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Os todos

Juliana Holanda Borini
Subplano
Published in
4 min readFeb 2, 2019

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Era o aniversário de vinte anos do grande movimento de glorificação de 2020 e todos estavam reunidos para louvar o Supremo Líder na praça do único poder em Brasília. Todos estavam vestidos de acordo para o evento. Os homens trajavam ternos e seguravam o livro sagrado das obrigações e obediências. As mulheres usavam blusas de mangas compridas e saias que cobriam os joelhos. Aguardavam, ansiosos, o Líder que detinha a honra e a glória de proferir as palavras do livro único sagrado e de ditar os caminhos da sublime e decorosa nação. Sob o sol de 39 graus, a bandeira verde e amarela planava os dizeres: “Acima de todos”. O esperado tributo seria transmitido, em instantes, para todo o país pelos diversos canais de televisão que pertenciam ao supremo Líder enviado do céu.

Não chovia há três anos no maior período de seca registrado na história de Brasília. Todos eram punidos com o castigo do céu pelos desregramentos dos brasilienses. Os incêndios eram constantes e um cheiro de queimada impregnava o ar turvo da capital. Um importante cientista desapareceu misteriosamente logo após uma palestra, numa transmissão ilegal pela internet, em que disse que o desmatamento do cerrado e do que restava da Amazônia estava provocando a falta de chuvas. Ninguém se interessou em saber o que aconteceu. Ele era louco, todos disseram.

Poucos dias antes, o último poeta havia desaparecido após recitar um poema na escadaria da rodoviária em que disse: “Livres os homens que pensam. Tristes os homens que se esquecem de ser.” Ser o quê? O que é ser? Ninguém entendeu o que ele falou. Foi levado para seu próprio bem-estar, com tratamento de eletrochoques, para que se recuperasse o quanto antes de suas perturbações. Ninguém se interessou em saber o que aconteceu, acreditaram que o desajustado ficou bom, porque nunca mais foi visto. Ele era louco, todos disseram.

Vez ou outra, aparecia um desses loucos, mas ele desaparecia. As crianças eram educadas à distância por ministros escolhidos pelo próprio Supremo Líder em transmissões pela internet. Crianças não podiam deixar seus lares para evitar toda sorte de mal que poderia lhes acontecer na rua. Até os dezesseis anos, atingindo sua maioridade, tornavam-se aptas a trabalhar. Uma vez por ano, tinham uma semana de descanso para aproveitarem seus lares, conhecerem outros jovens e escolherem suas esposas que deveriam ser mantidas a portas trancadas com unhas feitas e depilação em dia.

A economia estava ótima e a taxa de desemprego não existia. Não se encontrava mendigos, muitos anos antes, eles foram levados para um campo de agrupamento no qual eram mantidos sob a lei do Criador. Todos os brasileiros tinham muito orgulho da nação produtiva e feliz. Um senhor que se machucou no trabalho foi preso por vagabundagem. Nunca mais foi visto. Falou que não conseguia mais trabalhar e precisava se aposentar, um despropósito egoísta com seu empregador que tanto fez por ele. Ele era louco, todos disseram.

A única religião permitida era a da Pátria Gloriosa acima de todos. O Líder dizia que o Criador soprou nele a verdade absoluta e a responsabilidade exclusiva de conduzir a nação resplandecente. Todos se sentiam amparados e protegidos. Perguntar é um insulto, como consta nos pilares do livro sagrado de obrigações e obediências. Sem a submissão às palavras do Criador não há salvação. E a resposta vinha do céu sem chuva. Um homem questionou um Ministro da Pátria, durante o rito de oferta, sobre o aumento da contribuição e a pergunta foi tomada como ofensa grave. O homem foi levado para um período de súplica e não mais voltou. Ele era um dos culpados pelas desgraças que aconteciam. Ele era louco, todos diziam.

Qualquer um estava autorizado a denunciar quem não seguisse o disposto no sagrado Livro, o único, pois todos os outros foram rasgados e destruídos. Era obrigatório seu porte, assim como o da arma para eliminar os inadequados e o da cédula de identificação que consistia no nome e na lista de falhas e de erros registrados pelo Departamento de Regência Comportamental. Todos somente podiam andar nas ruas quando tivessem com as quitações em dia. Os preços eram diversos a depender das condutas. Denúncias eram livremente aceitas e muitos denunciavam aqueles de quem não gostavam, ou em troca de alguns favores, depois seguiam para os rituais de bênçãos celestiais.

Todos tinham o que comer, a agricultura era próspera, mesmo com a falta de chuvas, pelo uso de química defensiva. No entanto, os hospitais estavam sempre cheios. As doenças eram corretivas para os profanadores das convicções, diziam os ministros de ensino. Um menino de treze anos pediu ao enfermeiro que desligasse seus fios porque não aguentava mais de dor.

-Você está louco. Você precisava passar por esse corretivo para se purificar. –Disse o enfermeiro.

O menino chorou ainda mais.

-Não descumpri nenhuma regra, isso é injusto! –Gritou, entre o banho de lágrimas e de suor que lhe encharcava a cara.

O enfermeiro retirou apenas o tubo do remédio para dor e explicou, passando a mão com carinho no braço fino do garoto:

-Você duvidou, pequeno.

Ele olhou o garoto se contorcer, cada vez mais, deformando-se numa massa de ossos e músculos por espasmos e contrações. O profissional de saúde abriu e leu, por cima dos gritos do garoto, o trecho do Livro sagrado:

- Porque sou Eu o caminho da confiança de fazê-los todos prosperar, o poder de dar a todos o futuro com ordem e progresso.

Depois, trancou a porta do quarto e passou para o próximo paciente no leito do quarto ao lado.

Os pais do garoto estavam juntos a todos na praça, já marcava 42 graus quando o Líder Supremo apareceu para a multidão e os saudou: “Acima de todos”. A multidão ecoou no ar impregnado por nuvens de fuligem: “Acima de todos”.

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