Entalhe

Juliana Holanda Borini
Subplano

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Maria Aparecida se deparava com uma pessoa muito mais velha quando passava por qualquer espelho de sua casa. Foi criada pela mãe para ser dona de casa prendada, esposa amável e mãe cuidadosa. Casou-se aos dezoito anos com um jovem, poucos anos mais velho, criado pelos pais para ser provedor do lar responsável, esposo protetor e pai respeitado. Dez anos e três filhos depois daquele sim diante da família e de Deus, uma vez por semana, ela se escondia no guarda-roupa e, entre os seus vestidos sóbrios e as camisas cheirosas e muito bem passadas do marido, descansava. A casa não notava o seu sumiço, a não ser que alguém precisasse de algo. Mamãe deve ter ido na feira. Cidinha deve ter ido na igreja. Dona Cida deve ter ido no mercado.

A jovem senhora, vestida com elegância e com cabelos bem penteados, ficava horas dentro do armário. As portas de madeira maciça guardavam, naquele pequeno espaço escuro, certo alento. Às vezes chorava, às vezes não, tudo o que ela sentia, sem pensar muito bem no que era, até adormecer. Magra e pequena, cabia com perfeição naquele lugar ao dividi-lo com o cheiro das roupas limpas. Ela ainda fechava o quarto antes de se fechar dentro do guarda-roupa. Guardada naquela caixa, ela vivia o momento mais sereno e aguardado, quando se recostava e se tornava parte da madeira.

A primeira vez, ocorreu após preparar o almoço. Luzia limpava a sala, ela cortava a carne enquanto o arroz cozinhava e as crianças chegavam da escola. O marido telefonou e perguntou se tudo estava em ordem. Sim. Amanhã estou de volta. Tudo normal, sem novidades. Ela voltou para cortar a carne e, sem muita atenção ao que fazia, cortou o dedo. Sangrou e ela gritou. Luzia correu, as crianças choraram. Estava tudo bem, logo ia parar de sangrar, mas não parava. Sangues se misturaram na tábua num vermelho único. Amarrou um pano em volta do dedo e apertou. As crianças voltaram para as brincadeiras. Luzia voltou para a limpeza da sala. Maria Aparecida voltou para a tábua de carne, mas olhava diferente para a faca. E se tudo acabasse em um minuto?

Desligou o fogo do arroz, deixou os bifes cortados e foi para o quarto sem ser vista. Fechou a porta e se sentou na cama. Mamãe, mamãe, mamãe. Dona Cida, Dona Cida. Cadê ela? Cadê? Ela abria a porta do armário para pegar uma blusa limpa sem respingos de sangue quando os gritos se tornaram mais fortes. Mamãe, mamãe, mamãe. As crianças brigavam por um brinquedo e exigiam a presença da mãe para decidir o embate. Choravam, culpavam um ao outro, gritavam. Seu idiota. Sua chata. Vai ficar de castigo. Vai ficar você. Mamãe, mamãe, mamãe. Dona Cida, esses meninos vão se matar. Cadê a senhora?

Quando ela ouviu a aproximação de Luzia, não pensou duas vezes e entrou no guarda-roupa. Ficou lá quietinha, quase sem respirar, encostada na madeira. Depois de alguns instantes, um silêncio. Respirou e chorou baixinho. Dormiu. Acordou mais de uma hora depois. Não queria sair, mas abriu a porta e a luz forte da tarde anunciava que o dia continuava. Caminhou mais leve pelo corredor até chegar à sala. As crianças assistiam TV após sua guerra mundial. Ela teve pena de Luzia que terminava de lavar a louça do almoço. Vai embora o resto do dia. Eu cuido do resto. Tá tudo bem, dona Cida? Tá sim. Vai para tua casa, Luzia, mas venha amanhã cedinho.

Enquanto guardava os pratos, desamarrou o pano e viu que o rasgo no dedo tinha um desenho bonito de vermelho ressecado. Meu Deus, perdoe o meu cansaço. Fez o sinal da cruz para suas santas no oratório em cima da cristaleira e rezou uma Ave Maria. Regou as plantas e colheu algumas flores do quintal para por em um vaso. Reparou na nova pintura da casa em frente. Lourdinha enlouqueceu, que amarelo mais forte, se ao menos fosse mais clarinho.

Um novo dia. Um velho dia. O guarda-roupa anestesiava todos os seus pensamentos. Era difícil abrir a porta, ver a luz e sair para a repetição das muitas horas correntes. Luzia, limpa isso direito. Menino, deixa o teu irmão. Quando você volta, não era hoje? Madeira e silêncio, escuro e cheiro de limpeza, por alguns instantes, renovavam-lhe a disposição. Maria Aparecida empurrava um dia após o outro com a barriga e com desencanto até mais porta cerrada e quietude. O armário lhe ensinara que dividir a luz do mundo do escuro das palavras que faltam –e estas estão em maior número- era questão de sobrevivência. Ave Maria. Ave Maria. Já era Dezembro. E a última vez que ela desapareceu foi numa noite de quarta em que colocou os filhos para dormir. Só foi encontrada por Luzia, no dia seguinte, recortada no fundo do armário, punho entalhe na madeira.

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