O desenvolvimento

As ferramentas que o roteirista usa para escrever: bloco de notas, arco resumido, escaleta, quadro, gênese do personagem, monólogo, cronologia e história pregressa.

Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual
7 min readMar 20, 2020

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Projetos e roteiros serão lidos por produtores, distribuidores, comissões de seleção, canais de televisão ou plataformas de streaming. São documentos públicos. Mas o processo de escrita envolve outros textos, que escrevemos para esclarecer e guiar o trabalho de escrita, são documentos privados que usamos sobretudo no desenvolvimento.

O bloco de notas

Talvez a palavra inspiração seja uma das que causa mais prejuízo ao aspirante a roteirista. Escolha um artista qualquer, estude seus procedimentos e vai descobrir que se trata de uma pessoa extremamente perseverante, concentrada e trabalhadora.

Mas se o trabalho de dar forma é sistemático, as idéias, ao contrário, são fugazes. Nossa mente está o tempo todo se ocupando de várias atividades e flutua entre vários pensamentos. É importante destacar o caráter contingente, eventual, do trabalho artístico. Se estamos com um problema num roteiro, a solução pode vir de algo que presenciamos na rua, de um livro que lemos ou de uma conversa com um amigo. Vamos usando o que nos aparece pela frente. Existem várias soluções para um problema, mas a que usamos nos apareceu por acaso, entre milhares de outras possibilidades.

A fase de incubação precisa ser respeitada. Muitos artistas gostam de caminhar ou então colocam de lado o roteiro e vão se ocupar de outras coisas. Quantas idéias não aparecem durante o banho? Nosso inconsciente trabalha continuamente e temos que nos abrir ao acaso e a novos estímulos.

A esse respeito vale a pena ler Creativity: Flow and the Psychology of Discovery and Invention (CSIKSZENTMIHALYI, 1997), resultado de uma longa e minuciosa pesquisa, o autor descreve o processo criativo de vários inventores, artistas e cientistas.

Por isso tudo, a primeira e uma das mais úteis ferramentas é o bloco de anotações. Pode ser um caderninho em espiral que você compra numa padaria ou um Moleskine. Não importa. Tem que ser pequeno e fácil de carregar. Se possível, ter uma caneta pequena também ajuda. Geralmente, é bom que ele fique ao lado da cama, porque muitas vezes uma idéia pode surgir num sonho ou naquela sonolência gostosa de quando se está acordando. Outro instrumento importante pode ser o celular e um programa de computador para armazenar essas anotações.

Arco resumido (Beat sheet)

Como não temos tradução, faço a minha proposta. É uma lista de frases curtas que desenha o arco da história que vai ser contatada. Pode ser também o arco de um personagem. É importante para não perder a visão do todo. Qual é a trajetória do personagem? O que ele busca? Quais seus percalços? Quais suas conquistas? Quais seus pontos de virada?

É uma lista de uma página com uma frase por cena.

Escaleta

Em inglês, step-outline, a expressão em português deve vir do italiano escaleta.

Uma escaleta é a descrição sucinta e estritamente visual do filme. Aqui não valem efeitos literários, metáforas ou resumos. Ao contrário do argumento desenvolvido, não se deve fazer menção aos estados mentais dos personagens. A ênfase está na ação, nos objetos e na locação. Sua função é permitir uma visão de conjunto da história e obrigar o roteirista a enfrentar os problemas da mídia audiovisual, afinal não “vemos” as intenções dos personagens. Por isso escaletas são divididas em cenas, marcadas por mudanças de espaço ou de tempo.

Roteiristas profissionais geralmente fazem uma escaleta. É claro que é possível começar a escrever um roteiro e ir descobrindo como desenvolver a história passo a passo. Muitas vezes esse é um exercício que ajuda a ver o filme. Mas depois de escrever dois ou três roteiros, descobre-se que é um imenso dispêndio de energia. Se você escreve antes uma escaleta, metade do trabalho já está feito. Sem ter que pensar no enredo, é possível se concentrar na cena e nos diálogos. A ansiedade e angustia diminuem muito!

Daí em diante, a escrita do roteiro é bem mais simples, técnica e rápida. A escaleta é um instrumento de trabalho do roteirista. Ela permite ver a estrutura do enredo e é ótima para ser usada em discussões com outros roteiristas. No entanto, sua leitura é técnica e chata e pode transmitir uma visão deturpada do seu trabalho. Por isso, cuidado quando entrega a escaleta a outra pessoa. Sobretudo não entregue para um produtor!

Na escrita de seriados dramáticos a escaleta é obrigatória. Os autores ou showrunners geralmente escrevem com a sala e depois os roteiristas “abrem” a escaleta, ou seja, escrevem os roteiros.

Nos EUA os roteiros de sitcom são escritos por toda a sala. É um trabalho mais coletivo, inclusive com vários roteiristas no set acompanhando as gravações. O making-off de Friends é muito instrutivo de como se organiza o processo.

Recomendações sobre o estilo:

  • Ser escrita no presente e na terceira pessoa.
  • Ser escrita de modo sucinto e com breves descrições.
  • Descrever apenas aquilo que será visto e ouvido pelo público.
  • Excluir diálogos, descrições técnicas de planos e comentários do autor. Quando um diálogo for inevitável seu conteúdo deve ser resumido.
  • Usar um parágrafo novo para cada nova cena.
  • Cabeçalhos como “INT. CASA DE PEDRO — NOITE” podem ser usados. Existem muitos formatos de escaletas. O importante é que a descrição da cena seja sucinta.
  • Não escrever o nome de um personagem sempre em maiúsculas. Se quiser, na primeira aparição de um personagem seu nome pode ser em maiúsculas. Mas depois volte a grafia normal.
  • Quando você introduz um personagem ou uma locação, faça uma breve descrição. Ajuda o leitor a visualizar a ação.
  • Todo personagem deve ter um nome. Evite “Homem levanta o braço e acena para mulher”. Pela mesma razão, use com cuidado “ele” ou “ela”. O texto fica vago e impreciso. Não se incomode de repetir nomes.
  • Um personagem deve ser sempre designado com a mesma palavra. Se ele é “o estranho”, não deve se tornar “o forasteiro” no próximo parágrafo.
  • A escaleta não é uma lista de itens a serem lembrados por quem está escrevendo. O objetivo não é você se lembrar do filme. Trata-se de uma descrição que deve ser compreendida por um leitor. Por isso, não use referências entre parênteses que só você pode entender…

Quadro

Toda sala de roteiro tem um quadro. Pode ser de ferro, de cortiça ou branco. Com fichas, post-its ou escrito a mão. O importante é dispor de ferramentas para visualizar em conjunto a história e que permitam ir trabalhando de modo interativo.

O ideal é que uma pessoa desavisada que entra na sala possa entender rapidamente o projeto. Para isso vale muito usar fotos dos personagens e locações, além de referências visuais que transmitam o clima que se está buscando.

Gênese do personagem

Os atores muitas vezes escrevem a gênese do seu personagem, uma biografia detalhada que inclui aspectos ignorados pelo roteiro, mas que muitas vezes motivam as ações que precisam representar. Para um ator é fundamental construir uma vida continua do personagem para se localizar numa história da qual participa durante as filmagens de modo muito fragmentado.

Conhecer a história do personagem também pode ser muito útil para o escritor. Questões simples e produtivas, como “De onde o personagem veio antes dessa cena e o que fará depois?” precisam ser respondidas com clareza. Esta pesquisa pode tomar um viés psicanalítico, geralmente imaginando a infância da personagem, ou histórico e social, delineando as determinações de classe que orientam comportamentos e ações.

É um modo de conferir se você não está esquecendo alguma coisa. Também ajuda a particularizar e a visualizar um ser específico, não algo genérico como “um estudante”. Esse é um erro muito comum e perigoso de quem está começando a escrever.

Um exemplo clássico de gênese de personagem é o escrito por Lajos Egri (1950) para a personagem Irene. Traduzi e vou publicar proximamente.

Monólogo

Um exercício que ajuda muito a entender as motivações de seu personagem é escrever um monólogo, um relato da história vista através dos olhos do seu personagem. Improvise os pensamentos sem se preocupar muito com a sequência dos eventos, como se fosse um diário privado com pensamentos, impulsos, segredos e auto-justificativas, inventando a história pregressa da personagem conforme necessário. Mackendrick (2005) tem excelentes exemplos de monólogos.

Hoje julgo mandatório escrever o monólogo do protagonista e do antagonista. Só assim é realmente possível entender plenamente o ponto de vista de um personagem. Quando você chegar a um beco sem saída na escrita, recomece o processo a partir do ponto de vista de um dos personagens presentes na cena. E assim sucessivamente, retomando várias vezes os diferentes personagens.

Cronologia

Aqui vale recordar a distinção realizada pelos formalistas russos entre história e enredo (TOMACHEVSKI, 1973). A história é a sucessão cronológica de eventos e o enredo é uma seleção organizada desses eventos. A história é virtual e vai sendo construída pelo espectador conforme acompanha o enredo. Por exemplo, em Cidadão Kane (Citizen Kane, 1946) o enredo nos apresenta numa ordem não linear momentos da vida de Kane, cuja história reconstruímos de modo aproximado ao final do filme.

Para o roteirista é fundamental entender a história, ou seja, escrever uma cronologia dos eventos. Se não temos clareza da ordem cronológica, fica difícil selecionar o enredo, principalmente se forem multiplos enredos ou se a narrativa não for linear. Nesse caso é perigoso criar eventos cuja motivação perdeu-se numa elipse, por exemplo.

As vezes a narração quer criar efeitos de ambiguidade, ou chamar atenção para lacunas que não podem ser preenchidas, mas, mesmo nesses casos, é importante entender essas áreas obscuras.

Quando o ponto de partida é material documental ou uma obra literária, é fundamental escrever uma cronologia detalhada pois a sucessão de eventos já existe antes do roteiro tomar forma e esta é uma boa estratégia para se familiarizar com os acontecimentos.

História pregressa

Em inglês, backstory. Diz respeito aqueles eventos que não estão no filme mas que sou obrigado a reconstruir para entender o que está acontecendo. Ao contrário da história, a história pregressa é fechada. Trata-se apenas daquelas informações que preciso ter para entender o filme que estou assistindo. A gênese do personagem e a cronologia, ao contrário, abrangem um universo bem maior.

As vezes escrever a história pregressa ajuda a entender o que está faltando na história para que ela faça sentido.

Referências

CSIKSZENTMIHALYI, M. Creativity: Flow and the Psychology of Discovery and Invention.New York: Harper Perennial, 1997.

EGRI, L. The art of dramatic writing.London: Pitman, 1950.

MACKENDRICK, A.; CRONIN, P. Exercises for the student of dramatic writing. In: ______. On film-making: An introduction to the craft of the director. London: Faber and Faber, 2004. Pgs 44.

TOMACHEVSKI, B. Temática. In: TOLEDO, D. O. Teoria da literatura, formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1973.

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Roberto Moreira
Técnicas de escrita no audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.