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Caramanchão

Selena Carvalho
Subplano

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Não gosto de animais. Na infância também não gostava, mas de uma forma ou de outra, sempre tínhamos um cachorro ou gato ou periquito ou coelho ou hamster. Não sei bem como eles apareciam, um dos meus irmãos os resgatava da rua, acho, e meus pais aceitavam, sem levar em consideração a opinião dos demais filhos. Quando tive minha própria casa, decidi que não teria nenhum. Para ser precisa, não chegou a ser decisão: eu nem cogitei.

As minhas filhas pediam, claro, mas eu seguia indiferente aos apelos, convicta na resistência, certa de que devia priorizar meu bem estar. Com paciência, elas esperaram, até que, unidas pelo projeto comum, numa irmandade que, no caso delas, só um complô comportaria, conseguiram, por fim, na euforia da comemoração do aniversário da mais velha deste ano, me enredar em pesquisas sobre raças, lugares e preços para comprá-lo.

Agora temos esse cachorro, de quem não gosto em absoluto. A princípio, o cheiro da casa era o que mais me incomodava. Depois, percebi que há duas coisas que me exasperam muito mais e com as quais não me acostumo: a obrigação de acarinhá-lo quando chego ou acordo, senão serei seguida até que o faça, e o fato de não mais poder comer à vontade, sem a culpa que aqueles olhos pidões me provocam. Sorte é que ele tem um temperamento excelente: pacato, calmo, abnegado. E late tão pouco, que, quando o faz, me causa estranheza. Verdade seja dita: tirando o que já mencionei, esse cachorro não nos traz grandes transtornos, passa a maior parte do tempo deitado, tranquilo e silencioso, e se me aborreço, é só porque, ainda assim, sinto sua presença, e não gosto de animais.

O único proveito que tive com a sua vinda é que agora tenho um pretexto para andar a esmo pela quadra. Gosto de caminhar no final da tarde. Se estou com ele, não preciso andar rápido, fingindo que estou me exercitando, nem me sentir constrangida por seguir num ritmo displicente, só olhando o redor, sem destino definido. Então, quase todo dia eu o ponho na coleira, pego um saco plástico e desço.

No caminho que fazemos, há árvores à direita e à esquerda, altas, do mesmo tipo, com os galhos mais baixos secos e os mais altos com inúmeras folhas. O plantio planejado faz com que suas copas se entrelacem perfeitamente, formando um caramanchão que acompanha todo o trajeto. Nessa parte sempre há sombra e o barulhinho das folhas se movendo abafa o ruído dos carros que passam a poucos metros ao lado. Com um pouco de imaginação, é possível se sentir em outro tempo e lugar, ninguém demora mais que nós nesse passeio, eu, fixada em um detalhe ou outro, ele, cheirando os montinhos de grama à volta.

Seria perfeito se fôssemos só nós dois, mas nunca é. Vários dos nossos vizinhos também passeiam com seus cãezinhos à mesma hora. Eu me contentaria de bom grado em apenas cumprimentá-los com um aceno e seguir adiante, mas é impossível. Como velhos amigos que não se veem há muito tempo, os animais correm um para o outro, numa alegria incontida, arrastando os respectivos donos consigo. Então, temos que parar e esperar que se cheirem. Se eles não se estranham depois da primeira aproximação, alguns donos passam a agir como pais dedicados a conhecer os amigos dos filhos, e dão início ao interrogatório. Já tenho as respostas decoradas e, por educação, faço as mesmas perguntas, embora alguns passos adiante esqueça por completo o encontro.

Tem gente, todavia, que é mais desmemoriada do que eu. Por exemplo: a moça que sempre pergunta: ele é bravo? Como não guardo as feições de ninguém, muito menos reconheço os respectivos cachorros, só percebo que é ela quando ouço o “ele é bravo?”. Ela, por sua vez, não me reconhece de forma alguma, nem mesmo quando, em tom de enfado, digo: ele é bem bonzinho. Nesse ponto, sou consumida pelo cansaço porque sei que ela dirá “o meu também não”, e, satisfeita, deixará que o seu cachorro comece a cheirar o meu. Quer dizer, o das meninas, eu não tenho bicho de estimação, gosto cada vez menos de animais.

Hoje a encontrei e me preparei para a ladainha habitual, que começa desse jeito e, seguindo um roteiro invariável, acaba quando o cachorro dela, que não é bravo, se exalta, começa a latir alto, e ela, fingindo alguma surpresa, puxa a coleira e sai sem se despedir, passando-lhe um sermão carinhoso. Mas desta vez foi diferente.

Não sei bem o que aconteceu. Em retrospectiva, penso que ela se atrasou dois ou três segundos na hora de puxar a coleira, tempo suficiente para o que o cachorro dela avançasse em cima do meu. Eu, de forma alguma, esperava aquele atraso, ela sempre tão diligente; ele, muito menos. Perplexos, nós dois esboçamos dois movimentos contrários: eu apertei o botão para encurtar a coleira, a fim de afastá-lo do agressor, ele contra investiu, alongando-a ainda mais. Nesse momento, as coleiras se entrelaçaram, os cachorros levantaram as patas dianteiras um contra o outro e se engalfinharam. Nós tentamos desfazer o emaranhado dos fios, trocando as coleiras de mão em mão, mas já era tarde, eles já estavam atracados, mordendo-se, machucando-se, um tentando dominar o outro, revezando-se na supremacia da luta.

Aquilo era inédito para mim, eu nunca tinha presenciado uma briga daquelas e não sabia o que fazer. Algumas pessoas pararam para ver, o barulho que eles faziam atiçou os cachorros à volta e, em pouco tempo, ouvia-se um latido coletivo de matilha. Eu gritava pedindo socorro, a moça olhava paralisada, tive a certeza de que, também para ela, era a primeira vez. Um rapaz pegou um pedaço de pau, começou a cutucar o bolo que os dois animais faziam. Eles se separaram por um momento. O cachorro da moça veio parar a poucos metros de mim. Eu, com medo de um novo ataque, instintivamente, chutei-o. Esse meu gesto a fez sair do torpor e se mover em nossa direção, transtornada. Antes que ela nos alcançasse, eu consegui recuperar a coleira do meu e me afastar do local. Em um gesto automático coloquei-o no colo. Saímos rápido, ouvindo às nossas costas, todo tipo de impropério. Só então o ajuntamento se dispersou, uns rindo, outros culpando um de nós quatro.

Na caminhada apressada de volta para casa, pela primeira vez, o caramanchão perdeu sua capacidade de induzir à abstração e senti o desnível do calçamento, percebi uma sujeita ou outra no caminho, reparei que alguns postes estavam com a lâmpada queimada, notei o ruído dos carros próximos. Em compensação, pela primeira vez, também, prestei atenção naquele cachorro, que, apesar de pacato, calmo e abnegado havia lutado bravamente. Nessa hora pensei que ele puxara a mim: era de paz, mas não se deixava intimidar. Esse sentimentalismo durou pouco. Logo me lembrei de que ele não era meu e que não tenho animal de estimação porque não gosto de animais.

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