Entrevista de emprego

Laeticia Monteiro
Subplano
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4 min readMay 5, 2018

Não dava mais para acreditar nas porcarias dos processos seletivos atuais. Que raios de pergunta era aquela? Como se não bastassem os clássicos narcisistas “Por que eu deveria te contratar?”, “O que você pode trazer de bom para a nossa equipe?” e “Qual o seu diferencial?”, como se alguém realmente dissesse a verdade.

E é claro que naquela ele também mentiu, não era besta.

- Qual é o seu antônimo? — desferiu, com um sorriso, o entrevistador engravatado de cabelos engomados.

Levaram alguns segundos para que ele conseguisse elaborar um “ineficiência, corpo mole, mau humor”, alargando assim o sorriso do entrevistador que logo o dispensou avisando que até o fim da semana Fred seria informado sobre a próxima etapa. Porque sim, havia mais de uma etapa para um cargo tão simples.

Na saída do prédio espelhado cujo foyer tinha uma decoração mais luxuosa que qualquer parte de sua casa, ou da de qualquer conhecido, sentiu que a cada poltrona de couro e quadro de bom gosto sua irritação crescia. Ao ponto que se pegou pensando nas respostas sinceras que daria para todas aquelas perguntas infames e se deteve naquela última, a mais descabida. Onde já se viu.

A ruminação não o levou muito adiante, embora seus pés já tivessem cruzado toda distância até a parada, aproveitando-se do caminho de terra vermelha desnudado pelos pés de outrem. Parecia-lhe tão difícil definir um antônimo para si mesmo pelo fato de que não sabia sequer quais eram seus sinônimos. Sentia-se um problema complexo cartesianamente dividido a tal ponto que se perdera a noção do todo em vez de encontrar a solução. Um quebra-cabeças embaralhado dentro de uma caixa preta e sem qualquer imagem de referência. Pior que isso.

Pois sequer tinha certeza de quais peças daquele quebra-cabeças eram de fato suas. Identidade, concluiu ao entrar no ônibus agradecido pelo alívio do sol em sua nuca, não tinha outra além do registro geral e do currículo inexperiente. Frederico Galarza, bacharel em administração.

Talvez se pensasse em seus gostos e desgostos, em seus ideais, em seus pressupostos. Só que do catártico azedo do limão (a avó amava aquela dorzinha que ia da bochecha às orelhas) até o barulho de lixas de unhas sendo utilizadas (quanto mais finas as unhas mais seu primo agonizava), Fred percebia que nada seu era de fato seu. Nada era de fato eu.

Espremido entre uma moça com uma grande maleta de maquiagem cobertas de spikes a furar suas pernas e um homem barbudo de axilas tão particularmente fétidas que o odor acre parecia envolvê-lo num abraço pegajoso, dava-se conta de que nem precisava chegar aos pressupostos para saber que não passava de uma colcha de retalhos das pessoas que conhecera, da sociedade que o educara, dos tempos em que vivia. Bastava ver como seu próprio nome já não era próprio, já era vazio de qualquer autenticidade ou verdade.

Houve um tempo em que o homem caminhou pelos jardins maravilhosos e deparou-se com cada ser e elemento pela primeira vez. E, ali, naquele tempo, seu espírito e os das coisas se cruzaram estabelecendo um diálogo pleno, cada coisa no firmamento enunciando-se para que o homem a nomeasse de modo último e verdadeiro. Muitas coisas inclusive só se concretizaram com proclamação mística do verbo, pois naquele tempo o nome tinha o poder de manifestar.

Hoje não.

Será que algo de sua essência era manifestado ao chamarem seu nome? Frederico lá tinha cara de Frederico? Acaso, ele tinha personalidade de Frederico? O que fazia dele tão inerentemente Frederico? Nada. Eram os outros.

Para que mais ele precisava de um nome se não para que os outros, ao reconhecerem tal nome como diferente dos próprios, pudessem chamá-lo, defini-lo, castrá-lo? Por que ele deveria carregar o fardo daquele nome tão sem ele que tantos mais tão diferentes dele também carregavam? Seriam os outros Fredericos seus sinônimos? Ou seriam os Federicos e os Fredericks? Riu da idéia até que percebeu o olhar da moça da maleta de maquiagem sobre si. Endireitou as faces e entrou novamente na própria cabeça.

O homem se tornara tão surdo e a língua tão fantasmagórica que até mesmo o nome, aquilo que de mais forte deveria haver, já não passava de nada. Sequer servia para definir uma identidade. Sentia-se amorfo, com limites indetermináveis. Nem mesmo pela demarcação de seus desvios do padrão conseguia encontrar o que era aquilo que fazia com ele fosse ele e ninguém mais. Como dizer o que não era Frederico para perceber o que era Frederico quando Frederico era todo outros? Uma colcha de retalhos na melhor hipótese. Um Frankenstein na pior.

Um monstro, exatamente. Talvez fosse um monstro. Pensando bem, uma monstruosidade, uma aberração sem formato.

Um crescimento anômalo de células duvidosas que não se separava suficientemente do tecido no qual tivera sua origem, cujas bordas não se podiam precisar com clareza por mais que se tateasse a extensão do tumor. Sentia suas questões comendo o corpo de dentro para fora com voracidade, descaracterizando os lugares por onde passava e tomando para si o que não era seu. Um câncer. Se assim era, ele pensou, talvez seu antônimo fosse saúde.

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