Poeira no alto da montanha

Frederico Tales
Subplano
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3 min readMay 26, 2018

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O monge ainda era meu único amigo.

O conheci numa cidade estrangeira muitos anos atrás. O via caminhar no eremitério. Parava no passeio, contemplava o céu e a terra. Ele me parecia sagrado. Sim, sagrado. Qual melhor palavra para definir?

Passou o tempo, e minha alma convidava seus olhos a enxergar o mundo de novo.

- Talvez você se lembre — disse a mim.

O que foi dito, aparentemente sem sentido, mexeu comigo.

- Viaje pelas colinas além da cidade ao longe. Pelas montanhas empoeiradas. Isso vai ajudar você a se lembrar.

Eu não sabia se seria capaz de cumprir o pedido, não sabia nem o que era exigido de mim. Algum porém me desviava o olhar.

- Homem, isso vai ajudar você.

Eu fui, e o monge permaneceu onde sempre existiu. No último instante, antes de partir, o vi arremessando pedras sobre um lago no eremitério. Um verdadeiro santo atrás do altar.

- Atirando pedras, senhor?

- Estou me atirando.

Sempre enigmático, gostava de frases de efeito. Declarei sem querer alongar a conversa:

- Vou para as montanhas.

- Vai ver as estrelas?

Silêncio. Antes de eu desaparecer ele me perguntou novamente. Eu não queria aceitar o inevitável fim? Balancei a cabeça, mesmo após esforçar-me em elaborar uma resposta.

- Traga-me algumas estrelas — disse. — mas volte logo, pois esta pode ser a última vez que você me verá vivo.

Aquelas palavras me revoltaram. Em seguida o destino nos separou.

Deixei, saí por anos. E quando voltei ao mosteiro, o monge já não estava mais lá. Sua existência foi transmudada. Ventos corridos venceram aquele lugar. Naquela morte eu também me fui. Me vi com ele no inevitável lá.

Banhado em esmorecimento, me converti em pedra. E não havia água que me penetrasse e nenhuma luz para me transpassar. O luto em meus olhos me avisou que eu talvez devesse escrever, para caso algum dia ele lesse.

Sentei-me e não soube quais narrativas escrever. A história me pediu aquelas que ainda estão para existir. Discorri em tom de confissão vozes que escapuliam da pena para o papel.

Parei, esperando o apelo das palavras certas. E num instante veio em minha cabeça aquelas que me escapuliram pela boca:

- Ainda hesito em como abrir minhas memórias diante de mim mesmo.

O monge, súbito, segurou minha mão nesse instante e perguntou:

- Trouxe minhas estrelas?

- Sim — menti. — E embora estivesse impressionado com sua presença, permaneci imóvel.

Como, mesmo depois de todo esse tempo, ele ainda martelava a ideia de que eu me esquecera de alguma coisa? Que estrela havia eu de lhe dar, se nem poeira me coubera?

No entanto ele estava parado em minha frente como se aquele fosse o último instante, o segundo mais duradouro de nossas vidas. Estive desarmado e me desaprontei a chorar. Escapuliu, quando de repente as palavras fluíram:

- Eu me lembro, monge.

Levantou o rosto e me enfrentou. Sua barba estava longa e cinza. Carregava um lampião em sua mão direita e um cajado para apoio em sua mão esquerda. Se aproximou e me abraçou. Estendeu a mão sobre meu ombro e sumiu com a voz:

- Obrigado pelas estrelas. — sorriu.

Guardei-as no lampião, ergui a cabeça e as palavras escorreram da pena:

“O monge ainda era meu único amigo no mundo.”

Desde aquele momento o monge não esteve mais morto. Ou melhor, eu não estive mais morto. Sim, eu sou o monge. O monge sou eu, o mesmo que escamisa esta narrativa.

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Frederico Tales
Subplano

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