Fonte: Unplash

A mulher do espelho

Subplano
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3 min readAug 2, 2018

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Noeli Nobre*

Stella é uma mulher. Quero dizer, ela sonha em ser uma mulher de carne, osso e sangue. Por enquanto, ela é só uma ideia, uma faísca, uma energia… Não sei o que ela é, só que vive atrás do espelho do meu banheiro e quer ser mulher. Já mudei de casa várias vezes, Stella sempre foi junto e sempre se acomodou atrás do espelho do banheiro.

Ela se mostrou para mim em um sonho, quando eu tinha 21 anos. Estava vestida em armadura feminina e se contemplava em um espelho de mão. Foi nesse dia que revelou sua intenção: planejava roubar meu corpo na madrugada, quando eu distraidamente olhasse para o espelho e meus olhos se cruzassem com o que supostamente seriam os olhos dela, como se ela fosse uma medusa.

Desde então evito me olhar no espelho do banheiro de madrugada. Se levanto às três da manhã para fazer xixi, passo reto para o vaso, ao fundo. Se volto de uma festa às duas, tiro a maquiagem olhando torto.

Stella quer estar do lado de cá, entre essas paredes pintadas de branco gelo, entre as samambaias pendentes do teto, pés cravados no frio do ladrilho preto. Quer sobretudo se contemplar no grande espelho sobre a pia, uma grande cuba retangular branca, ligada ao piso por uma longa coluna de louça. Quer parar ali ao sair do banho, rente à cortina florida que isola o chuveiro, e olhar detalhadamente o corpo que sonha em ter: observar a firmeza dos seios, o inchaço pré-mestrual da barriga, as nádegas que até cresceram um pouquinho por causa da musculação, o desenho dos pelos pubianos…

Depois, quer encostar o ventre nu na borda gelada da pia e passar os olhos por tudo o que há nas pequenas estantes azuis em madeira dispostas de cada lado. À esquerda, os batons em tons nudes e vermelhos e os inúmeros cremes antienvelhecimento. À direita, o frasco de perfume italiano comprado em Paris e a fragrância amazônica, a mesma que minha vó usava antes de se deitar com meu avô às margens do Tapajós.

Stella quer se pentear, se maquiar, se perfumar. Quer olhar para o espelho, jogar um beijo para si e sair dali se achando linda e livre, com poderes de conquistar o mundo.

Talvez ela esqueça que é na frente desse mesmo espelho com moldura em ouro envelhecido e bordas carcomidas que eu choro durante o dia ou até à noite, nunca depois da meia-noite. É onde me encaro, aproveitando a luz da pequena janela lateral incidente sobre o rosto, olhos nos meus próprios olhos, a observar as linhas que surgem em torno dos lábios e das pálpebras, entre as sobrancelhas. É onde vejo minha história até chegar aqui, à frente do espelho. Penso nos que já se foram, no amor que não ficou, no filho que não veio, nos rumos tão loucos do mundo. Penso sobretudo em mim e pergunto o que em minha vida atrai tanto a Stella. Porque nos momentos de vulnerabilidade eu não passo de prisioneira do espelho.

*Noéli Nobre é adepta dos cabelos selváticos e dos sonhos, amante das palavras. Essencialmente poética. Brasiliense de raízes amazônicas, goianas e mineiras.

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