Passa com a roda

Laeticia Monteiro
Subplano
Published in
8 min readDec 12, 2018
Photo by Phil Desforges on Unsplash

Conforme aumentava a miséria no mundo, aumentava também a sua loucura.

Ainda que não se possa saber ao certo se a miséria realmente crescera ou se era só a sua percepção sobre ela que se agudizara, o fato é que as vozes em sua cabeça ficavam cada dia mais numerosas e o culpavam cada vez mais.

Você tem tanta sorte vivendo aí nessa sua bolha, sabia disso? Lá fora tem gente morrendo.

Nossa, mas que vida mansa, hein? Acordar depois das 8h todo dia e ela a Maria das Dores tá ali desde as 7h, cozinhando a sua comida, lavando o seu chão e limpando a bosta da sua privada.

Já se olhou no espelho e viu que você é igualzinho aqueles que nos colocaram nesse buraco? Homem. Branco. Rico. Cinquentão. Eu se fosse você não saía de casa, seu escroto.

Sentia cada vez mais intensamente que não havia sentido viver se nem todos podiam viver em condições de igualdade e, como todos que sentem intensamente e não sabem o que fazer com o que sentem, refletiu seu sofrimento em outrem. porque, como todos sabem instintivamente, é mais fácil fazer doer que fazer parar a dor.

Conforme crescia a culpa, cresciam também as brigas com o filho.

No dia seguinte à Black Friday, na qual comprou um fone de ouvido wireless, um galaxy note 9 e uma mesa nova para seu computador, pegou-se em um surto de raiva. Quando o rapaz se levantou às onze horas e trinta e seis minutos, logo após passar dois dias de semana dormindo na casa de amigos.

- Você vive na rua né, vagabundo? Pensa que eu trabalho só pra te manter nessa mamata é, seu pirralho mimado? — vociferou o pai.

- Qual é, pai, acabei de acordar. — resmungou o filho enquanto andava sonolentamente em direção à cozinha.

- Que qual é o que! É disso mesmo que eu estou falando. Eu vou cortar o seu cartão, eu vou cortar o seu carro, você só vai ir de casa para a faculdade e da faculdade para casa.

- Que isso, sai de mim, velho, me deixa quieto, não fiz nada, porra! — o sono parecia deixá-lo na mesma medida em que um estado geral de alarme se instalava em seu corpo jovem.

- Exatamente! Não fez nada não é? Você nunca fez nada. Sequer deu valor ao dinheiro que eu te dei e se continuar assim não vou bancar nem essa brincadeira que você chama de universidade.

- Véi, pai, que isso, tá ficando difícil viver com você viu!

- Ah é? Então vai pra rua vai, fica lá. Já que você já vive na rua mesmo, deve comer rua também. Vamos ver se sem mim você consegue continuar enchendo a barriga.

Horas depois, sentado no escritório do apartamento diante da tela azulada do computador, cansou-se de fingir que estava fazendo home office e começou subitamente a chorar. Que porra está acontecendo, caralho.

Secou as pontas dos dedos na calça preta do terno e desbloqueou o celular. Tremulamente, digitou uma mensagem convidando o filho para tomar um sorvete, propunha uma trégua. E mal sabia que seria na sorveteria o ápice de sua loucura.

Estava na sorveteria, ou na “gelateria” se quisesse ser preciso e comprar o marketing desses lugares cool quando, entre uma colherada e outra do sorvete de queijo de cabra com pistache, foi interpelado por um morador de rua e seu próprio filho, um menino na casa dos dez anos.

Não tenho dinheiro, ele ensaiou dizer, só cartão. Mas enquanto comia o sorvete, a imagem do comedor de rua parecia ter sido queimada em sua retina. Ele lá pedindo ajuda, eu aqui, comendo do bom e do melhor. Ele falando que o filho teria de encher a barriga de rua e o comedor de rua ali, pedindo comida porque a rua não sustentava ninguém. Foi acometido de um nojo tão grande de si mesmo, um revolta tão profunda com seu estado constante de… riqueza, privilégio, fortuna, que simplesmente surtou.

Não tenho dinheiro, ele ensaiou dizer, só cartão. Mas gritou não. Não não. NÃO.

Gritou por que? Você está estragando o meu momento. O meu momento!! Era para eu aproveitar, era para eu curtir esse momento com meu filho e relaxar, era pra eu conseguir enfim congelar meus pensamentos. Esbravejou aos quatro vendo enquanto tacava o pote de sorvete no chão e virava a mesa de madeira do restaurante.

Ao final do episódio, não sabia se tinha mais nojo dele mesmo ou do homem.

Conforme o natal se aproximava, as pessoas, os filmes, as redes sociais, todos. Todos falavam cada vez mais de gestos, de generosidade, de espírito natalino. Grande porcaria, maior palhaçada. Se tratava claramente de um consolo para os ricos, que fingiam se importar ao menos na época do natal. Ridículos, medíocres.

Ele, por outro lado, sempre soube que não se importava, por isso nunca fizera nada, até que, de repente, parecia que se importava e muito, demais, mais que qualquer outra pessoa.

Como é que todos continuavam vivendo enquanto o mundo caminhava cada vez mais para dentro do buraco? Miséria, corrupção, conservadorismo, xenofobia, homofobia, racismo, imperialismo cultural, crise financeira, crise religiosa, até o papa andaram falando em matar! Como é que alguém ainda consegue se levantar da cama? E o câncer? Os defensivos químicos? O hormônio no frango? O metano das vacas! A bosta do veneno que nos dão de comer todos os dias? Como é que todos conseguiram não ficar nem aí para tudo isso o tempo todo? Como é que não estavam todos pregando o amor e aderindo ao veganismo?

Vamos só comprar um kit de natal para esse velhinho do asilo que a família deixou lá porque não sabe lidar com o fato de que ele não reconhece nenhum deles mais e que eu tenho o privilégio de não ver durante o ano inteiro.

Vamos só comprar um presente para essa criança que vive num barraco com esgoto a céu aberto e sem água filtrada e que eu tenho o privilégio de não ver durante o ano inteiro.

Ah, que nojo daquela hipocrisia todo. Conversa fiada do caralho.

Que nojo de si mesmo, que agora se traía e pensava que precisava fazer um gesto, que tinha de aderir ao espírito natalino ou não se aguentaria mais. Implodiria se ficasse parado, tinha certeza.

Precisava fazer algo grandioso. Algo realmente generoso, verdadeiro. Algo que fosse uma faísca do fogo que realmente poderia mudar o mundo. Tirá-lo do buraco.

Não bastaria ir ao correio e pegar uma cartinha, nem comprar umas fraldas e visitar o asilo.

E não era para os olhos dos outros que queria algo assim, era porque precisava de algo que fizesse sentir e que fizesse sentido. Era visceral a necessidade que parecia rasgá-lo por dentro e que com certeza o rasgaria também por fora se não fizesse nada.

Mas o que, meu Deus, o que.

Resolveu buscar refúgio na literatura. Pegou o livro do festival de literatura e direitos humanos para o qual a namorada do filho o arrastara em agosto. Achou o evento legalzinho, até comprou o livro porque parecia interessante e pensou que as doações para a anistia o ajudariam a calar as vozes, mas não funcionara, nem abrira o livro para ler até então.

Escolheu um conto qualquer sem nem saber o que tinha chamado a sua atenção. No conto, um homem encontra um mendigo no semáforo e trava as portas, como ele sempre trava as portas. E fecha as janelas, como ele sempre fecha as janelas.

Ainda que amasse a sensação de segurança, odiava também esse fechar das janelas. Sentia que ao separar-se do mundo criando para si uma bolha de riqueza e proteção, terminava por diminuir a humanidade dos que estavam fora de sua bolha. Como se todos fossem menos humanos que ele, como se todos representassem um risco à sua soberania, à sua vida. Às vezes se vangloriava em sua cabeça, outras só pensava que deveria ser um ser humano bom (e não apenas melhor).

Sentia nojo de si.

“Passa com a roda na minha cabeça.” disse o mendigo no conto.

Não.

Passa com a roda na minha cabeça, pensou.

Decidiu.

Levantou-se do sofá de suede e pegou as chaves do carro. Abriu a porta que dava para elevador emoldurado por pastilhas douradas e mármore creme, e desceu até a garagem. Entrou no honda civic modelo 2018, que comprara naquele mesmo ano, e rapidamente girou a chave na ignição. E, então, dirigiu.

Guiou o carro até o sinal que mais o intrigava. Aquele entre a 707 e a 907 norte, bem na ponta do Ceub. Aquele em que ele ficava mais tenso, porque sempre se deparava com uma incidência grande de comedores de rua. Aquele em que ele às vezes trava as portas duas vezes e em que sempre confere todos os vidros. Aquele em que ele sempre olha fixamente para a rua à sua frente, como se não tivesse visto o morador já dez metros antes de parar, como se não tivesse a menor visão periférica e não percebesse a pessoa que estava de pé ao lado da janela com a mão estendida. Ele mal piscava os olhos, se piscasse talvez o pescoço corresse o risco de quebrar. Ou quem sabe as portas se destravariam sozinhas.

Mas dessa vez quando o sinal ficou vermelho, e ele ficou, como se tudo tivesse sido orquestrado, ele não faz nada disso.

Ele coloca a marcha em ponto morto, puxa o freio de mão e espera.

Não confere os vidros, tampouco trava as portas.

Logo vem um homem andando em sua direção, os passos pesados e trôpegos, de uma perna era manco e na outra parecia ter levado algum tipo de mordida que infeccionara. A pele é como a de todos aqueles comedores de rua que sempre o atormentam: curtida de sol e encardida de tanta sujeira. Já dava para saber que grudava, mesmo sem encostar. E bem, não é necessário falar do cheiro.

Ele abre a porta e desce do carro, tira as roupas e projeta-as no corpo do homem à sua frente, antes de abraçá-lo.

- Leva tudo. — ele diz — Leva. É seu. É tudo seu. — ele continua dizendo — Já programei o gps do carro para te levar para casa. A chave tá lá dentro, deixei a porta destrancada. Tudo que tiver lá é seu. No porta-luvas tem uma carta pro meu filho, cuida dele. — acrescentou — Vai, pode ir. Eu não aguento mais.

O morador de rua, confuso, pega as roupas que lhe atiraram e entra no carro. Já fazia 20 anos que não entrava num carro, quem dirá dirigí-lo, mas, temendo que o bacana mudasse de idéia, engata a marcha como pode, abaixa o freio de mão e vai.

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