O chaveiro e o poeta

Filipe Henz
Subplano
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3 min readJun 30, 2018

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Quando, da última vez em que me encontrei com o poeta Danúbio, ele carregava a própria cabeça debaixo dos braços, a qual revezava de um lado a outro, devido ao peso excessivo do crânio assomado à massa cerebral. Disse-me que não mais aguentava as vozes que ali se revolviam e, numa manhã de terça-feira, antes do primeiro desjejum, resolveu arrancá-la ele próprio, no intuito de pôr um fim aos pensamentos que o atormentavam.

— Então parou de fumar? — perguntei.

Sem dizer palavra, firmando bem a cabeça entre o braço e o tronco, Danúbio fez surgir do bolso esquerdo da camisa o maço cheio de dobras. Desceu com o cigarro até a boca e o prendeu entre os lábios, fazendo espocar o isqueiro, seguindo-se uma fumaça demorada que, decerto, não lhe chegava aos pulmões.

Passados alguns anos, eu no caminho de volta ao hospital psiquiátrico, bati com a mão nos bolsos e dei falta do incômodo roçar de minhas chaves. Confesso: por vezes me distraio com as mais aéreas digressões. Lembro-me de ter avistado, da janela do ônibus, o que julguei ser um casal de urubus a circunvagar sobre o prédio da prefeitura. Tal imagem me levou a evocar associações das mais férteis. Devo ter deixado escapar o molho na escada, enquanto calculava meu ponto de decida. Ou será que me fugiu do bolso, ao que me acomodava no acento? Tê-las perdido, entretanto, foi o que me fez reencontrar na memória a história de meu colega Danúbio e seu feito.

Chegamos juntos, o chaveiro e eu, à porta principal (e única via de acesso ao hospital). O chaveiro, cujo nome logo teria de ser-me revelado, afirmou nunca ter visto fechadura tão labiríntica e, portanto, levaria exato um dia e meio para permitir que alguém entrasse ou saísse do edifício. Quem estivesse dentro poderia, a depender do caso, nos observar das janelas; aqueles que pretendiam visitar seus parentes psicóticos deveriam aguardar do lado de fora. Não tardou para que uma enorme fila se destrinchasse atrás de nós.

Como porteiro e encarregado do prédio, arrumei logo um banquinho, de onde poderia vistoriar o serviço do homem (e acender meu cachimbo), que se disse bastante contente por ter sido contratado para o trabalho, já que somente diante de molas, parafusos e travas conseguia afastar-se de seus próprios pensamentos. Uma fechadura tão complexa o manteria em paz durante um tempo bom.

O dia despencava. A fila de parentes cheios de olheiras, com suas matulas de sanduíches de atum em sacolas de supermercado, se perdia na esquina da Rua Marinheiro Branco com a Olarias. Cansado de chamar camarada o chaveiro, e sem encontrar qualquer substantivo análogo para sua profissão, perguntei seu nome. Hermes, ele disse, e fiquei aliviado por sabê-lo. Tal contentamento dissipou-me consternações, me colorindo as memórias. Botei de lado o cachimbo e espalmei seu ombro. Disse-lhe que havia alguns anos um colega que deixara de ser poeta sofria de seu mesmo mal (não saberia ele que todos sofremos?) e que fora um tanto corajoso por empreender solução drástica e definitiva para a questão. Contudo, a um preço alto, eu disse.

Eu havia perguntado ao poeta Danúbio se não pretendia, algum dia, devolver a cabeça para entre seus ombros. Respondeu-me que não queria retornar jamais à sua condição anterior, atormentado pelas vozes que, para tudo que tentava empreender, tratavam logo de dissuadi-lo, formulando histórias das mais convincentes para que se sentisse um incapaz diante da vida. Além disso, não podia mais suportar a repetição incessante dessas vozes sobre assuntos que resolvera encerrados, mas que sempre retomados por seus pensamentos. Pensamentos que logo descobriu não serem propriamente seus. Assumiam tons distintos que, por mais que os julgasse conhecer, revestiam-se de novas cadências, novos sons, até mesmo vocabulários inteiramente inesperados, e alcançavam seus objetivos de dizimá-lo perante si mesmo. Foi aí que tomou sua decisão, sob o risco de nunca escrever novamente. Tornou-se inteiramente incapaz de voltar a combinar palavras justas, compor versos, estrofes e seus ritmos. Motivo pelo qual, creio eu, nunca mais recebi nenhuma de suas cartas.

Meses depois, numa dessas esquinas, tive notícia de que Hermes, o chaveiro, havia seguido o exemplo do poeta Danúbio, e que jamais voltou a abrir fechaduras outra vez.

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