O argumento

Você vendeu sua idéia, e agora? Precisa escrever o argumento do filme ou a bíblia da série.

Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual
5 min readMar 16, 2020

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O Argumento

É geralmente a segunda etapa no processo de desenvolvimento. O produtor se entusiasmou com seu pitching e pede então para ler um argumento.

Até agora o roteirista não ganhou nada. É só a partir do argumento que são levantados os recursos para a escrita do roteiro, ou seja, antes do argumento o filme é só uma idéia verbalizada. Por melhor que tenha sido o pitching, esta primeira versão do argumento é que vai iniciar o processo de produção.

O argumento também é a peça sobre a qual diretor, produtor e roteirista fecharam um acordo. Ele será a referência a partir da qual o roteirista vai trabalhar. Se ele se ater em linhas gerais ao argumento, seu roteiro tem mais chance de ser aprovado ao final.

A distinção entre sinopse e argumento é muito vaga. Mas eu tenho um critério claro e totalmente arbitrário: uma sinopse não tem mais de uma página. Muitas vezes os editais pedem sinopses de 2 páginas. Do meu ponto de vista estão pedindo um argumento.

Em geral, o argumento de um longa metragem tem dez páginas. A forma é livre, pode ser inclusive bem literária. O importante é que o texto venda o filme ou programa. Mas cuidado, se o argumento for literário demais pode se transformar num ótimo… conto! Tente ser visual e dar a impressão que acompanhamos o desenvolvimento de um filme. É preciso ler o texto e ver um filme.

O argumento tem que contar toda a história do filme, sem se preocupar muito com o enredo. Exatamente como a história vai ser contada é problema a ser resolvido no roteiro. O que você está vendendo agora é a história. E uma história tem começo, meio e fim. Se você não tem um final, sua premissa pode ser muito interessante, mas é só uma intenção. O final é a garantia que o produtor tem de estar comprando uma história, e não uma sucessão de fatos anódinos. Muitos escritores estreantes tem boas idéias para um começo, mas subestimam as dificuldades do desenvolvimento e chegam a desenlaces medíocres… quando não ficam quebrando a cabeça sem encontrar um fim!

Segundo William Labov (1997), um importante sociolinguista que analisou o discurso oral cotidiano, contamos histórias o tempo com a função de transmitir experiências. Histórias significativas carregam dentro de si um aprendizado. Quando isso não acontece ficamos com aquela impressão de “E daí?” Muitos filmes, sobretudo os estudantis, deixam essa impressão negativa. São histórias sem um ponto. Para Labov o ponto é revelado na resolução. De modo esquemático é a moral da história, mas essa moral é paradoxal pois o ponto tem que ser, ao mesmo tempo, original e compreensível. Não basta terminar com uma moral óbvia, ela também tem que surpreender, senão, porque contar essa história?

O final da história é o o que levamos para casa, é a última impressão que temos, é o tema que discutimos com os amigos após o filme. É muito importante e existe um exercício (QUINN, 2006) que ajuda a descobrir o ponto da história:

Coloque-se em frente a um espelho, assuma o lugar do seu protagonista, imagine o que você viveu durante o filme e se pergunte: O que eu aprendi com essa história?

Edgar Allan Poe (1997) já recomendava que histórias fossem escritas de trás para frente. Essa recomendação é importante porque no conto, assim como no filme, em geral todos os elementos são coordenados em função da resolução. O que não contribui para o fim é cortado.

Escrever um roteiro sem ter final é extremamente angustiante. A cada passo você tem que projetar todos os desdobramentos narrativos e, ao mesmo tempo, resolver o problema imediato da escrita da cena. Se já temos um final, o caminho está traçado. Ele pode variar, pode até acontecer de se descobrir que o fim precisa mudar. Mas o trajeto será bem menos acidentado.

Argumento desenvolvido de filme

Um grande problema do desenvolvimento é conseguir que distribuidor, produtor, diretor e roteirista partilhem uma mesma idéia sobre o filme. Entre um argumento de 10 páginas e um roteiro de 100 a distância é muito grande e o roteirista pode tomar um caminho inesperado. Por isso, o argumento desenvolvido é útil. Se o caminho precisa ser corrigido, fica bem mais fácil reescrever 30 páginas do que um roteiro inteiro. É melhor reescrever várias vezes o argumento e só se dedicar ao roteiro quando a estrutura, as cenas importantes e o arco dos personagens estiverem claros. A partir daí o trabalho é quase que só escrever os diálogos.

Recomendações sobre o estilo do argumento:

  • O argumento desenvolvido de um longa tem cerca de 30 páginas.
  • Deve pode ser dividido em cenas. Os cabeçalhos podem ser um simples número “1.”, ou seguir a forma de um roteiro: “INT. CASA DE PEDRO — NOITE”. Mas também pode ter um estilo mais literário. Não há regras.
  • Não usar divisões em Atos ou cabeçalhos que só você pode entender como “CENA A3”.
  • As descrições são sucintas, mas devem permitir o leitor visualizar lugares e pessoas.
  • As vezes, quando absolutamente necessário para entender a ação, pode se transcrever uma fala. Em geral todos os diálogos devem ser parafraseados.
  • Não usar nenhum termo técnico. Como será filmado é um problema do diretor.

McKee (1997) tem uma visão muito própria do argumento desenvolvido, acredita que nesta etapa o texto deve apresentar todas as cenas do filme e explicitar o seu subtexto. O leitor precisa entender o que está em jogo na cena e quais os estados mentais de cada personagem, ou seja, devemos descrever as intenções, objetivos e emoções dos personagens.

Bíblia de série

É um termo usado na produção de séries televisivas. Trata-se de um documento que reúne todas as informações relativas ao projeto em desenvolvimento: referências visuais, biografias, histórias, descrição de mundo, argumento, etc. É a enciclopédia do mundo ficcional que está sendo desenvolvido na série. Um texto de referência que esclarece todas as dúvidas da equipe, em especial dos próprios roteiristas.

Pode ser o documento que o showrunner entrega para a sua sala de roteiristas, com uma introdução, biografias dos personagens e sinopses de todos os episódios. Ou então um documento que consolida, após a primeira temporada, o conhecimento sobre a série, de modo que um novo roteirista possa entender rapidamente as regras que deve seguir. Nesse caso, as biografias são longas, as vezes com mais de uma página e listas de informações sobre os personagens. Cada locação é descrita com minucia. A backstory se estende sem limites. Objetos e acontecimentos recorrentes são apresentados em suas diversas variações. Nenhum detalhe deve ficar de fora. No mundo ideal, a bíblia deveria ser constantemente atualizada pelo secretário da sala.

Muitas vezes a palavra Bíblia é usada para designar o projeto de uma série de televisão. Eu prefiro pensar que é um documento produzido depois da série já ter sido aprovada.

Vale ler a descrição que Andrea Midori Simão faz do trabalho de escrever a bíblia: Método Andrea para salas de roteiro

Referências

POE, E. A. Filosofia da composição. In: ______. Ficção completa, poesia & ensaios. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1997.

LABOV, W. Some Further Steps in Narrative Analysis. Journal of Narrative and Life History, v. 7. p. 395–415, 1997.

MCKEE, R.; MARÉS, C. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba: Arte e Letra, 2006.

QUINN, J. C. E. The Pitch. Londres: Faber and Faber, 2006.

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Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.