Depois do aniversário

Laeticia Monteiro
Subplano
3 min readJun 6, 2018

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85 anos de tanta nostalgia que nem sabia mais o que fazer com ela.

Em algum momento os arquivistas cerebrais ficaram tão cheios que decidiram parar de trabalhar, tiraram tudo das gavetas e abriram todas as janelas para deixar arejar até que só restasse ar.

Já ele, sentado atrás da mesa, enfiava garfo após garfo de comida na boca. Entretanto, ao contrário do que se espera, apenas mascava a comida antes de devolvê-la em um guardanapo ao lado do prato, um chiclete do qual só extrairia o gosto.

85 anos de tanta comida que nem sabia mais o que fazer com ela.

- Engolir, é para engolir, está macio, bem cozidinho, derretendo. Você consegue. Insistiam aqueles ao seu redor, mas era inútil. Ele persistia em sua mecânica própria de exploração.

Depois da refeição, vagava pela casa acompanhando da fanfarra metálica do andador. A cada um que encontrava perguntava:

- Quanto tempo eu vou ficar aqui?

- ‎Você mora aqui. Vai continuar aqui.

- ‎E que que eu faço agora?

- ‎... Você pode ir pra sala e sentar pra ver TV.

- ‎E depois?

- Sei lá, pode ler um livro.

- E depois?

- ‎Já tá de noite, então vai ser hora de dormir.

- ‎E depois?

- ‎Depois você acorda.

- ‎E aí? O que que eu faço?

- ((Faz tudo de novo porque a vida não tem sentido.)) ‎Vai pra sala vai. Preciso terminar isso daqui, não tenho tempo agora.

Insatisfeitos, um seguia ecoando pelo corredor e o outro ficava encarando vazios.

85 anos de tanta vida que nem sabia mais o que fazer com ela.

Na sala, atrás da grande mesa de madeira escura com mais de cem anos, ricos entalhes e rostos feitos à mão, quiçá por escravos, sentava-se o velho. Além dos cabelos prateados, o que denunciava sua idade não eram as muitas rugas a preencher a face, não. Era o vazio. Era falta que se percebia nas faces descarnadas que um dia estiveram repletas e agora pendiam murchas sobre a estrutura óssea.

À sua frente, um prato de plástico azul, de ar infantil, repleto de comida. Uma sopa grossa com arroz, feijão, carne, legumes e bastante caldo. Em sua mão, uma colher de cabo claro, o tamanho exato da boca, não tão grande quanto uma colher de sopa, nem tão pequena quanto uma de sobremesa. Ao lado do prato, um guardanapo em que jazia cada vez mais comida. E se não fosse pela falta do caldo, talvez nem desse para perceber qual já tinha entrado e qual já tinha saído da boca retraída.

Depois da refeição, pegou o andador e saiu com passos frágeis e tortos em busca de conselho ou talvez comando. Esteve na cozinha, muito abarrotada, mas decorada com belos azulejos em tons de azul e creme. Passou de novo pela sala dominada pela opulência da mobília grande demais. Parou um instante em um quarto de móveis claros. Seguiu pelo corredor não muito longo, adornado de quadros óleo sobre tela e chão brilhante. Encontrou mais um quarto cuja luz estava acesa e, com o andador meio pra dentro e ele mesmo meio pra fora, tentou mais uma vez.

Mas perguntou somente a pessoas erradas. Cada uma à sua maneira.

- Quanto tempo eu vou ficar aqui?

Um arrepio desceu as costas. Será que falava da casa ou do mundo?

- ‎Você mora aqui. Vai continuar aqui.

- ‎E que que eu faço agora?

Uma faca fina no peito.

- ‎... Você pode ir pra sala e sentar pra ver TV.

- ‎E depois?

Que golpeou.

- Sei lá, pode ler um livro.

- E depois?

Uma vez.

- ‎Já tá de noite, então vai ser hora de dormir.

- ‎E depois?

Mais uma.

- ‎Depois você acorda.

- ‎E aí? O que que eu faço?

Mais tantas.

Uma pausa e uma dispensa no mundo externo.

Lá dentro, uma rede de grossos anéis de chumbo se desprendeu do teto e caiu sobre o ânimo, levando-o ao chão, prendendo-o sob seu peso. Contemplou cada curva de cada anel, cada volta igualzinha que tecia sua prisão.

E depois? E depois? E depois? Cada curva ecoou. Era como conversar com a própria mente, ver seu próprio caos manifesto no mundo.

Tão longe dos 80 e já não sabia o que fazer.

Um velho anda pela casa pedindo ajuda à mulher e aos filhos que não sabem como ajudar.

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