Os Hackers, os Nômades e as Subculturas

Como as marcas podem nascer da diversidade cultural

José Maurício da Costa
Storiologia
Published in
6 min readMar 23, 2016

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Aérea do Burning Man, festival anual realizado no deserto de Nevada, nos EUA.

Primeira parte: os hackers cidadãos

“Eu não estou mais aceitando as coisas que não posso mudar. Estou mudando as coisas que não posso aceitar.” — Angela Davis

São 19:30, Elson, Henry e eu estamos chegando em São Paulo e a notícia não é boa: as entradas pra palestra do Red Bull Station estão esgotadas e pelo visto perdemos a viagem. A estrutura do prédio é fantástica, tão rolando algumas exposições de arte em salas separadas e tem um café bem legal no térreo. Mas nada disso parece ser capaz de substituir a sensação de termos falhado em nossa missão. Então o Danilo, que há um tempo já tava esperando a gente na fila, decide salvar a pátria me cedendo a pulseira que ele tinha conseguido reservar 30 minutos atrás. Sou nomeado pra representar o bando e absorver um assunto ainda caro pra nossas metrópoles brasileiras, as “cidades hackeáveis”.

O tema é complexo. Martijn de Waal começa esclarecendo a diferença entre a face criminosa do ato de hackear e a sua face aplicável pra qualquer situação — “o ato divertido/inteligente de se apropriar de um sistema pra além do uso ao qual foi destinado.” Os cases são ótimos, e vão desde a construção de redes sociais na linha de um facebook regional — com a grande vantagem de que a leitura de dados é utilizada a favor daquela população local, apoiando na visualização de novas oportunidades e melhorias dentro da comunidade — até o mapeamento e a completa revitalização de zonas abandonadas pelo estado, reorganizando todo o fluxo econômico e sustentável da região.

Neste processo de "design thinking", a prototipagem reflete diretamente o compromisso social dos envolvidos.

A metodologia é incrível. Ela parte do caminho contrário do tradicional top-down, saindo de uma necessidade genuinamente identificada pela população — geralmente representada por designers, decisores políticos e cidadãos engajados — passando pela ideação e pela formatação pública da causa até a institucionalização de uma solução junto do governo. Diferentemente dos projetos de smart cities — que são geniais porém encontram muitas dificuldades pra se adequarem ao real movimento urbano — as iniciativas das cidades hackeáveis partem das pessoas. O masterplan não é o resultado do trabalho solitário de arquitetos e sim de um coletivo de profissionais, e a mesa de trabalho colaborativo mais parece um tabuleiro de war contendo um grande impresso do google maps, onde a representação da região destinada a receber o projeto é preenchida por pequenas maquetes avulsas que lembram peças de lego ou de playmobil. O resultado é um processo de design thinking no qual a prototipagem reflete diretamente o compromisso social dos envolvidos.

Segunda parte: os artistas nômades

“Porque os homens lutam por sua servidão tão teimosamente, como se essa fosse a sua salvação?” — Gilles Deleuze

Saindo da sala fechada da palestra, desço alguns lances de escada apertados pra encontrar o meu bando e notar que ele já cresceu: o Ítalo é um agitador cultural da capital paulista, especialista em marketing digital e com mente empreendedora. São 21:00hs e a próxima missão é encontrar mais um dos nossos. Acabamos organizando uma reunião num boteco de esquina praticamente vazio, com apenas dois tiozões sentados em uma mesa de fora. Regados a cerveja e a espetinhos do tipo “carne de gato”, trocamos mais algumas referências e o Ortega nos introduz um novo tema: a sigla TAZ, traduzida para português como zonas temporárias autônomas, tem tudo a ver com as cidades hackeáveis e suas propostas de comunidades artístico-empreendedoras.

Zhang Kechun: the yellow river.

Apesar de possuir vínculos anarquistas na sua essência, as TAZ não seguem uma lógica de formação desorganizada. A sua complexidade vem do fato de possuírem hierarquias totalmente descentralizadas e dinâmicas que partem mais de um acontecimento espontâneo do que de um planejamento prévio. Introduzidas pela primeira vez em 1990 pelo escritor e filósofo Peter Lamborn Wilson, o conceito de tais zonas foram inspiradas pelas primitivas redes de informação dos piratas e pelos modos de orientação e locomoção das sociedades nômades. Se posicionam como contrapontos à evolução baseada na continuidade sanguínea da família, se apoiando na lógica da formação de bandos pra multiplicar costumes, alianças e afinidades espirituais. É um tipo de associação criativa, contrária e complementar a qualquer espécie de estratificação.

Nicholas Kennedy Sitton: Twisted series.

Talvez o ponto mais crítico e interessante na ideia das TAZ esteja na sua relação com o poder. Suas personas demandam algo para além da transparência do estado, tendo como grande objetivo a realização. Porém, ao invés de fazer da revolução o seu método, elas partem de insurgências, e nunca confrontam diretamente o estado ou o status quo. Por isso a festa ou o evento são os acontecimentos modelo de tais zonas, desaparecendo assim que atingem o seu ápice para reaparecer em algum outro tempo e espaço imprevistos. Hakim Bey, pseudônimo de Lambor Wilson, ainda reforça a importância da tecnologia e da formação de redes para a consolidação logística das TAZ, que nuca devem ser confundidas com celebrações infundadas ou com intenções perversas — como no caso dos piratas e das sociedades de guerra nômades — mas sim vistas como manifestações genuínas capazes de criar novos caminhos para o desenvolvimento coletivo de uma sociedade.

Terceira parte: a multiplicidade cultural

“Perdoe a você mesmo por não conhecer o que você não sabia antes de te-lo aprendido”. — Maya Angelou

Já se passaram alguns dias desde aquela noite de boom de novidades. Acabei reunindo alguns estudos atuais a outros da minha época de universidade, de escritos de contracultura francesa até artigos voltado para negócios. Sentado na mesa de trabalho, a ideia é começar a fazer as relações entre culturas de inovação, subculturas e branding. Em um escrito de 1980, L'invention du quotidien, Michel de Certeau já discorria sobre a constante mixagem de informações que acontece em dois sentidos: das marcas para as pessoas, das pessoas para as marcas. Nessa lógica, os mapas dos improvisos sociais se sobrepõe aos dos planejamentos políticos formando uma só malha dinâmica e auto adaptável.

"Loja da Apple" em Sosnowiec, na Polônia.

O fato é que não existem cidades perfeitamente hackeáveis e muito menos movimentos completamente invisíveis e livres da relação com os poderes estabelecidos. As marcas e as instituições sempre terão a chance de se apoderar de alguma maneira de movimentos autônomos, do mesmo modo que estes sempre terão a chance de escapar da padronização para se multiplicar das mais variadas maneiras. É por essas e outras que a ambição de se criar uma cultura de nicho é totalmente paliativa e de prazo curto de validade: tanto as marcas quanto as pessoas precisam se misturar pra continuar a viver, a se inspirar e a se reinventar.

Por algum tempo pensei que não fosse possível reunir atributos de contraculturas hiper criativas com a organização e as estratégias de mercado. Essas coisas se comportam como dogmas separados, e quem tem medo de reuni-las fica travado como alguém que estivesse pecando na frente dos deuses e tornando sagrados os demônios. Transitar com mais tranquilidade entre dois pólos nos mostrou que existe um terceiro caminho, bem mais inovador e empreendedor do que nos mostram a maioria dos cagadores de regra. Tentar criar uma cultura de marca pode realmente soar um absurdo, uma vez que comportamentos ditados de cima pra baixo geram muito mais questionamento e insatisfação do que adequação. Porém, é possível utilizarmos o branding como um conjunto de técnicas para gerar relevância junto de “marcas culturais”, que se apoiam em uma multiplicidade de pequenos movimentos pra criar uma síntese de diversidade. Essa é a proposta da Storiologia.

Referências:

The Hackable City, org.

TAZ, Hakim Bey

Branding na era a mídia social, Douglas Holt

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