photo by Filippo Ascione

Demônia

Juliana Holanda Borini
Subplano
Published in
3 min readOct 14, 2018

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A mulher desceu do ônibus, equilibrando bolsa, sacolas e livro, quando a senhora puxou com força seu braço e quase a derrubou. O livro caiu. Num impulso- reflexo, empurrou a senhora que desabou sentada na calçada. As pessoas, nas suas esperas, permaneceram imóveis. A velha chorou. A mulher puxou a senhora de coque branco descabelado e aparência frágil do chão, dando-lhe a mão livre.

–Obrigada, muito prazer, Demônia. — disse a senhora.

–Eu sou demônia? Você quase me derrubou! — a mulher respondeu enquanto apanhava o livro.

–Demônia! Demônia! — a idosa gritou e balançou a cabeça negativamente.

Um pedestre que vinha caminhando para a parada, ouviu os gritos e perguntou indignado:

–O que você fez para essa senhora?

–Eu não fiz nada, ela é louca, quase me derrubou quando eu desci do ônibus, me puxou pelo braço.

–Eu vi de longe ela no chão e você levantando rápido para ninguém ver. Você derrubou. Maltratando uma velha, é uma demônia mesmo.

Outros se juntaram à indignação do moço e começaram a gritar contra a mulher.

–Que absurdo! Empurrar uma senhora de idade! Tem vergonha não?

–Demônia mesmo. Coisa ruim.

–A senhora deve só ter trombado nela e derrubou o livro, eu vi o livro no chão.

–Tudo isso por causa de um livro, Deus me livre.

–Venha, senhora, sente aqui, se acalme.

–Isso é agressão. Tem o Estatuto do Idoso.

Quem não se importava com a velha caída no chão passou a querer prender a mulher.

–Vai ficar aqui, até a polícia chegar. — o dedo em riste raivoso perfurou três vezes o ombro e intimidou qualquer tentativa de saída.

O povo foi se juntando.

–Eu tive medo dela, ela que me puxou, foi num impulso. Eu ia cair. — justificava-se a mulher.

–Impulso de maldade, demônia! — gritava uma jovem enquanto filmava com o celular a confusão e subia no seu ônibus que chegou.

–Gente, pelo amor de Deus. Ela tem problemas, claramente. Me puxou e eu quase caindo a empurrei, foi instinto, não queria fazer mal.

–Ainda quer passar a senhora por doida, é muita falta de Deus mesmo.

–Eu a ajudei a levantar, aliás, fui a única. Eu tava descendo, cheia de coisa, só vi alguém me empurrando, empurrei de volta, foi um reflexo. Ninguém nem se mexeu.

–Ai, foi um reflexo. Sei. Covardia, vê se essa pobre magrinha ia ter força de te derrubar, conta outra.

–Tá querendo se livrar, é. Vai não, minha filha. Tem o estatuto do idoso. Respeita os cabelos brancos da senhora.

À medida que um ônibus chegava e outro partia, os rostos que cercavam e diziam coisas contra a mulher remodelavam a massa furiosa de gente. A velha estava fora do círculo raivoso, tentando limpar uma mancha de seu vestido puído.

No momento em que se viu cercada por uma amontoada onda de calor, gritos, dedos agressivos e empurrões, a mulher sentiu que a multidão pulsava tanto ódio que poderia agredi-la. Correu, abrindo caminho com o próprio corpo, debatendo-se, usando as sacolas como escudo até a rua quando um ônibus que passava a pegou em cheio. O freio sem tempo causou uma pancada seca que silenciou as pessoas. O livro caído entre os pés dos cidadãos foi pisoteado por uma bota suja de lama que manchou a página 47. As sacolas espalharam-se embaixo do ônibus. A mulher estendida no asfalto, ainda segurando a bolsa, mas sem um sapato, era fixamente vista pelo motorista do ônibus que não conseguia se mexer e ainda apertava as mãos suadas no volante. A velha passou a apertar a mão de cada estático na multidão, olhando nos olhos e dizendo: “Obrigada, muito prazer, Demônia”.

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