Pedro Pantoja
Subplano
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5 min readMay 7, 2018

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Cômodo

Os carros e caminhonetes não eram meus, mas exigiam minha própria sonoplastia como os dinossauros. Nem a buzina do Honda NSX laranja funcionava mais. Com exceção dele, todos os outros faziam parte da coleção do meu primo Ricardo, já velho demais para mantê-los numa jarra de suco em cima da cristaleira da minha tia. Vieram de Porto Alegre, esmagados numa caixa disfarçada com o meu nome. Eu rasguei o papelão e os despejei todos no chão do meu quarto, junto com os outros preguiçosos. Os dinossauros eram novos mas tão imprestáveis quanto os carros. O verde dentudo mal ficava de pé. Faltava-lhe um pedaço do rabo e parecia mais velho que o calhambeque, sem um dos pneus depois da viagem. Ele agora fazia parte da frota de porcarias que me enviavam para serem recicladas.

Calcei as sandálias que herdara do filho do porteiro e depois de chutar os lagartos e veículos para baixo da cama, corri para o cômodo ao lado. Luiza estava sentada na frente do computador, olhos na tela, com um braço que sabia exatamente qual o próximo CD a entrar no aparelho de som. O esquerdo trocava os álbuns enquanto o direito disparava contra terroristas e guerrilheiros camuflados como esquimós. As balas do tiroteio voavam entre os acordes do que mais tarde soube ser grunge. Desarmar bombas com aquela trilha sonora superava qualquer uma das relíquias gaúchas no meu quarto, embora o século tivesse de mudar para que o brinquedo de Luiza chegasse até mim. Eu deitei atrás dela, com a nuca na beirada da cama, vendo os discos empilhados até o parquet. As janelas ao lado do altar do computador estavam abertas, e as persianas pretas que caíam sobre elas não conseguiam deixar a curiosidade do sol do lado de fora. Balançavam com um molejo que dificultava afirmar que era por causa do vento e não da música. Luiza nunca percebeu como elas falhavam. Para ela, o importante era que continuassem pretas.

Passei muitas manhãs deitado naquela cama. Comecei a usar camisas de flanela que tirava do armário de Luiza enquanto ela não via. Vários cabides ficaram vazios. Pelo menos uma delas estava sempre no meu quarto. Mas antes de voltar para os répteis estacionados, tinha de conferir se o disco que tocava o chão no topo da pilha continuava onde eu tinha deixado. Prensado sob os demais, escondido. Ele tinha uma noz nojenta. Era tão preto quanto o quadrado suspenso na parede do quarto dela. O dia que ela o botou para tocar foi o mesmo que a professora Acací escolheu para registrar sua preocupação comigo. Foi o dia que as persianas não dançaram. Do meu armário tirei a flanela amarela e até a abotoei. Era meu novo uniforme, minha parte no movimento. Me rebelei contra os calçados. Os mandei pro vão de onde os dinossauros nunca deveriam ter saído. E pela primeira vez pus os pés no chão. Senti tanto o frio cadavérico da madeira quanto o calor de uma insipiente rebelião contra o opressor que me fazia colocar aquelas sandálias, para não pegar fungo nos pés. Fui descalço até os discos de Luiza e encontrei sua porta fechada. A maçaneta não girou. Bati e nada. Das frestas só saía o silêncio. Fiz o caminho de volta para meu posto de reciclagem. Da porta dava para ver a montanha de velharia debaixo da cama. E a cortina atrás dela. Era de um bege tão pesado que nem mexia.

A campainha tocou. A porta dela abriu e Luiza disparou até a sala, batendo seus tamancos no assoalho — também não conseguira escapar da opressão. Entre o meu quarto e o dela eu fiquei pra ver a visita, talvez fosse minha mãe, que não nos visitava há um tempo. Até que uma voz trêmula começou a tomar conta do corredor, com palavras acorrentadas umas nas outras. Aquele acorde distorcido começou a rugir de dentro das caixas de som. Estava desabotoando a flanela quando vi uma cabeça encharcada de preto aparecer na sala e arrancar um beijo da minha irmã. Depois entraram o par de coturnos, e as garras também pretas que acenaram na minha direção. Entrei no quarto dela e devolvi a camisa para um dos cabides. A última olhada nos discos antes de sair confirmou a voz que congelava as persianas. Me virei para fugir e fui empurrado de volta para dentro. Luiza entrou seguindo o namorado, protegido com as escamas de um sobretudo. Preto, inclusive. Ele foi até o tocador de discos e aumentou o volume. Os dois começaram a rir enquanto eu tentava me enfiar debaixo da cama dela. O monstro repetia as falas do disco e ao fundo, Luiza gargalhava, apoiando as mãos na cintura da calça jeans. Com cinco unhas pretas ele me puxou, enquanto desviava os fios de cabelo dos olhos, e parou de cantar quando viu que eu já tinha molhado parte do chão. Agora ele escancarava os dentes e Luiza reclamava. E eu me lembrei dos meu dinossauros e dos dentes deles. Quando o bicho me soltou para secar os olhos, fugi.

No meu quarto todos me esperavam obedientes. Juntei-me a eles no refúgio entre a cama e o chão seco. Com uma proteção sobre nossas cabeças, vi meu pai no corredor. Meu exército estava todo nos meus braços, mas nenhum dos carros era poderoso como ele. Tão imperativo que a barulheira sumiu assim que esticou o pescoço pra dentro do quarto de Luiza. Com os olhos no alto ele acompanhou a sombra voltar para a porta de onde entrou. Deixei minhas tranqueiras e parei na porta, embaixo da sua asa. O namorado de Luiza já estava na sala, rastejando as botas sujas. Olhou para mim e saiu, puxando a maçaneta para fechar a porta. Meu pai correu até a saída e a abriu. Seu genro teria sido puxado para dentro se não tivesse soltado a mão.

“Não volta não, tá?”, disse antes de trancá-lo fora do nosso apartamento.

Os tamancos correram pelo corredor e se trancaram dentro do quarto. Luiza ligou o som. Meu pai os seguiu, ficou na porta pedindo que eles a abrissem. Seus socos não funcionaram. Nem sua voz, lutando contra a guitarra distorcida mais alta do que antes. Luiza estava se defendendo do opressor. Minhas buzinas ou pisadas jurássicas deviam ser capazes de manter o fogo do não-grunge fora do meu quarto, já que minha porta não trancava como a dela e o volume dos efeitos dependia inteiramente de mim.

Coloquei o NSX laranja para disputar uma corrida com o Ford F100, um em cada mão, motores gritando a toda força. O primeiro que tocasse o rodapé seria o vencedor. No três, os empurrei. Acompanhei o Honda tomar a liderança. Antes que o visse bater na linha de chegada, meu pai se ajoelhou no meu campo de visão, me esticando o disco preto.

A cortina foi empurrada e eu vi que minha janela estava aberta. Fazia silêncio. Estiquei o meu pescoço e na calçada, vi o dragão soltando fumaça pelo nariz, com um cigarro entre os lábios pretos. Meu pai se levantou, parou do meu lado. A luz dos quatro faróis refletiam na parede. Não soube dizer quem ganhou.

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Pedro Pantoja
Subplano

na capoeira me chamavam de 'derrotado'. hoje sou escritor.