Irina

Subplano
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Camila Cardoso*

André João Nascimento, 85. Natural de Três Cristas. Entra na história de Paulinópolis por ter sido o prefeito que governou a cidade por 12 anos, entre 1969–1981. Faleceu ontem, dia 31 de maio, no conforto do lar. Será velado hoje no Cemitério da Saudade, Bairro São João Batista. O enterro será às 11h.

O dia amanheceu enquanto Irina esperava pelo obituário do Jornal local. Havia dormido pouco, embora estivesse livre das madrugadas de cuidados com o Sr. André. Era uma noite de descanso, diferente de todas as anteriores nos seus últimos 10 anos na cidade de Paulinópolis, capital do estado, e ainda uma província de costumes. Estava lá em rota de fuga. E por lá ficou, nas madrugadas, na casa do Sr. André, respeitado senhor de Paulinópolis, que há 10 anos entortava os lábios para a direita e contorcia um dos lados do rosto enquanto balbuciava “Irina, irina”, estendendo com dificuldade as mãos desordenadas em direção aos peitos sempre escondidos de Irina. Há 10 anos Irina percorria aquela rua respeitada de casas de ex-prefeitos, silenciosa, noite funda. De dentro das casas quase se podia ouvir o desespero dos homens de respeito, seus corpos apodrecendo, os baralhos na mesa, acompanhantes de luxo que quase mais nada podiam fazer, suas senhoras e suas pastilhas para dormir. Apenas quando passava à frente da casa do Sr. Hipólito, vizinho do Sr. André Nascimento, Irina escutava silêncio. A demência do Sr. Hipólito o livrava dos tormentos do apodrecimento. Ele dormia como um bebê, os joelhos próximos ao peito, as mãos cruzadas sobre as pernas, na posição que Celeste, vizinha de Irina, o deixava antes de partir para dormir em sua casa.

Passava pela frente da casa do Sr. Hipólito. Grades altas protegendo um jardim que lhe custou caro, depois que um paisagista conhecido da região visitou aquela rua com a promessa de fazê-los ainda mais importantes. Vizinha à casa do Sr. Hipólito, a mansão do Sr. André, dois leões rugindo na portada do portão. Irina era de casa, tinha a senha, o controle e as chaves. Entrava sem acordar a senhora e suas pastilhas, que dormia sempre depois do noticiário da TV. Todo dia, sem atraso, Irina chegava na hora exata em que o cuco da casa, comprado na viagem ao exterior, saía por dez vezes, maçante, gritando cuco, cuco, cuco… Todos os dias, depois de Irina dar a sopa de ervilha ao Sr. André, quando ele adormecia, balbuciando “Irina, irina”, enquanto estendia suas mãos desordenadas à procura daqueles peitos escondidos, Irina prendia o cuco e só o libertava 15 minutos antes de ele sair pela manhã 7 vezes a gritar, cuco, cuco, cuco… Esse havia sido o único desvio de função de Irina naqueles 10 anos na casa do Sr. André. Na primeira semana de trabalho a batida insistente do cuco avisando sobre as horas intermináveis e arrastadas tornou a vigilância noturna de Irina uma tortura. Irina sabia que não poderia continuar ali se precisasse se haver com o tempo escoando. Na conta que fez, entendeu perfeitamente que valia aprisionar o cuco, e garantir a ela o trabalho na casa do respeitável Sr. André e suas mãos desordenadas. No fim do mês recebia um salário digno de um patrão respeitável.

Durante a semana levava para casa mimos da Sra. Nascimento, e entendia que aquela era a forma que a Sra. tinha por lhe recompensar suportar o corpo apodrecendo do Sr. André, e suas mãos, que em outros tempos procuravam pela Sra. Aquelas unhas sempre por aparar, as cutículas feitas naqueles dedos curtos, repugnavam a Sra. Nascimento e suas pastilhas. “Irina, tome aqui esta geleia”, falava a Sra. em tom constrangido. “Ela já foi aberta, o Sr. André não gostou, mas posso garantir que ela é de ótima qualidade. Leve com você”. E com a voz entre a ternura e a obrigação, repetia: “Você é tão boa conosco e tão trabalhadora. Não sei o que faria sem você aqui nestas madrugadas tão longas.” A Sra. aprendeu a suportar os tempos das mãos do Sr. André, escutando as batidas do cuco, que a lembravam todos os dias que às 22h o tormento acabava, quando então ele adormecia com os goles de uísque. Até que, há 10 anos, o corpo daquele homem desabou no banheiro estilo imperial da casa. E os azulejos com decorações douradas nada fizeram para conter aquela queda. Assistiram impassíveis um corpo de 90kg caindo sem elegância. Desde então, Irina apareceu na vida da Sra. Nascimento, chegando implacável à sua casa às 22h. Desde então, Sr. André não caiu mais em sono com suas doses de uísque.

“Boa noite, Sr. André, o senhor passou bem o dia?” Irina repetia em automático todos os dias. As pastilhas recomendadas pelo médico provocavam certa insônia no Sr. e a chegada de Irina o animava a ficar acordado por mais duas horas exercitando a coordenação de seus braços até os peitos de Irina, enquanto Irina trocava suas fraldas sujas, vestia seus pijamas de seda, tratava as feridas que se alastravam na pele fina, exercitava seus dedos, suas pernas, seus braços que se entortavam mais e mais, ano a ano. À meia noite Sr. André sucumbia ao sono. Nem sempre era bem-sucedido ao alcançar os peitos escondidos de Irina. Nessas noites tinha sono agitados. Sonhava Irina com outros homens. Tentava desvendar os segredos daquela mulher bela e sombria de altura mediana e pouca cintura. Nos sonhos, Irina o fazia lembrar de suas viagens de negócios na prefeitura, as reuniões entre homens na luz baixa dos bordeis. Mas Irina escondia seus peitos. E embora escondidos, Irina não lhe negava a tentativa de alcança-los. Aquilo confundia o Sr. André, que nunca fora confundido antes, daquele modo, nas reuniões entre os homens de política.

Naquela manhã Irina havia dormido em casa, depois de 10 anos. Seu quarto conjugado com a cozinha, as janelas abertas para a linha ferroviária, as luzes dos trens que invadiam o cômodo de hora em hora. Irina tentou dormir. Nas primeiras horas da noite caiu em um sono de quem se rende. Quando o trem invadia com sua luz cada canto escondido do quarto, o sonho de Irina se convulsionava. Ora sentia a contração do parto em horror. Ora as mãos errantes alcançavam seu peito. Ora era ela quem morria sufocada. Na terceira hora de sono, Irina já havia desistido. Sentou-se de frente para a janela aberta naquela noite de muito calor e muito cimento, esperando o dia amanhecer e o jornal local chegar.

A camisola puída e em desuso a lembrava o cheiro da fuga. Os chinelos se arrastando no assoalho enquanto buscava água na torneira aguçavam seus ouvidos praquela longa tarde quente que havia ficado no passado. — Manhê, manhê, mã… Ouvia a voz do menino na cozinha da casa de interior. E os chinelos andavam em direção contrária. O pote de comida decorado com sapinhos coloridos caiu no assoalho. E os chinelos andavam em direção contrária. Quando a encontraram estava desacordada na cama, os chinelos deixados cuidadosos ao lado, como quem se prepara para uma noite em paz. A chacoalhavam. Ela escutava de longe, manhê, manhê, mã… Mas já tinham levado o corpo do menino quando, enfim, ela abriu os olhos. João Kutayev. Levou o sobrenome da mãe. Irina não tivera tempo de procurar pelo homem que conheceu enquanto servia bebidas atrás do balcão no bar da cidade. Ele esteve por lá a trabalho por alguns meses. Ela ainda estava aprendendo. Eles se encontravam quando o bar se fechava. Até às 7 horas Irina se dedicava a entender algo que aquele homem parecia querer ensinar. Ela acreditava nisto e dava a ele seus peitos quando, no fundo, talvez quisesse apenas dormir sem desamparo. Descobriu a gravidez com quatro meses de barriga crescendo, e aquele homem, cujo sobrenome ela não conhecia, já havia partido da cidade.

João Kutayev estava aprendendo a falar. A Sra. Ondina, famosa no bairro por cuidar dos filhos daquela rua, recebia crianças de dia e de noite, enquanto as mulheres atendiam nos balcões das lojas, ou prensavam a polpa de celulose na máquina que lhes custavam os dedos e às vezes a vida, ou varriam e poliam as casas do centro da cidade, ou serviam cerveja e uísque no único bar que recebia moças direitas. “Joãozinho, repete, On-din-na, on-di- na”. João Kutayev era o preferido de D. Ondina. Dormia em sua cama enquanto a mãe servia cerveja e uísque. O menino havia nascido sabendo viver sem desamparo. Nunca chorava na madrugada. Ao contrário, parece que era ele quem confortava D. Ondina, mulher de tantos abandonos. Na noite, D. Ondina o levava para dormir ao seu lado, trazia o corpo quente do menino para perto de si, sentia seu hálito a leite com açúcar, uma regalia que ela concedia apenas ao seu preferido naqueles tempos ralos. O menino encostava os pés redondos e macios no corpo de D. Ondina durante a noite, assegurando, sem saber, que estava ali, que estava vivo e que sabia dormir sem desamparo. D. Ondina adormecia até que as crianças do turno da manhã começavam a chegar, até que Irina vinha apanhar João Kutayev. O menino amparava Irina e não fosse ele ainda tropeçar ao dar seus primeiros passos, podia-se dizer que era ele quem levava Irina até sua casa. Foi assim naquele dia, que caminhava para aquela longa tarde quente. Manhê, Manhê, mã…

Levaram Irina para o hospital. Talvez tivesse adormecido de cansaço. A pobre mulher trabalhava no bar a noite toda, sem descanso. Talvez estivesse com um homem na casa e não tivesse ouvido o pedido de socorro do menino, aquela vagabunda. Quem sabe ela tomasse pastilhas para dormir. Não encontraram nada na casa. Apenas os chinelos acomodados ao lado da cama. No hospital Irina não respondia a ninguém. O delegado de polícia pediu que ela o procurasse, mas tinha pena da mulher. E além do mais, a conhecia do bar, e já havia seguido com ela por algumas horas noite adentro, e não poderia se expor assim. Acabou deixando para lá. Fez o relatório. E Irina partiu do hospital direto para a rodoviária. Levou a camisola puída e os chinelos, bem ajeitados na mala feita por D. Ondina, que esteve no velório enquanto Irina viajava no ônibus sem menino.

O enterro do Sr. André Nascimento, às 11h daquela manhã, se passaria sem sobressaltos, como deve ser um enterro sóbrio de um ex-prefeito. Irina fechou as janelas do seu quarto enquanto mais um trem fazia estremecer o chão de casa. Dois dias antes, durante a tarde, enquanto se preparava para mais uma noite em companhia do Sr. André, Irina recebou em sua casa um oficial de justiça. Queriam escutá-la no juízo da cidade. Viu na intimação o nome de João Kutayev. Não pôde ler tudo. Assinou com pressa. Há anos não assinava seu nome. Ofereceu um café ao oficial, que não aceitou mas agradeceu a gentileza. Passou pela frente da casa do Sr. Hypólito e seu esquecimento, abriu a porta entre os dois leões, encontrou com a Sra. dormindo na frente da TV, foi até o quarto do Sr. André João Nascimento. Ele já tinha as mãos estendidas a espera dos peitos de Irina. Já tinha o corpo em escaras. Resistia em morrer, o danado. Há dois anos não conseguia, nem com o rosto todo em contração, soletrar por completo “Irina, Irina”. Todo dia Paulinópolis amanhecia aguardando o obituário do ex-prefeito. Nem todo mundo gostava dele naquela cidade. Algumas mulheres velhas ainda se lembram que seus filhos desapareceram naquela época em que ele era prefeito. Seus azulejos de decoração dourada do banheiro não conseguiam encobrir tantos anos de poder e reuniões entre homens na luz baixa de bordeis. Irina esquentou a sopa de ervilhas, bateu no liquidificador e acrescentou um pouco de sal. Antes de servir, virou de lado o Sr. André, trocou sua fralda que naquele dia estava suja como nunca, o que provocou em Irina uma reação incomum. Enquanto limpava sua bunda, Irina ouvia o barulho do trem consumindo sua casa, sentia aquela antiga longa tarde quente, os chinelos andando na direção contrária. Manhê, manhê, mã… Irina ajeitou com cuidado as fraldas limpas, enquanto protegia a pele fina e ferida do Sr. André. Irina inclinou a cama, não o suficiente, e ofereceu uma colher de sopa. O velho abriu a boca com fome, os olhos suplicando os peitos de Irina. Sr. André começou a tossir. Irina vestiu os chinelos e a camisola puída. Sr. André tossia. Manhê, manhê, mã… E os chinelos a levavam para direção contrária. Irina adormeceu na cama ao lado do Sr. André. Pela manhã, as mãos do Sr. André estavam duras e frias. Irina acordou a Sra., que providenciou de imediato a lista de telefones, preparada há anos. O médico, a funerária, o cemitério.

Naquela manhã, às 11h, o enterro do Sr. Nascimento se passaria sem sobressaltos. Irina apareceu, sempre pontual, a camisola puída e os chinelos arrastando. A Sra. logo a socorreu, supondo uma tristeza profunda em Irina depois de tanto tempo cuidando do velho. Irina pediu que a levasse a rodoviária. A Sra. lhe arrumou umas roupas, ajeitou a camisola e o chinelo numa mala, comprou sua passagem, agradeceu por o tempo de cuidados com o ex-prefeito da cidade, e ofereceu um dinheiro a mais pelas noites de sossego que passou, sem precisar lidar com aquelas mãos grossas com as cutículas feitas. Irina subiu no ônibus, arrumou a mala pequena embaixo da poltrona, e partiu.

*Camila Cardoso é aluna da Oficina de Escrita Criativa ministrada pelo escritor Jeferson Assumção.

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