de Deus? Exatamente por também colocar os mecenas de fora do jogo. Ou melhor: força-los a sair da zona de conforto e a reinventarem-se

Um intermediário pode ser definido vulgarmente por aquele que ganha com o trabalho do outro. Onde tenha alguém querendo vender e outro querendo comprar, ele aparece. Até aí, tudo bem. O problema é quando a ordem de importância se inverte e o articulador da oferta e demanda se torna o monopolizador dos meios de distribuição. E aqui é história é longa: daria para citar desde a suposta vingança de Hitler contra os judeus — portadores dos meios de comunicação na época — até a dinastia Médici da renascença italiana.

É justamente esta reversão, que podemos chamar sim, de democratização, que está no centro das discussões sobre NFTs, blockchains e Web 3.0. Ao mesmo tempo, em que o poder retorna para as mãos de quem trabalha e de quem compra, o processo de busca e curadoria torna-se mais complexo. Pois é: para além do discurso, a prática da democracia é dura. É muito fácil recebermos todo o tipo de conteúdo já mastigado em nossas mãos, difícil é ter o critério necessário para fazer a filtragem e não se perder em uma multidão de amadorismo e falta de gosto. Assim como a Web 2.0 e as redes sociais demoliram os meios de comunicação tradicionais, abrindo espaço para uma enxurrada de informações antes encobertas mas também em grande parte falsas, os novos protocolos de propriedade intelectual com certeza serão precursores do aparecimento de inúmeras obras medíocres criadas por falsos gênios. Tem alguma dúvida? É só fazer uma rápida estimativa de quanto tempo perdemos para achar algum conteúdo que preste dentre as inumeráveis recomendações do Netflix.

Por estas e outras razões, o papel do mecenas deveria ser o de proporcionar o encontro de bons artistas com bons apreciadores, de boas oportunidades com bons compradores, enfim, de quem sabe criar valor com quem sabe dar valor, considerando critérios muito bem estabelecidos pela evolução de nosso contexto histórico. Nada mais convincente do que o nome escolhido pelo rapper Snoopy Dog para seu novo perfil do Twitter: ao batizar seu avatar virtual de Cozomo de’ Medici, parodiando o nome do ilustre mecenas do renascimento, o artista envia uma mensagem muito clara ao mercado das artes digitais: que o ponto de gravidade mudou, mas os intermediários continuam mais vivos do que nunca. A nós, meros mortais, resta apenas orar para que o músico e seus seguidores consigam honrar àquilo que se propõem.

Referências Bibliográficas:

  1. História da Escrita, Steven Roger Fischer.
  2. The Bored Ape Business Model: Decentralized Collaboration via Blockchain and NFTs, Edwar Lee.
  3. How NFTs Will Kill Netflix, Douglas Rushkoff.

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