Roberta Sorge em Unplash.com

Decibéis

Selena Carvalho
Subplano
Published in
5 min readJul 17, 2018

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Nós íamos sempre lá, no Bom Demais. Era um barzinho pequeno, mas rolavam uns shows fantásticos, lembro muito da Cássia Eller, de uma música que ela cantava metade com aquele vozeirão, meio menino, metade com vozinha e trejeitos femininos. Ela começava de um jeito, se virava um pouco e, quando voltava, estava de outro. O público enlouquecia, não cansávamos nunca de ver isso. Ela ainda nem era conhecida no resto do país.

Gosto de contar essas histórias para minha filha, ela finge que esquece que já as ouviu outras vezes e me faz detalhar de novo as noitadas da minha juventude na Brasília antes do surto. Ela me faz perguntas sobre o ambiente, os frequentadores, os músicos, os amores que vivi e as brigas que presenciei naquele bar, para atiçar a minha memória, adiando ao máximo o momento em que direi: — E o mais incrível é que ele ficava na 706 norte! Ela, então, balança a cabeça com perplexidade, quase incrédula, como diante de algo que sabe que existiu, mas que tem dificuldade de imaginar.

Na época em que ela nasceu, já não havia bares em Brasília. Eles foram fechando aos poucos, um a um, antecipando nossa idade adulta e nos mergulhando na quietude. Ninguém consegue lembrar qual foi o primeiro, nem mesmo quem estudou o fenômeno pôde identificá-lo, mas esse é dado estatístico sem relevância, pelo menos para nós. Para os frequentadores, o que importa é que, com mais ou menos luta, todos acabaram sucumbindo. Quando nos demos conta, não tinha sobrado nenhum.

As reclamações com o barulho começaram com dois velhinhos que moravam na Asa Norte. Naturalmente, por causa da idade avançada, ambos foram acusados de invejosos e egoístas. Tivessem os dois o espírito mais combativo, ali teria se iniciado a guerra que depois se instalou entre os bares e os moradores do Plano Piloto. Eles, no entanto, há muito vinham aprendendo que, para atravessar os anos, é preciso resignação, por isso, apenas trocaram um olhar conformado e voltaram para casa se autocensurando por tentar impedir a diversão dos jovens.

Em seguida foi a vez das mães dos bebês. Sem combinação prévia, elas passaram, dia a dia, a se dirigir aos bares vizinhos a seus prédios alegando que seus filhos não conseguiam pegar no sono, agitados com a música alta. As crianças, ao que parece, têm mais influência e merecem mais atenção que os velhos, e, assim, alguns se dispuseram a fazer uma pequena concessão e baixaram o volume, mas só os com música eletrônica porque naqueles tempos ainda se tinha pudor de pedir aos músicos que cantassem mais baixo, em tom diferente do seu, ou de sugerir que as guitarras e as baterias se contivessem nos seus solos.

Somente quando o incômodo atingiu o homem médio, aquele na faixa dos quarenta anos, pai de família, que não podia ser acusado de invejoso, muito menos de ter a sensibilidade aguçada como a dos nenéns, que estava apenas voltando da repartição, cansado, querendo descanso e televisão, foi que a questão começou a ser vista como problema. De homem médio em homem médio, o desconforto com o som dos bares assumiu contornos de epidemia, alastrando-se pelas duas Asas, abarcando o Sudoeste e a Vila Planalto, e chegando até aos Lagos.

Os proprietários se alarmaram quando os incomodados, agora em número relevante, os procuraram com a exigência de providências contra a poluição sonora e tentaram contemporizar: um dia com música, outro não, um cantor de bossa nova em vez de um roqueiro, trios no lugar de bandas. Essas medidas paliativas chegaram a agradar uma minoria, podiam até ter surtido efeito a longo prazo, mas veio a descoberta da doença, tornando qualquer acordo inviável.

Alguns falaram em hereditariedade, outros em contaminação, nunca se chegou a um consenso sobre a sua causa e até uma teoria sobre particularidades do ar de Brasília que desregulariam a propagação das ondas sonoras foi levantada. O fato é que depois do primeiro laudo acusando a hipersensibilidade, a ideia de fazer o teste audiológico se espalhou e em pouco tempo dois terços da população se dizia portadora da doença.

As questões de saúde geram cumplicidade e, na falta de esperança de cura, os doentes se mobilizaram para buscar soluções para minimizar o tormento, que não podia mais ser atribuído à intolerância, respaldado que estava por resultados médicos. Os bares foram o principal alvo. A primeira medida adotada foi a criação da Associação dos Moradores com Hipersensibilidade Auditiva de Brasília Contra o Barulho e a Favor do Sossego. Logo depois vieram o boicote, os protestos e o ajuizamento de ações judiciais. Tudo isso era previsível. O que ultrapassou a nossa imaginação foi o apoio que o movimento conseguiu dos políticos, alguns acometidos do mal, outros, com pretensões eleitoreiras, e a promulgação da Lei do Silêncio, estipulando o limite de intensidade do som em cinquenta e cinco decibéis.

Os bares demoraram a assimilar o rigor da lei e foram autuados, multados, interditados. Nós demoramos ainda mais a aceitar o irreversível e continuamos vagando de quadra em quadra, sempre à procura de novos lugares, olhando, atordoados, a cidade dormir cada vez mais cedo. Com rancor, vimos a troca da noite pelo dia; solidários, aderimos ao último ato de resistência que criou novos espaços e horários, happy hours, sambas no final da tarde, chorinhos pela manhã. Em vão. A Associação, com seu número cada vez maior de simpatizantes, conseguiu, com perseverança, a todos calar, e o silêncio abocanhou os bares, se instalando depois também em nossas casas, embrenhado em cada vão de Brasília.

Eu me pergunto se tenho sorte ou azar de não sofrer da doença. Fiz exames, audiometrias, e nenhuma disfunção ou alteração no meu sistema nervoso auditivo foi detectada, segui incólume por esses anos todos, sem uma dor de ouvido sequer. Fui poupada dos seus sintomas, mas afetada por seus desdobramentos, principalmente quando ela atingiu o meu marido, companheiro de farras varadas madrugada adentro.

Vivemos em casa, desde então, o reflexo do embotamento exterior. A quantidade de decibéis que erámos capazes de suportar, nisso residia nossa cumplicidade. Hoje, não recebemos mais visitas porque elas são ruidosas, pouco conversamos porque minha voz soa estridente, evitamos o vinho porque ele nos remete à folia desmedida. Meu marido me pede para tirar os sapatos assim que chego em casa, para evitar o barulho dos saltos na madeira, e eu, secretamente, peço que ele se aborreça comigo e grite só mais uma vez.

Minha filha não contraiu a hipersensibilidade até agora, conseguiu sobreviver aos muitos “shi!”que ouviu do pai desde que começou a balbuciar e segue adiante sem grandes dramas. Muitas vezes colocamos nossos fones de ouvido e dançamos uma em frente à outra, fazendo esforço para que só o nosso corpo se movimente e de nossa boca não saia resquício de som. Ela consegue com mais facilidade porque não conheceu a vida de outra forma. Para mim, esses momentos, embora tragam lampejos de normalidade, muitas vezes não são suficientes. Então, puxo-a pelo braço, pego alguns CD’s antigos e vamos passear de carro, sempre saindo do Lago Sul, passando pela barragem, e voltando pelo Lago Norte. No ponto mais ermo desse caminho, aumento o som ao máximo e soltamos a voz até ficarmos saciadas: “Contra todos e contra ninguém/O vento quase sempre nunca tanto diz/ Estou só esperando o que vai acontecer”. Ê, ê!

Essa música e todas as outras ficam na minha cabeça até muito tempo depois de voltarmos e por dias e dias sigo murmurando: “Tudo errado mas tudo bem”.

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