Selena Carvalho
Subplano
Published in
4 min readOct 5, 2018

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Joshua Hoehne by Unsplash

Manhã de cachoeira

­ — Você vai molhar o banco desse jeito.

­ — Vamos esperar secar no sol.

­ — Não dá, tenho que ir, já está na hora.

­ — Bem, então não sei.

— Como você pode vir para uma cachoeira e esquecer a toalha? Realmente, não entendo.

— Você é que ficou me apressando. Por que não me avisou ontem? Eu teria arrumado a bolsa com calma.

— Tudo com você tem que ser com antecedência, senhora certinha. Acordei, vi esse solzão, me deu vontade e pronto.

­ — Só que eu não funciono assim, preciso planejar o meu dia, estava quase saindo para o trabalho, e você, do nada, em plena quarta feira, vem com essa ideia de cachoeira. Agora vou ter que trabalhar até mais tarde para compensar o horário, talvez nem dê tempo de ir para a aula de sapateado.

­ — Você e suas aulas. Não se cansa de fazer tanto curso, não, hein?

— Se eu não ficasse tão sozinha, com certeza não precisaria ficar tentando ocupar o tempo com cursos.

­ — Ah, tá. Eu sabia que você ia arranjar um jeito de levar a história para esse lado.

­ — Que lado? Só estou dizendo que tenho que arrumar coisa para fazer. Não vou passar a minha vida esperando você aparecer.

­ — E eu te pedi isso?

— Não pediu, mas parece que é o que você quer, que eu esteja disponível sempre, que tope tudo, até vir para uma cachoeira no meio da semana.

— No começo, você achava bom quando eu te surpreendia.

— No começo, tudo a gente acha bom, qualquer loucurinha parece interessante. Agora eu quero é rotina, companheirismo, te encontrar quando chegar do trabalho, assistir televisão, dormir junto, é isso o que eu quero.

­ — Eu não aguento mais esse assunto, de verdade. Você quer é a vida chata que eu não suporto mais. Não te passou pela cabeça trazer uma toalha, uma canga?

­ — Já disse que esqueci. O que você quer que eu faça?

­ — Acho que o jeito é você ir lá atrás.

­ — Como é que é?

­ — O que é que tem?

­ — Como o que é que tem? Você quer que eu vá na carroceria, é isso?

— E você quer eu pegue a minha filha na escola e minha mulher no trabalho com o banco molhado, é isso?

­ — Eu não vou na carroceria. Minha nossa, eu não acredito que você quer que eu vá agachada na carroceria!

­ — Vai começar a chorar agora? Você vive chorando, é insuportável!

­ — Meu Deus, você nem se dá conta do absurdo que é o que você está me pedindo.

­ — Eu não posso buscar as duas com o banco molhado. É difícil de entender? Vou explicar o que para elas, que decidi vir para uma cachoeira sozinho, no meio da semana? Você acha que a minha mulher é idiota?

­ — Não, a única idiota aqui sou eu.

— Para com esse drama! Gente, são só vinte minutos! Em vinte minutos, você está sã e salva na sua casinha. Eu sei, é incômodo, mas também não vai te tirar nenhum pedaço…

­ — A questão não é essa. A questão é que…ah, deixa para lá… se você não consegue entender o que isso significa, nem vale a pena tentar explicar.

­ — Mas só significa que não posso chegar com o banco molhado.

— Não, significa que você não tem a menor consideração por mim, que está comigo sabe-se lá por que, que morre de medo da sua mulher, que só se importa com o que ela sente.

­ — Não é verdade, vem cá, deixa de ser brava, vem, me dá um beijo aqui, ah, vai, deixa de ser brava…

­ — Não.., para…

­ — Vem cá, minha linda, você não acha que está exagerando?

­ — Não, não acho.

— Mas está. Foi tão legal a nossa manhã, não foi? Você não gostou de ter vindo? Só você com esse biquininho para me esquentar naquela água gelada…

­ — Para.

— Paro quando você me der um beijo daqueles que só você sabe dar. Ninguém beija como você, já te disse isso?

­ — Mesmo?

­ — Sim, o melhor beijo até hoje, sem falar no resto.

— Hum…gosto quando você diz isso…

— Que tal se amanhã cedo eu fosse na sua casa e a gente tomasse café da manhã juntos e ficássemos chamegando na cama até o meio dia?

­ — Mas aí eu ia ter que chegar atrasada de novo no trabalho.

— De vez em quando não tem problema. Você não precisa ser tão certinha…

­ — Tá, tá bom.

­ — Agora vamos, senão vou me atrasar muito.

­ — Vamos.

­ — Está muito desconfortável aí?

­ — Até que não. O teto é mais alto do que eu pensava.

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