Infiltrado na Klan — BlacKkKlansman (Spike Lee, 2018)

Larissa Goya Pierry
Subvercine
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5 min readNov 8, 2018

Somente um filme do Spike Lee conseguiria reunir no mesmo filme uma carga humorística e uma crítica social afiada: BlacKkKlansman é uma história semi autobiográfica que denuncia o racismo de ontem e hoje nos Estados Unidos. Conta a história de Ron Stallworth, que lançou um livro contando uma investigação realizada por ele e um parceiro policial há 40 anos atrás.

Stallworth é real, assim como o racismo contra o qual ele luta. Ele foi o primeiro policial negro recrutado na cidade de Colorado Springs, no estado do Colorado, na década de 1970. Naquela época, recebendo muito olhares duvidosos e hesitantes de “cidadãos de bem”, ele escolhe iniciar uma investigação sobre uma das organizações mais antigas e conservadoras dos EUA, a “Ku Klux Klan” (ou “KKK”), que ao longo da História, sempre advogou em prol da supremacia branca e do ultra nacionalismo, se utilizando de atos de terrorismo e extrema violência contra minorias sociais, principalmente a população negra, para passar sua mensagem.

No mínimo assustador e revoltante. O mais insano é pensar que essa organização perdura até hoje, contanto com aproximadamente 12 mil membros. Enquanto isso, assistimos à um ressurgimento da extrema direita e aos crimes de ódio, legitimados por discursos omissos e indiferentes de quem está no poder.

Os cidadãos de bem, que às vezes penso que muito bem poderiam pedir sua carteirinha da KKK são as pessoas que se sentem injustiçadas por terem o seu país “invadido” por imigrantes, suas comodidades questionadas pelas feministas, sua masculinidade “ferida” pelo movimento LGBT. Em suma, são pessoas que não dão a mínima para igualdade social pois acreditam ser superiores biologicamente, apenas querem disseminar o ódio e o caos, e se dizem seres humanos.

Patrice Dumas & Ron Stallworth, rockin their awesome afros.

Spike Lee é conhecido por trazer temáticas sociais difíceis em seus filmes, nunca se escondendo de retratá-las da forma mais realista e chocante possível, por isso, pode ser chamado de um visionário. Por ser porta-voz das minorias, em especial da população negra, ele fez história no cinema norte-americano desde a década de 80. Clássicos como “She’s Gotta Have It”, “Do the Right Thing” e “Malcolm X” todos abordam, de formas singulares, a experiência de ser uma pessoa negra na sociedade norte-americana, todos os percalços e lutas diárias.

Spike Lee nunca ficou inativo, em mais de 20 anos de carreira. O último filme que assisti dele foi Chi-Raq em 2015, uma obra também política, mas bem lúdica, adaptando uma tragédia grega para as brigas de gangues no gueto, em forma de musical! Apenas. Tive alguns problemas com esse filme, para falar a verdade, porque apesar de ter achado bastante inovador e diferentão, ele trouxe alguns estereótipos de gênero um tanto quanto batidos. Seguindo em frente, o que importa é que agora ele está de volta, em um dos filmes mais aclamados de sua carreira, pode-se dizer. BlacKkKlansman está recebendo críticas muito positivas de todos, bem como vários prêmios, inclusive em Cannes.

John David Washington é o ator que interpreta Ron Stallworth, filho do ator Denzel Washington, sempre parceiro do Spike Lee. Adam Driver, Topher Grace e Laura Harrier também entregaram performances brilhantes, fiquei absolutamente fascinada com todos os personagens.

Flip Zimmerman e Ron ou “as duas metades de Ron Stallworth”

Gostei muito do filme, porque além de dar uma chacoalhada no público para alertar sobre conflitos raciais, tem aquela vibe de filme de detetive dos anos 70, inclusive brinca com os filmes chamados de “Blaxploitation” (em português, algo como “exploração dos negros”), filmes baratos, com altas doses de violência, sexo e cenas de ação absurdas, geralmente colocando protagonistas negros(as) em papeis heroicos — como “Coffy” ou “Shaft”.

Em certo momento do filme, Ron Stallworth brinca com a sua crush, Patrice, se ela preferiria o filme “Shaft” ou “Superfly” (ambos exploitation), ao passo em que ela responde: “Óbvio que eu prefiro Shaft, ser um cafetão nunca é legal!”. Eesses filmes fantasiavam uma realidade na qual as pessoas negras poderiam ocupar espaços de poder e prestígio, mas a verdade é que isso não acontecia fora das telas.

Topher Grace como David Duke, o “Grand Wizard” da KKK nos anos 70.

Um fato curioso e que sempre me deixa chocada é o fato de o filme ter feito referência a um outro filme de 1915, chamado “O Nascimento de uma Nação”, dirigido por D.W. Griffith. Essa obra até hoje é considerada, em termos técnicos, um dos filmes mais inovadores dessa época de ascensão do cinema. Mas, ela também retrata de forma positiva o Ku Klux Klan, se utilizando de técnicas de blackface e outras formas pejorativas e racistas de mostrar personagens negros.

Reza a lenda que Spike Lee era um jovem estudante de cinema na NYU e o seu professor mostrou esse filme em sala de aula, Lee ficou tão enraivecido pelo filme ter sido mostrado apenas em seus aspectos técnicos, sem crítica alguma sobre a sua mensagem racista e violenta contra a população negra. Algum tempo depois, ele realizou um curta-metragem em resposta e foi quase expulso da universidade. Desde o início de sua carreira, ele está aí para desacomodar.

Gostaria que não fosse assim, mas este filme de Spike Lee toca em questões muito atuais e mexe na ferida dos norte americanos (ou de pelo menos, parte progressista dela): o país que se auto intitulado “terra dos livres e dos bravos” elegeu um empresário-celebridade extremamente chauvinista e misógino como seu presidente. Não querendo dar spoiler, mas o final do filme é uma das cenas mais chocantes, e ela não foi nem gravada em estúdio. O quanto o passado é realmente passado? Será que estamos realmente aprendendo com a nossa própria História?

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Larissa Goya Pierry
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Psicóloga. Feminista. Escrevo umas coisas por aí. Apaixonada por Cinema, Literatura, Música e pelas belas estranhezas da vida.