Sobre quando o cerrado derrotou Brasília

Pedro Pantoja
Subplano
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5 min readSep 28, 2018

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Na época eu era garçom em uma churrascaria na beira do Lago e vi quando ele começou a subir, e subir, e então parar, estacionando no alto. Lembro dos clientes tirando fotos, ainda com nacos de filé na boca, e meus colegas sem reação. Fui um dos primeiros a descer o barranco. Joguei na água a primeira pedra que encontrei. Ela não caiu de volta. Mais pessoas me seguiram e elas arremessaram o que cabia na mão, sobrava lixo no lodo, e um garoto passou uma bola de vôlei para o pai que chutou e ela ficou presa lá em cima. A Honestino Guimarães coagulou. Motoristas de pé sobre seus carros, com celulares empunhados para registrar a Subida, ao som de buzinas e distantes lamentações. Sobre mim estava uma gigantesca massa de água parada, tapando o sol da cratera onde ela costumava ficar e que não viu mais uma gota sequer. O que ficou foi um piso seco e rachado. Até a Ponte das Garças contei duas lanchas e um pescador sentado numa canoa, detidos no vazio. O antigo Deck Sul desabara completamente. As casas na orla foram cobertas pela sombra. No restaurante, clientes e funcionários dividiram a varanda do segundo andar, todos olhando para cima.

Durante os primeiros dias as autoridades se mobilizaram e algumas hipóteses foram levantadas. O Congresso abriu a CPI do Lago Paranoá e o Governo do Distrito Federal importou cientistas do mundo todo. A tese mais aceita durante o começo foi a de um grupo de meteorologistas italianos que afirmaram dentro de uma semana, parte da água ia evaporar e chover de volta para seu devido lugar. Foi no que a maioria dos jornais da cidade apostou. Outros preferiram não opinar e alguns de menor alcance ficaram com os ambientalistas: o Lago cansou de ser o esgoto da cidade e resolveu se distanciar. Todas foram descartadas em um mês. O Exército se colocou à disposição e o Governador mandou cientistas americanos num helicóptero para coletar amostras de água. Eles chegaram na nascente, que depois foi anunciada estar a dois quilômetros de altura. Parados no ar, esticaram um dispositivo para alcança-la, uma vareta parecida com aquela que se usa para saltar, mas antes que ela tocasse a água, o Lago subiu mais dois metros. O piloto teve que desviar no susto. Um dos cientistas caiu e morreu na Vila Telebrasília. Isso fez com que o Congresso enquadrasse o Governador na CPI, suspendendo qualquer tentativa de se aproximar do Lago — na esperança de que ele desceria em breve.

O movimento no restaurante diminuiu e a cozinha fez nosso próprio bolão; duzentos reais na ideia de que tudo ia cair sem aviso e afogar geral. Nicolas, o sommelier da casa, se agarrou ao posicionamento da igreja que frequentava, Deus está castigando a capital, o Lago voltará quando ele mandar. Com a morte do cientista, a Comissão do Lago encontrou um acordo milionário entre o Governador e um centro de pesquisa em Miami, além do contrabando de jet-skis para um grupo de idosos do Noroeste. Ele se enforcou-se na Ponte JK no dia seguinte. Assim que assumiu, o vice-governador instaurou o racionamento por tempo indeterminado. Sete meses sem chuva. Brasília teve que comprar água de estados que ainda tinham fontes de água no chão e muito medo de que elas também ficassem suspensas no céu.

O mercado imobiliário da cidade entrou em colapso. De que vale uma mansão na beira do Lago se o Lago não está no chão? Ceilândia, Samambaia, Recanto das Emas e Gama tentaram se separar do DF para reduzir o desperdício na barragem do Descoberto, o último dos reservatórios do DF. O fracasso das Três Assembléias da Água foi esquecido depois que uma carnificina nas ruínas de Águas Claras conseguiu acalmar os ânimos. Teve gente que propôs um plebiscito para derrubar as quatro pontes, já os menos radicais que ainda tinham dificuldade em entender o propósito delas apenas abriram estradas de terra para facilitar o trânsito. A temperatura média da capital subiu cinco graus, para suor daqueles como eu que não tinham para onde ir. Quem pôde foi embora. Quando a churrascaria fechou, Nicolas disse que nem se deu o trabalho de anunciar a venda do seu flat, simplesmente jogou a chave no porteiro e foi para Pugmil, no Tocantins. Eu passei a morar na adega com mais vinte e um desempregados. Todos queríamos nos afogar.

No segundo aniversário da Subida, foi declarado Estado de Emergência. O Presidente dissolveu a CPI do Lago e coordenou a transferência do Congresso de volta para o Rio de Janeiro, quase cem anos após a inauguração de Brasília. Os setores abandonados do Plano Piloto se organizaram, presos às cinzas do desenho de Lúcio Costa, e como forma de protesto, o Setor de Autarquias Sul testemunhou um suicídio em massa. Além do ócio, os mais de trezentos servidores estavam também enlouquecidos com a seca, que já passava de dois anos.

O Palácio da Alvorada foi incendiado. A fumaça subiu até chegar no Lago, parou nele e rolou para o outro lado, fugindo pela curva que antes banhava a Ermida Dom Bosco. No mesmo dia, uma ordem presidencial mandou e o Exército fechou as entradas e saídas de Brasília. Todos os meios de comunicação com a antiga capital do Brasil foram cortados, não havia energia nas tomadas, não sobrou nem jornal nem cientista, o certo levou até a luz e a família viva do restaurante desistiu, migrou para a cratera sob o Lago, a esperar com a língua de fora, depois de empilhar no estacionamento os mortos que não iriam precisar de água.

Quando queimamos os falecidos, eu desci o barranco uma segunda vez. Não contei os corpos estirados até a Ponte das Garças, mas vi duas lanchas paradas. Nicolas passou por mim arrastando o antigo Governador, só um crânio decomposto com uma corda de mandíbula. Os blocos de concreto que restaram da Honestino Guimarães marcavam o meio-fio da estrada de terra. Grudei minhas costas em um deles, fervido na poeira. Olhei para o lado e a varanda do restaurante estava lotada de funcionários e clientes apontando para o Lago. Se eu tivesse voz para aconselhá-los, diria que não apostassem na queda. Que se segurem à sua fé, como eu fiz do começo ao fim.

Eis que de repente uma gota caiu entre minhas pernas. A primeira em anos.

Eu sequei os olhos e levantei a língua.

Não era possível.

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Pedro Pantoja
Subplano

na capoeira me chamavam de 'derrotado'. hoje sou escritor.