Giulia

Pedro Pantoja
Subplano
Published in
3 min readAug 18, 2018
unsplash.com

O canudo na boca dela era preto. As unhas que seguravam o coco eram pretas. Ela botou a fruta na mesa e tirou o boné, um rabo de cavalo loiro levantou com ele e chicoteou a primeira vértebra do pescoço. Giulia não era loira. Todos os fios na cabeça eram pretos, como as unhas. Os olhos também. Se os dela não forem pretos, não é Giulia. Sentei no quiosque ao lado, a uma quadra de vôlei dela. Quatro silhuetas gritavam entre nós, chutavam areia para bloquear minha visão. Eu a vi pedir um segundo coco. Levantou o braço como que pedindo a bola para o corte na quadra. Giulia era fina como ela. Mas Giulia não tinha uma rosa tatuada no pulso. Nenhum de nós tinha marcas no corpo. Qualquer desenho de caneta deixava o padre Ivan furioso. Chegava com a cruz na mão, o pé segurava a porta sem tranca, e o bigode chamava pelo nome completo. Muitas vezes chamou o dela. Giulia tinha um olhar engatilhado para ele. Se não virar, não é Giulia.

Ela tinha Coelho em algum lugar.

Coelho Guaritá Satimo. Os outros recebera do pai, que depois da denúncia a deixou com os gatos. Na única vez que me convidou para subir, vi um branco na prateleira mais alta da parede verde escuro. O olho que tinha vigiava o preto, destruindo o sofá comigo nele. Margaridas desbotadas disfarçavam o estampado verde, mais claro, de onde eu não poderia sair. O parquet debaixo do tapete continuava para dentro do corredor até para na aresta de um retângulo de mármore, no último quarto. Vi o dedinho dela sobre a pedra desaparecer com o pé, no final do apartamento, me deixando com os gatos na sala. Mal restavam pétalas sob o preto. Aquelas bolas amarelas, imóveis, se escondiam atrás da pata que subia e descia com os mesmos fiapos brancos nas garras, uma sentinela do patriarca. As orelhas dele se ergueram quando chinelos batendo contra tornozelos se aproximaram de nós, até deslizar na madeira e parar. O preto se levantou e tapou os rasgos com a barriga. Giulia destrancou a porta. Ele fechou os olhos. Naquele momento procurei o branco, que me vigiava da prateleira.

Guaritá Coelho Satimo. Não. O pai não se escondia. Deixou três filhas para carregar o fardo. A mãe abateu o bicho quando pôde, mas proibira Giulia de fazer o mesmo. Não tinha idade suficiente.

Guaritá Satimo Coelho é cruel. Ivan não teria enfatizado o último nome tantas vezes se fosse assim. Ou teria? Ela jogou o coco na lixeira vermelha.

Giulia ergueu a rosa, agora com uma nota de cinco reais entre as unhas. Pousou o dinheiro na mesa e vestiu o boné. O cabelo loiro atravessou a fenda de velcro e se derramou pelo pescoço. Ela levantou, eu a segui. O vôlei e seus corpos besuntados ainda entre nós. A moça cada vez mais distante. Eu senti minúsculas pedras roçando nas minhas meias, e um cheiro quente de protetor solar em redução. Mais de uma quadra nos separava quando cheguei na rede, ela pisou no estacionamento e eu berrei:

GIULIA GUARITÁ SATIMO COELHO!!!!

Ela não virou.

--

--

Pedro Pantoja
Subplano

na capoeira me chamavam de 'derrotado'. hoje sou escritor.