Mofo

Pedro Pantoja
Subplano
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4 min readJun 1, 2018

decomposição 1

Arranquei o soro do braço, abri os olhos e vi que não saiu porra nenhuma. Foda-se, vão fazer o que? Não sobrou ninguém, poço de sanguessugas. A mulher não vai voltar. Ela deixou o controle da televisão em cima do pacote de fralda. Aperta o botão amarelo, é a novela que você gosta. Ri agora sua filha da puta, tá quebrado no chão pra você limpar, pra você fazer seu trabalho. E do mesmo jeito vou quebrar quem entrar por aquela porta. Se aparece um no vidro já mando tomar no cu. Meu dedo ainda sobe, não tem aliança pra pesar. Eu queria minha perna de volta pra sair daqui sozinho. Chutava essa porta e corria assim que viesse o menino gordo com aquele papo duplo de volte pro seu quarto, Coronel, o senhor não tem força para empurrar a cadeira, Coronel, porque esse monte de banha ambulante não me vê de pé, e quando eu jogo o sapato no bigode dele ainda mando tomar no cu, como falei, desço as escadas e boto abaixo a última porta. A louca no quarto do lado não vai poder me agradecer por ter deixado essa merda aberta, vai passar com as duas pernas que desperdiça.

Eu vi a maçaneta girar lentamente. Quando veio o cheiro de frango com mostarda, o mesmo que me trouxeram ontem, soube que era ela. Ainda deixou a porta aberta. Não me toca, porra! Fechou a mão no osso do meu braço e afundou a agulha de volta pra dentro. Passou fácil na pele podre. Sinto nada. Eu já falei que não vou comer essa merda desse frango, vem numa piscina de gordura com aquela rodela de cenoura boiando mas quem é me escuta. Não deixam morrer. Ela não encontrou a veia. Puxou o metal mas ele não quis sair, a pele se segurou no caninho de um jeito que a obrigou a usar a outra mão, segurando meu pulso pra desfazer a incompetência. Enquanto eu estiver aqui, o senhor vai viver, Coronel. Escuta: na televisão eram os índios, eu acho; o sujeito debaixo do chapéu levou os quatro sem deixar o cigarro escorregar da boca e ainda soprou o revólver. Mas isso já acabou e eu quero mudar de canal. Me larga e vai limpar o chão, eu falei.

Duas semanas e ninguém tirou o mofo debaixo da janela. O miolo preto cresce, fica cinza e numa última camada muda prum verde esgoto que até já borbulhou, com o olho direito vejo umas bolas se esticando da parede. Uma lambida bastava, olhando da cama. Imagina, uma gangrena foda crescendo pelo resto do corpo, se corpo ainda, parte do braço verde e vai me apodrecendo do jeito que se não fosse por ela já teria acontecido. Ela finca as unhas com força, pro óleo de frango entrar mais fácil. Porque eu tenho que viver.

Do intervalo entre o soro escorrendo pela veia certa e ela cortando a minha fralda, não ficou nada. Esses são os melhores momentos. Preto. É quando consigo me dar por morto. Dura pouco mas não vejo enfermeira, filhos, não vejo avião ou farda, nada, e também não existem papéis para assinar. Ou tinta. Na condição de carregar órgãos que mal se prestam a mim mesmo, que dirá a outros moribundos, a pergunta é se queimam o resto ou se o guardam numa caixa ao lado da filha. No preto isso não importa. Não tem resto. Nenhum plano de saúde ou desconto de funerária supera o tempo no vazio que na verdade não pode ser rebaixado à categoria de tempo, tá acima dessa merda. Tempo é ela batendo no relógio de pulso com o indicador, encostada na pia com o papel higiênico. Me olha como se eu estivesse segurando a porra do frango no meu estômago, pra ele não voltar. Força, Coronel! O senhor está apenas gastando meu tempo, e francamente o seu, que é ainda mais precioso. Dobra o braço pro plástico quadrado ficar debaixo do queixo, tentando fazer com que eu olhe pra cara dela como se eu fosse perder meu tempo com esse tipo de coisa. O sinal é o dedo do meio. É assim que ela vem e limpa minha bunda. Com a outra mão ela segura meu ombro esquerdo, pressiona a unha postiça no osso, sinto ela entrando debaixo da minha clavícula e é claro, o perfume de mostarda.

A cadeira de rodas do hospital me espera ao lado porque eu não posso morrer, não posso pensar nisso. Da porcelana ela me passa pro pano rasgado, e empurra essa velharia rampa abaixo, sempre me esqueço dessa rampa. Os vivos vivem por causa do sol, por causa do banho do sol. No preto não tem sol. No preto eu não posso ficar, o trabalho dela é me manter longe do preto, e eu me pergunto quanto é que ela recebe por isso. Deve ser fantástico ver o dinheiro no saldo da conta depois de tanta imundice. É um puta serviço, claro. Os pacientes estão bem por sua causa, o que você faz não tem preço mas a lei trabalhista nos obriga a te pagar dois salários mínimos e aí você se vira pra tocar a sua vida longe daqui, para não acabar que nem os oficiais quando a sua hora chegar. Pacientes, esperando, esperando a hora chegar, esperando que cansem de tentar tratar o mofo.

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Pedro Pantoja
Subplano

na capoeira me chamavam de 'derrotado'. hoje sou escritor.