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Completa, por favor

Pedro Pantoja
Subplano
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6 min readJul 7, 2018

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O próximo passo era óbvio para Vinícius, fora uma decisão leve, tão leve quanto o galão vazio na mão direita, e entrar na fila com ele pareceu a coisa mais sensata a se fazer naquela manhã. De que forma chegaria na rua de Luiza sem gasolina? Não chegaria. Para ele o preço do litro era irrelevante, como era o tempo gasto para consegui-lo. Nada mais do que uma corrente de necessidades: fila, combustível, carro, Luiza. A linha de automóveis na sua frente talvez compartilhasse de uma nitidez similar, muito improvável que fosse a mesma. Ele estava a pé, atrás de uma caminhonete preta, pintada com barro seco. O avanço do comboio era tão lento que ele encontrou na avaliação do veículo uma forma de enganar sua pressa. Falsas ocupações que distraem a mente, ela tira a tampa do galão e a aperta de volta, ela procura conexões entre os caracteres da placa e o adesivo PRESENTE DE DEUS no vidro traseiro, alguma coisa que justifique a benevolência do poderoso que colocou mais um carro na fila. Deve haver um versículo em um dos testamentos que comente sobre essa situação inusitada do país. PAI 1427, ou Paulo 14 traço 27. Se tivesse acompanhado Luiza em qualquer uma das missas de domingo, saberia. Mas ele preferiu não ir. A fila andou.

Depois de uma dúzia de passos em direção ao posto, Vinícius olhou para seu pulso esquerdo, pelado. Saiu cedo com sua convicção. Deixou o relógio, estilhaçado sobre o criado-mudo. Não vai mais precisar dele. Nem era o dono. Não foi um presente de Deus, foi dela, e como ela, não lhe interessava mais. A pele onde ficava a pulseira estava menos preta que o resto do braço, com um círculo mais claro no meio, um círculo permanente. O presente divino buzinou. Vinícius deixou o galão na caçamba vazia da caminhonete e foi até o motorista. Era uma senhora. Estava ali há quatro palavras cruzadas. Fique tranquilo, Deus sabe o que faz, e na velocidade divina vai iluminar os caminhoneiros. Ainda perguntou se Vinícius sabia um sinônimo de cinco letras para fogo. Pensou. Disse “chama”.

Isso completou a coluna vertical que restava. A força com que ela traçou a última perna da letra A quebrou a ponta do lápis. E do papel foi para o apontador. A mulher nem percebeu quando Vinícius sentou na porta da caçamba. O peso fez o terço amarrado no retrovisor chacoalhar, ele olhou para trás e viu a pequena cruz entre as pernas do E em DEUS. Luiza tinha um desses, de madeira de demolição.

A fila seguiu. Virou o pescoço e viu um taxista, empurrando o carro do lado de fora, uma mão no volante, a outra na janela. A caminhonete avançou e o táxi também, e depois todo o resto, um metro ou dois. A linha se esticava para bem longe do táxi, ia até desaparecer no outro posto. Bloqueava a entrada do concorrente, já sem combustível. Vinícius bateu a mão nos bolsos, sentiu a carteira, e o isqueiro no outro. O catou debaixo da cama. Era seu, não poderia deixa-lo em casa com o relógio. O maço não sobreviveu a madrugada. Foi ele ver o sol pela garrafa de 51 para ir direto ao posto, sequer pensou em comprar mais. O taxista entrou no sedan, puxou o freio de mão. Sumiu depois de inclinar o banco.

As nuvens corriam atrás do sinal apagado no teto do táxi. Um enorme pato voava leste. Naquela velocidade, só ele e dois abacates. Nenhum outro veículo em um raio de trezentos metros os acompanhava. Abandonar a fila significava tropeçar na imobilidade e essa incerteza não cabia em Vinícius, não naquele domingo. Não iria até a rua de Luiza sem gasolina. Estava lhe fazendo um favor. Uma surpresa. De que outra forma ela iria até a igreja? Logo precisaria. Todos têm lugares para ir.

O sol desapareceu. Vinícius subiu o queixo e viu o teto do posto cobrir a caminhonete, parando na altura dos faróis do táxi. Ele pegou o galão e saltou. A senhora segurava um caderno de palavras cruzadas para o funcionário do posto, ambos balançando a cabeça, alguma palavra fora do lugar atrapalhava as demais. O motoqueiro na frente da caminhonete partiu, abastecido. Para desviar da motorista, Vinícius atravessou pelo outro lado. Parou na janela do passageiro e com a mão esquerda, a do relógio, arrancou o terço do retrovisor. Um movimento rápido. Foi direto pro bolso de trás da calça. A dona se apoiava na lataria para escrever, não viu. Ela já tinha seu presente. Para Vinícius ainda faltavam dois elos na corrente, etapas para as quais rapidez não teria qualquer utilidade. Incontáveis carros continuavam parados, esperando a sua vez. O pato e os abacates haviam sumido. Mas seu galão estava cheio. Pesados vinte litros. E assim que o taxista bateu a porta do outro lado da bomba, Vinícius soube quem poderia ajuda-lo a carregar todos eles. Só restava Luiza.

A semana estava começando muito bem. Melhor a cada resolução. Vinícius pousou o galão ao lado do meio-fio que ficara no pneu do táxi e se inclinou pela janela aberta. Quanto uma corrida até o Grande Colorado?, perguntou. Sessenta pila. Ele puxou a carteira do bolso e a deixou com motorista, mais leve sem ela. Botou o cinto, conferiu os bolsos e apertou o galão entre os dedões que se derramavam para fora dos chinelos. O cheiro da gasolina se misturava ao do pinheiro de borracha que balançava no retrovisor. Nenhuma religião aparente ali. O mais próximo da madeira de demolição eram as bolotas que cobriam o assento do seu condutor, uma malha de esferas conectadas para massagear a lombar de quem se joga sobre elas. Separa-las parecia impossível. Essa vontade morreu no primeiro retorno.

Foram dezenove quilômetros de ignífugo silêncio. O motorista bem que tentou. Sobrava espaço no veículo para comentários acerca da crise, ou da estocagem preventiva nos mercados, ou sobre as filas nos postos que ficavam para trás. Nada disso ainda significava alguma coisa para Vinícius. Sua fila andara. O combustível balançava entre seus pés, reclamando dos buracos no asfalto. Ele mesmo já estava em um carro, um grande pinho de alumínio. Ao passar pela rodoviária, o homem sugeriu o ar condicionado. Ofereceu mudar a estação no rádio, chegando na ponte do Bragueto. Nada.

Também não houve despedida. Sequer havia necessidade. O pneu cantou na portaria do condomínio, em sentido oposto, como que para impedir Vinícius de acessar o porteiro Cláudio. Um baixinho redondo, preso num terno preto. Eles se conheciam, por intermédio de Luiza. Foi o galão que o colocou para dentro; de certo um presente. Ingresso raro, tesouro. Tão escasso que embaçou os óculos do porteiro, tão raro que ele não viu o pulso vazio de Vinícius, ao acenar em agradecimento. Virou na primeira rua à direita.

O quarto de Luiza era o único com varanda, no segundo andar da casa amarela. A atalaia da princesa, que tinha todo o segundo andar para si e somente si. Com visão privilegiada da rua. Cabia à ela mirar em quem tocava o interfone. Porém quando Vinícius descansou o galão no asfalto, o vidro das portas lacradas refletia o sol, o mesmo que ele viu nascer na 51 vazia e se esconder atrás do posto. Agora ele queimava seu pescoço. Começava a descer. Ele acompanhou Vinícius até a grade do seu destino final, e por isso se dava por satisfeito. Tudo fora cumprido e nada satisfeito. Tudo estava claro, mas em breve deixaria de estar. E que surpresa ela teria. Dadas as circunstâncias, era o presente perfeito. Os presentes.

Vinícius puxou o terço do bolso. Sentiu seu braço maior, estirado pelos litros. Suas mãos se uniram, o terço entre elas, bastou dois segundos para o braço maior se alavancar como uma catapulta e botar o terço contra o sol no vidro. E do vidro foi para o chão. Não pertencia mais à Vinícius.

As portas se abriram. Ele viu Luiza ressurgir na varanda, ainda com cortes no olho esquerdo, e catar o lixo do chão. Pelo véu que escorria nos seus olhos ele viu ela olhar de volta, por cima da grade, confusa.

Ela viu o pulso sem o relógio, que ele quebrou na cara dela. Ela viu ele encharcado, e o galão voando para dentro do jardim do vizinho, e o isqueiro aceso, que ela tantas vezes escondera debaixo da cama para que ele parasse de fumar.

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Pedro Pantoja
Subplano

na capoeira me chamavam de 'derrotado'. hoje sou escritor.