Selena Carvalho
Subplano
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8 min readNov 10, 2018

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Kate Trysh by Unsplash

Roleta russa

Se o mundo ao redor refletisse o meu estado de espírito, a temperatura não estaria agradável, as folhas viçosas, o sol brilhante.

De cabeça baixa caminho para a universidade, pensando no transtorno que era aquela mudança no meio do semestre.

Mudar quando o aluno já está acostumado, já entendeu os métodos, já sabe o que esperar ou não, devia ser proibido. Sem falar no conteúdo que se perde, não tem como evitar certo prejuízo.

Mas… A quem quero enganar?

Estou por acaso tão preocupado assim com o conteúdo? Sei muito bem que não é esse o problema. Tenho que me acalmar. Não é para tanto. Acaso existe banalidade maior do que um professor afastar-se antes de o semestre acabar, uma doença, um acidente, uma licença? Claro, há sempre alguma alteração na metodologia, mas quando o novo vem, como se diz, para tapar um buraco, procura seguir a linha do anterior. Não há motivo para angústia.

Encontro-o em sala, fazendo anotações no quadro negro. Instintivamente olho o relógio, para me certificar de que não estou atrasado. No instante em que levanto os olhos, certo agora de não estar atrasado, mas, ao contrário, de que chegara cinco minutos antes, meu olhar cruza com o dele. Essa cronologia exata, essa coincidência de momentos, que me faz confirmar a hora ao mesmo tempo em que ele para de escrever, volta-se e me encontra justamente confirmando a hora, como a repreendê-lo por ter começado mais cedo, parece-me de mau augúrio.

A primeira frase dirigida à turma é a de que não tolera celulares, ainda que silenciosos, bips prolongados ou curtos, vibrações que produzem tremor quase imperceptível nas carteiras. Finalmente! Sempre me admirei que nenhum antes dele se incomodasse. A mim, discreto por hábito e natureza, causava estranheza que as pessoas deixassem o telefone tocar no meio da aula e muitas vezes nem mesmo esperassem chegar à porta para atendê-lo. Bela apresentação. Talvez não seja tão ruim, afinal.

A seguir, explica que exige participação nas aulas e que o método de avaliação consiste unicamente em seminários e apresentações de trabalhos em grupo ou individuais.

Dez minutos. Esse foi o tempo necessário para a simpatia incipiente se transformar na mais completa ojeriza.

Não vou suportar.

Tem início aí o meu suplício.

Assim que termina a aula, vou à secretaria sondar a possibilidade de trancar a matrícula.

Espero o semestre acabar; quando o Eurípedes voltar, me matriculo de novo, essa disciplina não é pré-requisito de nenhuma outra, se eu fizer à noite, só essa, continuo com a grade horária da manhã, não perco a turma, não fico para trás.

Lá, a secretária, sem sequer se dar ao trabalho de desviar o olhar do computador, o que é um alívio, de tão nervoso tinha quase esquecido o motivo do trancamento, mentira que decorei e repeti mentalmente inúmeras vezes, me diz que, claro, é possível, basta preencher o requerimento.

— O Eurípedes não volta. O professor Alfredo assumiu a cadeira — ela responde, com o olhar vidrado na tela.

— De manhã e à noite?

— Hum, hum.

— Será que tem alguma possibilidade de troca no semestre que vem?

Agora, sim, com essa pergunta, sem querer, consigo que ela vire a cabeça.

Sinto que fui longe demais. Sem esperar a resposta, e sem lhe dar tempo de memorizar meu rosto, vou embora.

Não há como terminar o curso, sem passar por ele. Talvez fosse o caso de adiar, mas, sem saber até quando, não sei se vale a pena.

Exagero, exagero. O que aconteceu de concreto para que eu queira trancar a disciplina depois de apenas um dia de aula? Não se pode traçar o perfil de uma pessoa em uma hora e cinquenta minutos. Essa sensação de mau augúrio já não senti outras vezes, sem fundamento? Preciso aprender a distinguir intuição do medo.

Dois dias depois, volto à aula resignado.

Escolho uma cadeira no centro, um dos artifícios que aprendi para passar despercebido. Costuma-se pensar que o centro é o primeiro lugar para onde a pessoa que está na frente vai se voltar, mas não é verdade, testei. Abro o caderno, anoto toda palavra dita, parecer ocupado, outro artifício. Evito que nossos olhos se encontrem. Quando alguém faz uma pergunta, imediatamente viro a cabeça na direção do interlocutor. Sei que também eu deveria fazer, qualquer que fosse, mas está fora de cogitação. Ficar quieto para não chamar a atenção e acabar chamando justamente por isso, estou cansado de saber.

Lembro bem daquela matéria no meu segundo ano da faculdade.

A professora avisou que dispensaria da prova quem tivesse participação em sala. Ela iniciava um assunto, as intervenções choviam. Valia qualquer comentário. Não era obrigatório, contudo. Todos falavam porque queriam fugir da prova, menos eu, que, de longe, a preferia. Fui o único a não abrir a boca nenhuma vez. Resultado: tive que ler um livro e fazer a prova sozinho. Isso porque fui até ela e denunciei o meu mutismo durante o semestre. Ela me olhou espantada, nunca havia me notado, tive a impressão. No dia marcado, nem disfarçava a contrariedade. Era uma sexta-feira, só nós dois na sala, eu gastando o horário inteiro num esmero sem sentido.

Na segunda semana ele percebe que existo, não tem mais jeito.

— Ei, doutor, o senhor, como se chama?

Faz uma pergunta, acho até fácil, eu havia estudado o assunto na véspera em casa, tenho a mania de adiantar a leitura do que vai ser dado, justamente para eventualidades como essa. Respondo alto, uma colega balança a mão, como a dizer que eu diminua, passo a falar baixo demais. — Não estou escutando, doutor. Ouço risos à minha volta, encaro o professor, que me analisa sarcástico, começo a gaguejar. O raciocínio se perde, o intervalo entre uma frase e outra aumenta, até que, não sei que rompante de bondade, o faz dizer: — Está certo, doutor, estou satisfeito.

Mal acaba a aula, pulo da cadeira, corro em direção à saída. A única coisa que me vem à cabeça é que não terei coragem de voltar. Como foi mesmo que cheguei até a metade do curso sem ter passado por isso? Imaginei essa cena milhares de vezes — e há quem diga que a imaginação é mais cruel do que a realidade! — , mas a forma como aconteceu foi infinitamente mais constrangedora do que no meu pior pesadelo.

No caminho para a casa, flashs da minha infância, dois especialmente marcantes.

O primeiro dia de natação na escola, eu devia ter uns seis, sete anos. Tinha levado sunga, touca, toalha, que minha mãe arrumara numa sacola. Deixei-a junto com as dos outros colegas, na frente da sala. Na hora marcada, a professora perguntou quem ia fazer a aula, alguns levantaram a mão, fiquei calado, ela vendo que havia sobrado uma bolsa, indagou de quem era, não respondi, insistiu, permaneci impassível, ela, intrigada, saiu de sala em sala à procura do dono e, como não o descobrisse, acabou deixando-a na secretaria. Até hoje não consigo explicar por que não tive coragem de dizer que era minha.

O outro poderia ter acabado mal: na época, voltávamos da escola, eu e minha irmã, de transporte escolar. Um dia, percebi que ela não estava no ônibus. Passei o resto da viagem angustiado, mas não me animei a falar com o motorista, com o assistente, ou com quem quer que fosse. Quando chegamos, armou-se a confusão, minha mãe chorava, meu pai berrava com todos e com ninguém, eu entre eles, afundado na culpa. Estávamos ainda no meio da rua, quando ela apareceu na esquina, nos ombros de uma professora. Acho estranho que meus pais tenham acreditado quando eu disse que não havia sentido a falta dela. Como poderia não ter notado que não estava lá?

Ele me faz perguntas toda aula.

Não entendo. Vários colegas não foram interpelados uma única vez. Esgotei o número de faltas a que tinha direito, fiquei semanas seguidas sem aparecer, ele não me esqueceu. Com certeza percebeu o meu pânico e se compraz em me espezinhar. Quem dera fosse do tipo que quer ajudar, que acha que a pressão é transformadora! É só olhar, no entanto, a sua expressão de satisfação quando começo a titubear, que vejo que não é nada disso. É certo que agora gaguejo menos, mas, mesmo assim, ele sabe o quanto sofro, por que insiste?

Roleta russa, a última novidade.

Explica: ele escolhe um tema, coloca os nomes de todos os alunos em uma espécie de urna — trouxe-a para demonstração — , sorteia um deles. O sorteado deverá fazer uma longa explanação sobre o assunto, na frente, inclusive, de um professor convidado, após a qual os demais alunos poderão fazer perguntas. E é óbvio que as farão se for eu, penso imediatamente. Nesse tipo de situação, não se pode contar com a compaixão de ninguém.

Cismo que deveria se formar uma comissão para assegurar a lisura do procedimento. Quem garante que haverá um só papel para cada nome? Sem supervisão, ele pode fazer o que quiser, até mesmo escrever quarenta papéis com o nome que quer que seja escolhido. Nada digo, claro.

O meu nome. Essa ideia não me sai da cabeça. Só eu posso ser o sorteado porque só o meu nome estará ali. Não posso deixar de reconhecer a genialidade da artimanha. É certo que ele não precisava disso, podia simplesmente me escolher, quem iria contestar? Uma perseguição tão acintosa, assim, todavia, não pegaria bem e eu o poderia denunciar. Seria esse o seu temor? Descarto logo o pensamento. Ele teria que me considerar capaz de tamanha coragem, o que não creio. Nisso, eu e ele estamos de acordo. De qualquer forma, tenho certeza de que foi para mim que a roleta russa foi inventada.

Dia do sorteio.

Passo a madrugada estudando o tema. Decoro o que posso, faço anotações, resumos, divido em tópicos, depois em perguntas e respostas, ensaio na frente do espelho. Por mais que eu tente me fazer entender, meus pais não compreendem o porquê do meu nervosismo.

Chego à sala bem mais cedo do que de costume, ele, só no instante em que toca o sinal. Faz brincadeira com um e outro, a popularidade que conquistou entre os alunos é algo que me deixa perplexo. Todos parecem mais descontraídos do que o habitual.

Estão mancomunados, sabem que serei eu o sorteado.

Dá início ao processo, maestro do meu tormento.

Noto que trocou a caixa destinada aos nomes. A outra tinha algumas frestas nas laterais, essa é hermeticamente fechada, só mesmo um leve rasgo na parte de cima. Ele a balança, meio sorriso forjado. Tenho impulso de avançar sobre ele e desmascarar a farsa. Pega um papel.

Não consigo me controlar e pequenos tremores sacodem meu corpo, o suor escorre pela testa e desenha grandes esferas na minha camisa, debaixo dos braços. Se ao menos ele consentisse em que eu fizesse a explanação sentado! Não, ele não vai deixar, não vou nem pedir. Antes de ler, detalha o que espera do palestrante. Abre o papel devagar.

Minha cabeça lateja, a garganta trava, a barriga se contrai.

Olho ao lado, procurando cumplicidade, mas não vejo aflição em mais nenhum rosto.

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