A Noruega já possui mais carros elétricos que modelos convencionais, mas é disso que se trata o futuro da mobilidade?

Gustavo Mattos
Superorganismo
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8 min readOct 21, 2024

Uma das expressões mais recorrentes para falar dos desacertos da tecnologia é: “no futuro achávamos que íamos ter carros voadores…”. É o suprassumo de visão da cidade futurista a de que a mobilidade urbana superaria as limitações rodoviárias em micronaves individuais de quatro passageiros. Na hipótese futurista um pouco mais humilde, o sistema de mobilidade urbana seria como o do genial filme Minority Report, onde os carros autônomos se moveriam por pistas tubulares de alta velocidade.

Curiosamente, o modelo de carros voadores, por mais futurista que ainda possa nos parecer, ainda é pensado dentro do modelo industrial do século XX. Esse modelo se traduz na ideia de que estamos nos movendo de uma região A (região de moradia, suburbana) para uma região B (região central altamente urbanizada, espaço do trabalho) a partir de um artefato mecânico de posse individual (um carro). Novas e melhores tecnologias de comunicação permitem a realização de jornadas de trabalho de forma híbrida ou na forma do teletrabalho, uma tendência que se tornou necessidade no advento da pandemia de 2020 e que se provou muito mais prática mesmo após o fim das medidas de isolamento. Também vislumbramos hoje um debate social maior sobre formas de mobilidade urbana que não envolvem veículos particulares. Incentivos à mobilidade ativa, ciclomobilidade e integração entre modos de transporte, tais como a ideia de MaaS, ou mobilidade como serviço, integrando modos de transporte, já é amplamente discutida pelo Poder Público de diversas cidades.

Convenhamos que é muito mais difícil imaginar a mudança da cultura de mobilidade urbana particular em cidades com imensas infraestruturas dependentes do automóvel que imaginar carros voadores Neste cenário, a transição para a eletromobilidade particular surge como uma versão mais “pedestre” do carro voador (pedestre no sentido de humildade, evidentemente não no sentido de mobilidade). Isso porque os carros elétricos trazem, à sua maneira, uma visão desejada de futuro. Se não representam a salvação dos grandes engarrafamentos, ao menos contribuem para reduzir a emissão desenfreada de CO2 e outros gases poluentes. Sendo a mudança climática um fenômeno que transcendeu em muito as preocupações dos acadêmicos e de institutos de investigação do clima para a esfera do risco cotidiano vivido, a negação do fenômeno e o incentivo pela proliferação de mais e mais automóveis têm criado resistência no campo da política. Promover a redução das emissões de CO2 é um importante indicador de cidades que desejam ser exemplo de boa gestão.

Na corrida pela transição de veículos elétricos, as cidades da China e dos Países Nórdicos disputam a pole position. Somados os Países Nórdicos, a difusão per capita é de 10,6%; a taxa de crescimento mais alta do mundo (aumento de 57% em relação a 2018). A Noruega representa a líder desta transição, com 754.303 totalmente elétricos em circulação, superando os outros 753.905 que funcionam à base de combustíveis fósseis. Em 2010, havia apenas 2.147 veículos elétricos no país. Esse valor literalmente dobrou anualmente, com 4.038 em 2011, 8.118 em 2012 e 17.868 em 2013, segundo dados da Norsk Ebilforening. Em agosto de 2024, a Noruega atingiu a impressionante marca de 94,3% carros elétricos vendidos (os veículos elétricos à bateria), contra 5,7% de carros movidos a combustíveis fósseis. Os veículos elétricos na Noruega recebem incentivos fiscais: o imposto de compra para todos os carros novos com emissões é calculado por uma combinação de peso, emissões de CO2 e NOx. O imposto é progressivo, tornando os carros grandes e com altas emissões mais caros.

Os veículos elétricos receberam na sua introdução a isenção tanto do IVA quanto do imposto de compra da Noruega sobre carros novos. Além disso, o legislativo aprovou uma regra nacional em que os municípios não podem cobrar mais de 70% do preço de carros movidos a combustíveis fósseis em estradas com pedágio. Os veículos elétricos pagam no máximo 50% do valor total das tarifas no transporte de balsa. Embora os veículos estejam se popularizando, especialmente os carros da marca Tesla da empresa de Elon Musk.

É importante pontuar, entretanto, que essa realidade não é comum para todos os cidadãos. Estes carros ainda são vistos como veículos das classes médias-altas e altas do país e os subsídios voltados para os carros podem ser vistos principalmente como um reforço do modelo da automobilidade particular e dos hábitos das classes mais altas. Segundo um jornal norueguês, em 2016 um proprietário individual de Tesla recebia subsídios suficientes em um ano equivalentes à passagem de 30.000 viagens de ônibus ou de metrô na capital, Oslo.

Isso levanta questões sobre como de fato a transição energética ocorre para além dos índices de ranking da descarbonização expostos muitas vezes como indício absoluto do sucesso dessas medidas. Buscando construir um perfil sóciotécnico mais apurado da transição energética da automobilidade particular, os pesquisadores do Department of Business Development and Technology da Universidade de Aarhus, na Dinamarca (Sovacool et al, 2019) elaboraram um quadro de questionários para apurar a “justiça energética” que consiste em quatro dimensões distintas — uma dimensão distributiva (custos e benefícios); uma dimensão processual (devido processo legal); uma dimensão cosmopolita (externalidades globais) e uma dimensão de reconhecimento (grupos vulneráveis). A partir desse quadro, foram realizadas 227 entrevistas semiestruturadas com especialistas de mais de 200 instituições na Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia para examinar tais implicações de justiça na eletrificação do transporte particular nos Países Nórdicos.

As entrevistas reiteraram que a transição para a mobilidade elétrica nos Países Nórdicos apresenta injustiças distributivas principalmente no acesso desigual à mobilidade elétrica (vista como um item de elite ou de luxo, especialmente para veículos elétricos) e preocupações com privacidade e segurança cibernética. Num nível mais geral, infraestrutura de transporte e desenvolvimentos tecnológicos com foco em carros de passageiros (incluindo veículos elétricos) geralmente beneficiam as classes média e alta cidadãos porque atendem às suas necessidades de transporte (o desenvolvimento de rodovias suburbanas, por exemplo); poluição e congestionamento concentram-se frequentemente nos bairros mais pobres.

Observando o caso dos EUA, King e Webber (2008) estipulam que uma mudança de motores de combustão interna para energia elétrica para mobilidade provavelmente aumentará o consumo de eletricidade e, portanto, contribuirá para a escassez de água. O impacto na água do uso de hidrogênio e eletricidade para alimentar veículos leves pode variar substancialmente: de nenhum uso de água se usar fontes de energia renováveis ​​que não usam água a 2–5 vezes mais consumo por milha e 11–17 vezes mais retirada por milha se a mistura média de rede elétrica dos EUA for usada para recarregar veículos elétricos ou para eletrólise para gerar hidrogênio. Segundo os autores, serão os impactos regionais dos insumos que ditarão a implementação bem-sucedida de combustíveis elétricos, dado que a distribuição inerente de água e outros recursos geológicos varia consideravelmente. A maioria das fontes de água do mundo já está sob estresse, com uma avaliação calculando que as necessidades globais de água subterrânea são 3,5 vezes maiores da área real de aquíferos, e alertando que 1,7 bilhão de pessoas vivem em áreas “onde os recursos de água subterrânea e/ou ecossistemas dependentes de água subterrânea estão sob ameaça” (Gleeson et al., 2012).

Por fim, os insumos que tornam as baterias dos veículos elétricos possíveis advém de complexos circuitos geopolíticos, obtidos em regiões anti-democráticas e com uma exploração trabalhista análoga à escravidão. No livro Cobalt Red, um relato do professor de Nottingham e estudioso da escravidão contemporânea Siddarth Kara analisa a perversa ponta da cadeia de produção de baterias para smartphones e carros elétricos, traçando sua obtenção até as minas de Kolwezi e Lubumbashi, na República Democrática do Congo.

O cobalto no Congo é um recurso não-renovável que provavelmente durará cerca de meio século no atual ritmo de extração e diversos grupos se mobilizam para obter esses recursos, desde empresários chineses e atravessadores europeus até o crime organizado do Oriente Médio. Na outra ponta, empresas de tecnologia americanas, europeias e asiáticas utilizam esses insumos de forma pouco crítica. A pesquisa de campo do professor Siddarth envolveu visitas ao Congo entre 2018 e 2021 e o livro que resulta essa pesquisa aponta não somente para continuidades da cruel exploração colonial belga, mas também a manutenção de trabalho análogo à escravidão, condições insalubres, trabalho infantil, acidentes e mortes de trabalho nas minas de cobalto visitadas pelo professor, com capítulos que carregam epígrafes de Joseph Conrad, outro autor que buscou evidenciar as mazelas provocadas pela exploração do Congo no século XIX.

O livro gera uma provocação a respeito do quanto essas relações efetivamente mudaram e do quanto a dependência e a corrupção de autoridades ainda prevalecem na ponta de uma cadeia global que incentiva uma nova economia verde em acordos multilaterais e a eliminação de emissões poluentes em grandes centros urbanos.

Soma-se a isso o fato da Noruega, embora seja a ponta de lança da descarbonização, representar uma das principais exportadoras de petróleo e gás natural da Europa. A planta de Mongstad, onde está localizada a refinaria de Equinor, produz 230 mil barris de petróleo por dia, refinando não somente petróleo norueguês, mas de outros países, principalmente da África Ocidental, de acordo com a Agência Internacional de energia. Esse papel de fornecedora global estável de petróleo e gás natural foi reforçado ainda mais com as sanções à Rússia após a invasão à Ucrânia Os principais países que importam produtos petrolíferos da Noruega são os Países Baixos, a Bélgica, a Nigéria, o Reino Unido, a Dinamarca e a França. Assim, embora o país busque a descarbonização internamente pelos veículos elétricos, ainda tem boa parte de sua economia assentada na indústria da exploração de combustíveis fósseis.

O que busco apontar aqui é que os veículos elétricos, embora tragam medidas políticas e empresariais para a descarbonização do setor da mobilidade urbana, não são a panaceia da resolução ambiental. Novas e complexas relações giram em torno de outros recursos geopolíticos. Reduções locais de pegada de carbono não impedirão países de “carbonizar” outras localidades. E acima de tudo, reiteram a cultura da automobilidade particular. A mesma que sonha com um futuro de carros voadores. Talvez, antes de ver um transporte coletivo que abarca amplas classes sociais, multi-integrado e eficiente, veremos disputas do maior modelo de SUV elétrico. E, quem sabe, voador.

Referências de artigos acadêmicos:

GLEESON, Tom; WADA, Yoshihide; BIERKENS, Marc F. P.; et al. Water balance of global aquifers revealed by groundwater footprint. Nature, v. 488, n. 7410, p. 197–200, 2012. Disponível em: <https://www.nature.com/articles/nature11295>. Acesso em: 20 out. 2024.

FIGENBAUM, Erik. Perspectives on Norway’s supercharged electric vehicle policy. Environmental Innovation and Societal Transitions, v. 25, p. 14–34, 2017. Disponível em: <https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2210422416301162>. Acesso em: 21 out. 2024.

KARA, Siddharth. Cobalt red: how the blood of the Congo powers our lives. First edition. New York: St. Martin’s Press, 2023.

KING, Carey W.; WEBBER, Michael E. Water Intensity of Transportation. Environmental Science & Technology, v. 42, n. 21, p. 7866–7872, 2008. Disponível em: <https://pubs.acs.org/doi/10.1021/es800367m>. Acesso em: 20 out. 2024.

SOVACOOL, Benjamin K.; MARTISKAINEN, Mari; HOOK, Andrew; et al. Decarbonization and its discontents: a critical energy justice perspective on four low-carbon transitions. Climatic Change, v. 155, n. 4, p. 581–619, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1007/s10584-019-02521-7>. Acesso em: 20 out. 2024.

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Essa página busca estruturar ensaios a respeito de cidades do futuro. Como estão sendo pensadas? Quais as tecnologias das smart cities? Quais os impulsionadores das mudanças nos modos de vida da cidade?

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Written by Gustavo Mattos

Doutor em sociologia urbana (UFMG), esportista assintomático, viciado em sci-fi. Cidades Inteligentes e o futuro da mobilidade me interessam.

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