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A vistoria

Selena Carvalho
Subplano
Published in
3 min readJun 12, 2018

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Tu não tinhas ideia da minha pressa. Não sabias que eu já extrapolara o prazo e que cada dia a mais implicava em um gasto e um desgaste que eu não podia suportar. Teria feito diferença se soubesses? Eras criterioso demais para deixar que qualquer circunstância atrapalhasse o que precisava ser feito. Soube-o quando abri a porta para ti no horário que havíamos combinado, nem um minuto a mais ou a menos, e vi teu rosto impecavelmente barbeado, teu cabelo fixado à base de gel, a roupa sóbria, os sapatos combinando com o cinto. Eu precisava de ti, não sei se alguém já precisou tanto nas tantas e tantas vezes em que fizeste o mesmo trabalho. Não havia mais tempo, muito menos dinheiro, e esmagava-me a certeza de que, somente quando eu encerrasse aquele assunto, poderia me render à sensação de vida nova. Naqueles quinze dias em que eu o preparava para a entrega, tinha a impressão de que tinha entrado em um limbo, não estava lá nem aqui. Cada vinda a este lugar para conferir o serviço dos trabalhadores que eu havia contratado me doía. Eu andava pelos cômodos com a memória seletiva ancorada apenas nos momentos bons que passamos aqui, e a nostalgia grudava em mim pelo resto do dia. Eu não conseguia aceitar o óbvio: as pessoas devem se mudar quando o espaço não as cabe, por pequeno ou grande demais. Ele tinha ficado grande para nós, a despesa não fazia sentido, mas isso não aplacava o meu desalento. Nisso me ajudaste. Assim que começamos a percorrê-lo, o branco reluzente próprio dos recém-pintados me cegando um pouco, e tu me apontavas um defeito aqui outro ali, senti toda a melancolia se esvaindo e, no lugar dela, se instalando a vontade de me ver logo livre daquilo tudo. — A senhora se lembra se já faltavam esses pinos na tampa deste vaso sanitário?, tu me perguntavas, e eu respondia não, não lembro, refreando minha vontade de dizer que eu não podia lembrar do que sequer sabia que existia. — E essas cerâmicas já estavam manchadas quando a senhora começou a morar aqui? Não tenho ideia, tive a coragem de assumir. — Se a senhora não fez nenhum trabalho de solda, é provável que já estivessem — Não, não fiz — e era verdade. De todas as situações, pode-se tirar algum aprendizado, dizem. Tu me mostraste um mundo de canos, fios, ganchos, que eu desconhecia por completo, um conhecimento que, infelizmente, me chegou tarde demais. Por que não foste tu que elaboraste o primeiro laudo, já especificando no que eu deveria prestar atenção? Tu não terias tido a coragem de mentir e mascarar os problemas como fazem por aí, mesmo que teus patrões mandassem. Eu teria te agradecido. Naquele dia, no entanto, tive raiva de ti, da tua obsessão pela perfeição, do teu rosto impecavelmente barbeado, do teu cabelo fixado à base de gel, da tua roupa sóbria, dos teus sapatos combinando com o cinto. Eu custava a crer que eu dependia de uma pessoa como tu. Parávamos em cada canto e tu rabiscavas frenético um bloco de anotações, enquanto eu mentalmente contabilizava o que aquela minúcia me custaria. Deixaste-me pasma quando me repassaram o que tinhas escrito, as tuas conclusões. Tiveste a desfaçatez de mencionar as manchas na cerâmica, depois de me dizer que havia indicação de que elas estavam lá há mais tempo do que eu. Desprezei-te ainda mais. Fui obrigada a consertar o que eu tinha encontrado quebrado, a trocar itens por defeitos quase imperceptíveis, a recontratar trabalhadores. Perdi noites de sono, primeiro pensando que seria forçada a trocar as cerâmicas manchadas, depois imaginando que se elas fossem de modelo fora de linha, a trocar todas as outras. Levaste dois dias para esclarecer a questão. Martirizaste-me. Retardavas, sem saber, o meu recomeço. Sobretudo isso, não te perdoarei. Amanhã temos novo encontro. Desde já, treino a minha falsa simpatia. O teu olhar clínico não encontrará traço de insatisfação no meu rosto. Percorrerei mais uma vez os cômodos ao teu lado. Conferiremos o reparo de cada item que indicaste. Balançarei a cabeça em concordância quando disseres: sim, agora sim. Sou capaz mesmo de elogiar tua perspicácia, com fingida despreocupação. Desempenharei o papel de submissa ao teu poder até que te transformes de algoz em salvador.

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